Crónica de Jorge C Ferreira
Uma estranha ausência
Quando a tristeza não é fado. Quando o fado é um fado que, no entanto, mexe connosco. Um poema que sabe a saudade e procura o futuro. Tudo sem xailes, sem vestidos pretos e sem vinho. As guitarras e as violas caladas. Um estranho silêncio e um sentimento que causa agudas dores em todo o corpo. A incompreensão do acontecido. Uma cama estranha. Uma luz que custa a apagar. Acordar de luz ainda acesa. A noite mal dormida, a noite cansada. As mãos dormentes. Mãos que ardem inconscientes do calor das luzes acesas.
É então que apaga a luz e ele acende uma vela. Precisa de algo que crepite e lhe abane a consciência. Sente que necessita de ser iluminado. O incenso que lhe dá um cheiro que necessitam. Pela sua memória passam agora flashes de uma vida com mais de quarenta anos. O Bairro Alto, tão diferente do de agora. Um jardim que é um miradouro sobre a cidade e muitos primeiros beijos. Um bar que era uma Catedral pagã. As várias casas. As várias camas, os variados colchões, almofadas e edredões. Penas e corpos que se aquecem. Uma viagem nunca feita. Fazer do impossível possível. Lutar pelos momentos felizes.
Tantas são as coisas que me conta o meu Amigo Especial, tantas me recorda. Muitas coisas esquecidas. Umas pelo tempo e a intensidade, outras intencionalmente. Assim é a natureza humana. Depois, são coisas vividas por ele entre a vida que sabia partilhar muito bem. A sorte que eu tenho de ter tido acesso às coisas que ele escrevia diariamente. Um diário aberto do mesmo modo que abria o corpo e rasgava a roupa para se entregar inteiro, como o Poeta entrega o poema quase acabado.
Assim se foi escrevendo.
As praias que percorriam pelo caminho das rochas. Os cabelos a surfar ondas provocadoras. Cabelos grandes. Cabelos deles. Roupas que os diferenciavam. O arrojo, a vontade, o desejo. Por vezes só lhes apetecia ternura. Festas e mimos. Alegrias contidas na suavidade das mãos. A procura sempre de algo mais. A busca do ponto de não retorno. Um elevador que não parava e subia, subia, sabendo do não limite. Encontrar o ponto ideal. O tal ponto.
Diz mais:
Lembra-me de ela usar umas sandálias e ter uma longa trança, do seu andar desenvolto, empoderado e da voz rouca que enfeitiçava o corpo dele quando perdido na vida. Corpo que chorava deitado a seu lado e aí renascia. Um poder único de que não fazia gala. Antes se entregava. Gostava de ser dominada sem sevícias, mas sim com muita ternura. Os seus grossos lábios sabiam à alegria que era sorvida com puro prazer pelos lábios dele e inundava todo o seu corpo. Por vezes eram longas as noites e pareciam tão curtas. Noites entre as estrelas e o mar. A dourada areia e o azul do céu. Em cada estrela, um significado. Em cada brilho uma vibração que sentiam única.
Um dia adormeceram na praia e fizeram um filho que nunca chegou a nascer. Filho abençoado, filho desfeito numa hemorragia. Filho que ainda não tinha nome. Filho deles, filho de todos nós.
Tudo acabou.
«Mais uma vez esse teu Amigo tão estranho. Tens de me explicar isso melhor.»
Fala da Isaurinda.
«Um dia explico. Sabes que te conto tudo.»
Respondo.
«Um dia, deves estar a inventar uma estória para me enganar.»
De novo Isaurinda, e vai, com uma piscadela de olho trocista.
Jorge C Ferreira Janeiro/2025(461)
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Crónica intensa, a sensibilidade e delicadeza das tuas palavras são uma constante. O teu Amigo especial homem de tantas vidas, por vezes pela metade. Se te confiou o diário, será que viveste com ele dias e abraços de inquietação e dor? Os mergulhos no mar e renascer. A Isaurinda chama-lhe Amigo estranho. Sempre um carinho do jeito dela. Irá adorar que fales dele. Meu Amigo lá de longe em anos, gosto muito como escreves. Sei que já o disse muitas vezes. Abraço grande.