Um tempo parado
por Jorge C Ferreira
Anda no ar um receio imenso. Há quem lhe chame medo. Andamos todos a começar a ter sinais de uma maleita que nos cerca. Qualquer sinal nos faz ficar alerta. Nos faz criar ilhas. Nos faz ficar sozinhos. Há dois anos que andamos nisto. Há tanto tempo que andamos mascarados!
Os testes, as vacinas, as várias doses e apesar de tudo ainda não nos sentimos à vontade. Chegamos a desleixar outros cuidados de saúde por causa disto. Desde que isto começou já me lembrei tantas vezes do “Ensaio Sobre a Cegueira” do José Saramago, e senti um frio imenso no estômago.
Surgem novas estirpes a cada momento, outras são anunciadas. Os factores psicológicos começam a criar quadros que vão piorando. A saúde mental é muito importante. Temos de pensar em olhar a sério para tudo isso. Temos de ter técnicos suficientes, e atentos, para tratar todas as sequelas.
Hoje já não há ninguém que não conheça alguém que esteja infectado. Felizmente estamos a morrer menos. Hoje. Amanhã não sabemos. Por vezes lembro-me da navegação antiga sempre com terra à vista. Agora que vamos a Marte continuamos a ser surpreendidos por vírus vindos não sabemos de onde.
As notícias são para desligar. São uma carga suplementar para todos os que são susceptíveis a incorporar os sintomas largamente difundidos. As noites precisam de ajuda para dormir. O acordar começou a ser receoso. Há quem viva confinado por decisão própria. Pessoas cuja pandemia já é outra.
As pessoas afastam-se nas ruas quando se cruzam. Os passeios são estreitos e a vida é curta. Ir a determinados lugares começou a ser, para muitos, uma hipótese riscada da lista de opções. Estamos cada vez menos com outros. Há quanto tempo não damos um abraço como deve ser a um amigo, um beijo? Cada vez a vida está a ficar mais virtual. É tudo feito sem nos tocarmos. Sem sentirmos a pele do outro. Como vai ficar o mundo? Quando matamos estes medos?
Iremos retomar o mundo dos afectos? Quando e como não sabemos. Já ninguém anuncia nada. Estamos a viver um tempo parado. Tanto tempo! Tanta vontade a perder-se em casas vazias. Diziam: “Tudo vai ficar bem”. Todos sabíamos que não. Todos sabíamos que o caminho ia ser pedregoso. Que iria haver quem nos deixasse. Que iríamos perder coisas que queríamos fazer.
Hoje a viagem será no último eléctrico da noite. Da Praça do Chile até Algés. Vamos parando em todas as paragens e recolhendo os refugos da noite. Há lugares mais complicados que outros. Há também um pouco de rio. Era um caminho diferente. O Cais do Sodré era bem outro. Muitos marinheiros e os bares da prostituição. Muita garrafa partida. Muita luta canalha. Uma outra vida. A 24 de Julho não era nada do que é. Depois, Alcântara, esse bairro de trabalho onde, poucas horas depois, muitos viriam apanhar o carro operário. Um bilhete cinzento-sujo, mais comprido e a preço reduzido. Algés, com a sua Praça de Touros, era considerado uma localidade muito afastada de Lisboa. Havia quem fosse tomar banho à praia de Algés. Sim, havia uma praia em Algés. Havia carreiras que ainda iam ao Dafundo. Depois o carro voltava vazio para o Arco do Cego. O merecido descanso.
Façamos de tudo isto uma viagem de eléctrico. Já era tempo dos amarelos enxamearem de novo a cidade.
«Tu e as tuas manias das doenças. Vá lá que isto acabou num passeio de eléctrico.»
Fala de Isaurinda.
«Sim, tens razão sou um pouco hipocondríaco. Mas adoro eléctricos.»
Respondo.
«Sim, mas tens de tratar disso. Quero-te calmo.»
De novo Isaurinda e vai, beijos a voarem das mãos.
Jorge C Ferreira Janeiro/2022(332)
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“Há dois anos que andamos nisto.” Como sinto e compreendo a tua preocupação. É que são dois anos de tanta insegurança e de enorme fragilidade para todos. Hoje, somos o rosto do cansaço, do lamento e da saudade, Jorge.
Que dura realidade!
Abraço virtual imenso, meu Amigo.
Obrigado Manuela. Já cansa. Tanto tempo. Tanta vida perdida. Tanta dor calada. Dois anos que parecem uma vida. Um abraço imenso
Tão lúcida a sua crónica. Tudo como diz.
Um tempo parado. Não há dúvida que está a fazer muito mal a todos.
Continuamos sem saber, como se instalou o vírus em todos os cantos do mundo. Tenho medo!
Como irá ficar o ser humano? Os abraços fazem tanta falta. Os afectos são urgentes. Já não suporto certas notícias, não por ser indiferente à dor dos outros, nunca. Mas sim por tantos que nada sabem, só espalharem confusão.
Adorei o seu percurso de eléctrico. Havia quem fosse de férias para Algés. Como tudo era diferente.
O 28 é o meu eléctrico preferido. Nele viajo até ao Chiado. Não entro nele há dois anos. Espero que entretanto, este amarelo não desapareça. Que bem que ficavam os eléctricos, a percorrer as ruas da nossa Cidade. Obrigada, querido escritor pela sua bela e explícita escrita. É mesmo com prazer que o leio. Obrigada. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. O 28 espera por si, tem saudades suas. Infelizmente estamos privados de muita coisa. Nada como viajar de eléctico nem que seja de forma virtual. Estamos cansados. Ler um poema também sabe bem. Abraço enorme
Já me habituei ao medo. Dorme a meu lado. Acorda quando eu.
