Um Rio
por Jorge C Ferreira
Não saber de nada. Estar a pescar à beira-rio. Um peixe que morde o isco, a excitação. A preparação para não perder a presa. Um azar faz com que o peixe se solte e fique com o anzol. O carreto a não querer funcionar. “Uma desgraça nunca vem só.” Grita um palavrão e atira o boné ao solo. A pescaria tinha terminado por hoje. Nem um peixe. Só sobrou o isco que não serviu para nada. Volta para casa cabisbaixo. Um balde vazio. O pensamento naquele peixe que deixou fugir.
Há um peixe sobrevivente no rio. Um peixe que leva um anzol nas beiças como se fosse um piercing. Passou a ser um peixe invejado. Um peixe que nada eximiamente. Um peixe vaidosão, estiloso, cheio de energia.
O rio era visitado, pela noite, por mulheres estranhas. Mulheres de riso largo e chapéu na cabeça. Mulheres que se juntavam perto de um barco podre de velho e que, em terra, fingiam que navegavam. Tudo isto na margem direita do rio. Um lugar onde tudo era sombrio e onde apodreciam muitos barcos parados. As mulheres continuavam na sua demanda de outras terras como se o barco navegasse. Alguém fez um fogo de chão. As mulheres deixaram o barco e foram dançar em volta do fogo. Uma dança estranha, as saias compridas a arrastarem pelo chão, vozes bizarras e roucas. Uma insólita lengalenga. Tudo isto tinha o seu apogeu pela madrugada. Coisas inenarráveis. Aos primeiros alvores tudo desaparecia como se alguém apagasse as ideias. Depois vinha o dia.
Na margem esquerda viviam os encantos e as utopias. Um grupo de mulheres jovens chegava ao princípio da noite. Apesar do lusco-fusco todas pareciam belas. Peles sedosas. Iam-se despindo pouco a pouco e entravam no rio desnudas. Tanta era a beleza que até os peixes, talvez por descansarem de olhos abertos, ficavam errantes em busca do que nunca iriam conseguir. Quem roubou as pálpebras aos peixes? Os corpos a ficarem sonhos. Só não se entendia não haver ninguém a assistir a este espectáculo. Ardiam velas expostas de forma singular. Um significado só por elas conhecido. Traziam óleos e essências que passavam pelo corpo. Um banho nocturno que paria paixões. De repente uma dança sem igual. Uma sintonia que agredia os olhos mais cegos. Não sei se havia música. Se houvesse era divina e um embalo para um lugar encantado. As velas iam-se gastando. A madrugada ia avançando. As mulheres dos corpos belos vestiam a pouca roupa que tinham despido e desapareciam. Tudo parecia ter sido um sonho. Os sinais desapareciam. Das mulheres, nem rasto. Nem umas singelas pegadas. Nada.
Ouvia-se agora no açude o barulho das águas a correrem. Não tardará muito chegarão os pescadores. Virão em busca dos peixes perdidos. Peixes que foram tocados pela beleza das mulheres da margem esquerda. Peixes que agora erram num desvairo que cansa. O vaidosão já sabe o truque dos anzóis e não quer mais piercings. Há um homem perdido no canavial. Está deitado como morto. É levado para o hospital. O prognóstico é reservado.
Que rio este!
«Ouve lá! Tu estás no teu perfeito juízo? Que raio de história. Coisa mesmo de doidos.»
Fala de Isaurinda.
«Olha, apeteceu-me contar uma história fantasiosa.»
Respondo.
«Não estás bem não. É melhor ires tratar do teu mal.»
De novo Isaurinda e vai, a benzer-se com a mão direita.
Jorge C Ferreira Junho/2021(305)
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Um pescador de letras num rio encantado tece aos olhos redes entreabertas aos sonhos, a vertigem que nos aviva os dias.
Ótima leitura Jorge, um grande abraço.
Obrigado Susana. Belo o que escreveu. Que bom estar aqui. Abraço enorme.
Uma crónica diferente das últimas. Igualmente bela. A ficção no seu melhor. Somos transportados para o mundo da narrativa ficcional. Termina. Desejamos mais,porque é demasiadamente bonita.
Obrigado Isabel. Sim, uma maneira duferente de contar. Porque necessitamis de sonhar. Um rio que quer ser encanto. Abraço
Entrei nessa história fantasiosa. Embrenhei-me nela.
Como não?
Fui em busca do mágico rio. Onde as mulheres dançavam ao som das chamas da fogueira. Ao som da luz que cega.
Dei com as demais. As que se desnudavam. Se misturavam com os peixes sem pálpebras.
Se banhavam. Peles envolvidas em óleos e essências. Paridoras de devaneios. De paixões cantadas e encantadas.
