Crónica de Jorge C Ferreira | Um banqueiro fugiu

 

Um banqueiro fugiu
por Jorge C Ferreira

 

Meu abraço acabado. Minha dor sem sentido. Minha fuga sem razão. Um vulcão que se zanga. Uma ilha que sucumbe. Cones cospem fogo. Há uma nuvem que viaja pelo mundo. Uma lava que me namora. Uma terra que arde. As casas que desaparecem. As ilhas que eu amo e as outras. As ilhas dos milhões. Os milhões de pobres. Os ricos que nunca morrem enfartados. Uma foca assassinada à paulada por caçadores furtivos. Um banqueiro fugiu.

O cume da montanha. Uma mulher, despida, que espreita a vida a nascer olhando para o sol a aparecer por detrás da montanha grande. Os que sobem, descem e não caem. Uma vertigem na alma. Um desespero. Um ataque cardíaco, as ambulâncias e as suas luzes azuis. A maca. Os desfibriladores. O caminho para o descaminho. O desencanto. Suportar a vida. Desencantar as verdades. Esperar por milagres sem acreditar. Ter um oratório. Acender velas aos santos. Deixar-se cair sobre o genuflexório. Os milhões que desaparecem. Um banqueiro que fugiu.

Na televisão aparece tudo. O que acontece e não acontece. As verdades e as falsidades. Desfilam vaidades, políticos, politólogos, advogados, gângsteres, raridades várias e muita vulgaridade. Uma festa de luxúria. Uma grande farra. Gastam-se palavras e falam-se em milhões com uma incontinência que faz doer. Correm galinhas no campo. Um galo canta manhãs. Na bicha da sopa dos pobres ninguém vê estes programas. Dizem-me que cada vez há mais pobres. Um banqueiro fugiu.

Falam-se de grandes acontecimentos, de tremendas vitórias. Somos uns vencedores. O almirantado está em ebulição. Uma luta de cadeiras. Os galões dourados e um pobre que pede para lhe pagarem um galão e um pão para ensopar. A falta de dentes. Não há dinheiro para próteses. A altura de voltar às farinhas. Um hotel de luxo faz promoções a um preço que envergonha. Tudo corre conforme o esperado, dizem os que gostam de dizer coisas. Têm especialistas para lhes ensinar o que têm de dizer a cada momento. Há quem lhe chame balelas. Um porco é sacrificado num monte alentejano. Tudo é aproveitado. Um banqueiro fugiu.

Uma mulher caminha, os sapatos rombos, para a cadeia. Vai visitar o seu homem, o pai dos seus filhos. Foi uma coisa pequena, errou, foi castigado. Cumpre a sua pena na escola do crime. Ela leva o que pode para lhe adoçar aquele tempo. Caso se porte bem, talvez tenha uma saída precária. Talvez venha um fim de semana a casa. Talvez. Entretanto vai experimentando a dureza da falta de liberdade. Um cavalo selvagem teima em não ser domado. É um exemplo que alimenta muitas vontades. Um banqueiro fugiu.

A anunciada e propagandeada bazuca. A banha da cobra para todos os males. Vem aí dinheiro. Já há muito dente afiado. Ao senhor Aníbal que passou a viver por aí e tem um canto para dormir junto ao Marquês de Pombal não lhe deve tocar nada. Tanto milhão que vai beneficiar os do costume, diz-me alguém que já viu muita coisa. Dois gatos trepam um telhado em busca de sol. Um banqueiro fugiu.

Uma praia onde nunca se chega ao mar. Um caminho para o vazio. Que nos resta neste caminhar sem fim? Seremos sempre o meio caminho. A estrada para o desconhecido. Passa um peregrino. Ainda há quem tenha fé. Um esquilo enlouquecido sobe uma palmeira. O mar não chega à praia. Um banqueiro fugiu.

«Olha que o homem fugiu mesmo. Tu, sempre a martelar no mesmo.»

Fala de Isaurinda

«Nunca é demais denunciar as patifarias. Devemos falar sobre o que nos envergonha.»

Respondo.

«Pois, tens razão. Eles acabam por se safar sempre.»

Diz Isaurinda e vai, alguma tristeza na mão fechada.

Jorge C Ferreira Outubro/2021(318)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Um banqueiro fugiu”

  1. Manuela Moniz

    Adorei esta crónica! Belíssima, Jorge!
    Deslumbras-me a cada dia com a tua escrita única e maravilhosa. Ao mesmo tempo, denuncias problemas difíceis que nos causam sofrimento, com imagens de uma enorme beleza e sabor a poesia, para compensação.
    É um consolo ler-te, meu amigo. Abraço enorme.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado minha Amiga. Que bom gostares do que escrevo. Que bom estares aqui. São uma alegria os teus comentários. Abraço imenso

  2. Eulália Pereira Coutinho

    Crónica sublime. Realidade do país e do mundo.
    Notícias falsas e verdadeiras. Discussões. Opiniões.
    Realidades paralelas. A pobreza perante olhares indiferentes. Refugiados em situação inconcebível. Outros ficam pelo caminho. Ninguém os reclama.
    As catástrofes naturais avassalam o mundo.
    Um banqueiro fugiu. Quantos mais passam impunes ?
    A justiça não pode continuar cega.
    Liberdade e democracia não podem servir de cenário, nem serem coniventes , com estas situações.
    Obrigada amigo, por continuar a denunciar de forma única, as desigualdades que o mundo atravessa.
    Para onde caminhamos?
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Muito obrigado Eulália. Os seus textos aqui são sempre um incentivo para continuar a escrever. Saber que somos lidos faz bem a quem escreve. O seu comentário é assertivo, justo e informado. Obrigado