Vive ao meu redor. Como uma mosca sôfrega pelo odor a mel.
Uso “máscaras-adesivas”.
Ainda não perdi o gosto pelos abraços mas olho-os de soslaio. Os beijos? Desertaram. Exilados. Na Terra do Nunca!
Tenho sobrevivido. Resguardada. Numa semi-hibernação.
As conversas são discos riscados. Novas estirpes,sintomas e o historial da vacinação.
Não se abespinhe o mestre cronista.Valeu-me o passeio nocturno entre a Praça do Chile e Algés.A lagarta amarela levou-nos
numa viagem com retorno.Talvez hoje tenha um sonho lindo. Com um mergulho na praia de Algés.
É que apesar do “tempo parado” sempre pudemos mudar de ares.
Gratidão pela crónica, meu Amigo.É muito agradável ler-te.
Obrigado Mena. Que bem descreves este tempo, este nosso (des)viver. Sabes, na minha idade a coisa dói mais. Como iremos ser? Seremos? Abraço imenso.
Crónica real do momento que vivemos. Tempos estranhos estes. Tanto tempo. Dois anos que parecem uma eternidade. Os lugares de sempre parecem outros. Os passos perdem-se, como se caminhassem num lugar proibido.
Até quando? As dúvidas, as notícias muitas vezes contraditórias. Tantas opiniões. Depois do 3º.reforco, continuamos com os mesmos cuidados. A máscara veio para ficar.
As escolas mudam padrões. Alteram-se férias e comportamentos. Trabalha-se a partir de casa.
As pessoas não se encontram.
Que falta faz o abraço. Como é que se pode viver sem afectos? Nunca a saudade fez tanto sentido.
A verdade é que depois de tudo passar, não se sabe quando, nada será igual.
Obrigada, amigo, por estar desse lado.
Estas são as vantagens do mundo virtual e das novas tecnologias.
Um grande abraço.
Obrigado Eulália. Sim, os abraços, os afectos, a vida vivida. A falta que nos faz. Andamos, andamos e não vimos o fim da estrada. Nem sabemos se há estada. Abraço enorme
Uma crónica realista. Um modo exímio e cru de descrever este “tempo parado”. A vida em suspenso. De todos nós. A vivência pessoal e social alteradas de um modo impensável: o isolamento,os afectos adiados. Até quando? Com que repercussões individuais e colectivas? O texto narra todas estas questões,bem como o quotidiano colectivo. A mudança de hábitos que se instala insidiosamente. A ausênci de saúde também.
O autor expressa tão bem esta rrealidade actual que domina todo este tempo. Toda a nossa vida. Vamos pacientemente,ainda,um desfecho favorável, que a acontecer,não apagará as experiências várias que vivemos,bem como as mortes não anunciadas.
Obrigado Isabel. Sim, o problema é o que virá a seguir. Nunca sabemos. Tudo é inesperado e castrador. Mataram os afectos. Há quem tenha medo dos afectos. Há quem se sinta feliz. Como iremos sair disto? Sairemos? Coragem. Abraço grande.
“Iremos retomar o mundo dos afectos.”
Retomo por aqui a minha leitura de mais um “despacho de sentires” com a tua assinatura.
Pleno acordo nestas andanças desiguais e frias destes dois anos … sem previsão de parar e “retomar” o lado normal de um respirar livre!
Por último, o teu fecho de mais um maravilhoso artigo, sobre os eléctricos lisboetas tocou-me e partilho da tua opinião de uma enchente equilibrada de saudades amarelas para sorrir nos recantos desta “Lisboa menina e moça” … lembras-te?
Grande abraço meu amigo pela tua escrita bem apelativa.
Obrigado José Luís. Que bom que acreditas num regresso ao nosso antigo mundo. Estamos a viver num local estranho. Como gostava de ver a cidade de novo vestida de amarelo. Como gosto da minha cidade liberta! Abraço grande
No início do que não sabíamos muito bem o que seria o que nos fazia sentir um medo desconhecido, um Amigo alertou-me para o que desconhecíamos. Que seria grave também a nível económico. Lembro-me que fiquei assustada e por minutos não questionei. O inesperado que não acaba. Nada será como foi em vários aspectos. O medo, esse sentimento vive dentro de nós. Com o respeito pelo desconhecido e os cuidados inerentes já abraçei e beijei. A liberdade de sentir é urgente. Abraço Amigo.
Obrigado Regina. Ninguém nos irá devolver este tempo. Somos uns assistentes do tempo a passar. Que bem te deves ter sentido a abraçar e a beijar. Nunca desistas. Isto até pode não acabar. Abraço grande
“Estamos a viver um tempo parado” – É realmente um tempo estranho, este. E sem dúvida que nós enquanto povo latino que somos, sentimos ainda mais a ausência de um abraço, os encontros adiados. Até quando, querido Jorge?
Obrigado Cristina. Imensamente estranho. Tão estranho que magoa. Quando chegarão os abraços, os beijos, os afectos? Não sabemos. Dói. Abraço grande
Nunca tinha feito uma viagem de electivo tão comprida ! Ele nunca mais chega ao destino . Muitos passageiros entram nem cada paragem , outros saem, cansados deste rodar sobre carris e vão à aventura. Com os “devidos cuidados”, dizem .
Pois bem! Seja o que tiver de ser. Quem for crente , dirá “Seja o que Deus quiser !”
Obrigado Lénea, Esta viagem está a ser demasiado longa. Uma viagem sem fim à vista . Um tempo perdido. É como viver num vão de escada. Vamos tentar resistir. Abraço enorme.