Desaparecidas. Entre a bruma da fantasia. No rumor dos canaviais.
Mulheres sonhadas.
Peixes perdidos.
Um corpo. Inanimado.
Perplexa.
Maravilhada.
Surpresa.
Nesse rio de margens onde o poeta se deixou levar pela criação, delírio e
lampejo… 💙
Obrigado Mena. Tão belo o que escreveste. Há rios mágicos. Margens encantadas. Há sonhos e desejos que nos fazem escrever. Abraço
Maravilhada com este conto mágico, onde nas margens de um rio, a sua imaginação navega no mundo da escrita e da fantasia.
E nos leva a percorrer as suas margens, onde se vive o encantamento e a beleza.
Que feliz é a sua narrativa.
Adoro as suas palavras, nelas está sempre implícito a ternura e a elegância, quando fala da ou na mulher.
Eu adorei esta “história fantasiosa,” querido poeta.
Muito obrigada, meu amigo. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Também eu adirei o seu comentário. O modo como o escreveu. Uma Amiga tão generosa e tão importante. Abraço grande
Caríssimo, num cenário ímpar da tua criatividade agarras os leitores em reflexões excelentes perante “vivências” que sabes trazer após a subida do pano e entrada em palco.
Perdoa-me, chamar o destaque do “diálogo” final onde num humor simples consegues
teatralizar o enredo do texto principal.
Fascinante, como sempre!
Grande abraço!
Obrigado José Luís, Poeta. É tão bom ler os teus comentários. Tu sabes a importância que ten pars nós sermos lidos e comentados. Um abraço enorme
Belíssimo. História fantasiosa.
A dança noturna nas margens do rio.
As memórias e imaginação. A escrita sublime.
A sensibilidade do Poeta.
Obrigada por transformar a escrita numa obra de arte.
Um abraço grande.
Obrigado Eulália. De vez em quando alguma fantasia. Tudo isto podia ter sido sonhado nas margens de um rio. Ou talvez não. Também a escrita tem dias. Grande Abraço.
Espraiando as palavras na areia sem ouvir o mar!
Quem sabe se há visões nu à luz das velas!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Por aqi andamos, por vezes, na terra dos Sonhos. Os rios são sempre um desassossego. Abraço
Se dúvidas houvesse, aqui, explicitamente as palavras e os sonhos, ou a imaginação, coabitam no coração de quem escreve, poucos serão, mas, sem dúvida um dom de razão e coração se entrelaçam para navegar pela escrita e daí sai algo maravilhoso. O rio, os peixes, as mulheres, o homem (…) um universo imaginário, ou não, para quem lê há todo um mundo que o olhar sob as palavras escritas voam no sentido viagem directa ao coração. Obrigada meu amigo. Abraço imenso!
Obrigado Cecília. Por vezes sabe bem andar por estes canaviais desconhecidos. A busca do assombro, da vertigem. Que bom teres gostado. Abraço
Um misterioso rio. As suas margens. A vida.
A magia de um poeta que nos encanta nas suas palavras de luz e fantasia.
Gostei muito!
Obrigado Cristina. O mistério da vida e das margens tão bom teres comentado e teres gostado. Abraço grande
Contos de quem sonha a vida numa dança, também numa dança. Sonhos que nos devolvem liberdade. A arte de continuar cada dia. A arte.
Obrigado Isabel. Tão importante sonhar. Tão bom molhar os pés em rios encantados. A dança a eterna dança Obrigado por estares aqui. Abraço grande
Margens diferentes e de imenso encantamento. A madrugada e o dia sempre despertam emoções, utopias, cheiros, cores, danças, fogo. Quem sabe um dia estou perto de um rio e vejo tanta beleza semelhante como os olhos que escreveram este texto. Abraço meu Amigo.
Obrigado Regina. Por vezes é aoenas a vontade de querer ver. Está lá tudo. Os rios são sempre vontades que nos preenchem. Abraço imenso
Ainda bem que era um rio e não o Rio. Os pescadores são seres que têm muitas estórias para contar. Teria de ser, pois o tempo em que estão quietos à espera que os peixes ” mordam o isco ” tem de ser preenchido”. A tua fantasiosa ( tu o disseste ) estória serve para entreterem o pensamento. Bem urdida . Às vezes preenchem o espírito de tal modo que até esquecem ao que vinham. Os peixes,, também travessos,, tinham feito um acordo com as Ninfas do rio, defendendo-se dos anzóis, não, sem antes, comerem as iscas. É uma estória do dia a dia de um rio e das suas protetoras musas. Gostei . Bjinhos
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. São todos os rios que nos encantam com os seus segredos. A fantasia é algo que nos mantém vivos. É sempre um privilégio ter-te aqui. Abraço imenso