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Sempre tão importantes os seus depoiamentos neste espaço. A assertividade. A lúcida acutilância. A primorosa leitura. Muito grato. Abraço enorme

  3. Regina Conde

    Crónica de imensa lucidez e abrangente. onde está expressa a claridade do obscuro consentido. A forma como denuncias sem segredos e chamas a atenção para o mundo em que vivemos. A natureza que reclama. Quem pratica a desonestidade diverte-se. estou triste com este país. Abraço meu Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Gosto imenso que estejas neste espaço. Grato pela forma como te expressas. Abraço

  4. Cecília Vicente

    A feira das vaidades, as verdades ocultas, os feios porcos e maus. Uma sociedade clandestina apodera-se dos bens do pouco que uns e outros conseguem amealhar, por isso, esses que enchem o papo grão a grão fogem descaradamente para férias milionárias, esquecendo que nascemos e morremos de igual modo, a diferença está na classe, funerais de primeira até ao indigente. Todos diferentes todos iguais. A diferença total é que na casa do pobre há sempre uma malga de caldo para quem precise, quem pouco tem dá o mais que pode, diferentes pela honra com que assumem nada roubarem para serem felizes quando muito lhes falta. A própria natureza anda enfurecida, o ser humano volta a ser primitivo, cheio de defeitos, cheios de nada porque nada somos, todos somos um só… há que reaprender o sentido de honra, a palavra de honra não se rouba, dá-se, faz-se por merecer. A vida a descambar, a lava em erupção, outro mundo nascerá das cinzas, será o paraíso prometido? Obrigada, meu sempre amigo. Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Tão perfeito o teu comentário. Resume tudo o que devemos gritar. Tudo escrito de um modo que nos enriquece. Abraço grande

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Há sempre poesia nas suas palavras sábias.
    Verdades tão duras, descritas de uma forma ímpar. É maravilhoso o seu texto, tanto para reflectir. Não quero estragar a beleza das suas palavras, verdadeiras mas profundamente tristes. Precisamos muito do seu olhar atento.
    Grata sempre, querido escritor. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Todos nós precisamos da sua presença aqui. Neste nosso espaço. Tão bom lê-la. Abraço grande

  6. Isabel Torres

    Uma crónica poética sobre a dureza da realidade. De realidades físicas,humanas e sociopolíticas. Percorrer este texto sem reflectir é impossível. Tantas questões sublinhadas na beleza de palavras sábias.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Tão boa a leitura que fez e o que escreveu. Este é um mundo decadente. Temos de estar atentos. Grato pela sua voz neste coro de indignação. Abraço grande.

      1. Torres Isabel

        Obrigada eu,Jorge. Pelas belas e realistas crónicas que faz. Obrigada pelos seus escritos. Obrigada pelas críticas delicadas e sentidas com que comenta os meus comentários. Está decadente. Concorso. Tenho tentado fazer voluntariado com jovens em sofrimento. Tanta burocracia. Apresentaria as formações quev possuo. Irrelevante E ainda não consegui. Isto é compreensível?! Talvezz tenha de pagar parra o fazer. Infelizmente não posso. Porque,mesmo não concordando,sei que o faria.Abraço grande também.

        1. Jorge C Ferreira

          Obrigado Isabel. Continue a sua luta. Outro Abraço.

          1. Isabel Torres

            Obrigada,pela força e compreensão.

  7. Branca Maria Ruas

    Que liberdade é esta que deixa em liberdade quem devia estar privado dela?
    É admirável o modo como encadeias ideias, ligas factos, falas de milhões, de fugas e de vulcões, denuncias injustiças e, mesmo assim, ainda deixas um cheiro a mar no teu texto.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Que bom o teu comentário. Que bem sabe. Tu sabes que o mar vive em mim. Grato por tudo. Abraço grande

  8. Cristina Ferreira

    Uma forma única de descrever a realidade.
    A chancela Jorge C Ferreira.
    Muito bom

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sempre grato por estares aqui e pela tua opinião. Um grande abraço

  9. José Luís Outono

    Caro amigo,
    Num olhar revolta das imperfeições que galopam sem rédea curta, o “disco riscado” da denúncia é uma sirene talvez rouca, pela liberdade programada de injustiça constante.
    Aleijo o pulso, com murros na mesa, quando penso se fizesse um milésimo do que se apregoa, onde estaria … não fugido, mas desterrado nas vergonhas de castigos bem duros.
    Viver em Liberdade, é um padrão ímpar da democracia, mas usar a Liberdade para desfalcar, rasteirar, mentir, ou … até sorrir no idioma do cinismo “offshore”, é caso para dizer – BASTA!
    Bom traço, como sempre.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Meu Poeta e Amigo. O teu testemunho é tão importante e tão lúcido. Mais uma pérola para enriquecer este espaço. Abraço enorme.

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