Crónica de Jorge C Ferreira | Travessas, travessuras, travesseiros e travessões

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Travessas, travessuras, travesseiros e travessões

As travessas do cabelo. As travessas que a minha avó Ana e minha tia/avó Emília não dispensavam. O tempo dos carrapitos e dos cabelos enormes das mulheres desse tempo. Mulheres sábias e resistentes. As gestoras eficazes das curtas férias.

As travessas de loiça que apareciam quando os tachos não iam para a mesa. O sabor e o cheiro daquelas comidas tão belas de quentes. Comidas feitas pelas mãos da ternura. Nos dias da travessa a comida parecia ter um sabor diferente. Tantas travessas em enxovais por estrear.

As travessas da linha férrea. O que eu gostava de as ver passar. Um sentido contrário da verdade explicada. Um querer alcançar a próxima passagem de nível onde as travessas de madeira se juntavam. Os quilómetros a passarem. As travessas a ficarem para trás. As travessas da aventura. Os filmes do Oeste!

Os velhos travesseiros. Alguns ainda de palha. Indispensáveis nos antigos leitos. Os travesseiros de casal e os individuais. A tudo isto se juntava a almofada. A cabeça lá no alto. Os travesseiros calcados.

Os travesseiros quentes e saborosos de Sintra. A Piriquita. Os antigos sabores num travesseiro deste tempo. As bichas para comprar. Um sabor que se leva, quente a estalar. Repetimos sempre. Outra forma de atravessar a vida.

– Ponto final, parágrafo, travessão. Dizia o mestre enquanto fazíamos o ditado. Uma nova conversa ia começar. Tudo a preceito. Uma pressão enorme. Cada erro uma reguada. Chegar a casa com o ditado imaculado. Tudo no sítio, até o travessão. Estas memórias de aprender. A importância do travessão. A fala que não queremos perder. Tanta falta que determinadas falas nos fazem.

As travessuras da infância. As mais variadas e estapafúrdias. Travessos nos chamavam e, por vezes, saltavam chinelos que nos admoestavam. Correr o risco pelo gozo que dava. Os vizinhos que faziam queixas e ficavam debaixo de olho.

Travessuras planeadas previamente. Os alfinetes nas campainhas. A moeda pregada ao chão. O tampão atado a uma linha de nylon. A bola que partia o vidro. Tantas e tantas coisas que já esqueci. Algumas saíram-me caro. Há que assumir.

As travessas das ombreiras das portas. A vontade de saltar e lá chegar. A reprimenda imediata. Não incomodar os vizinhos. Nunca desistir. Um objectivo a alcançar. Até ao dia em que lhes tocamos sem saltar.

As travessias. A junção dos Oceanos. A travessa ondulação. Cavalgar o mar. Saber dos perigos. Dobrar os cabos. Atravessar o medo com a mente noutros destinos. Esperar sempre chegar. Esperar pelo mar seguinte. Esperar pela nova aventura.

Todas as travessas e todas as travessias da vida são marcantes. Sabem a novo. São crescimento. São parte do que nos faz viver.

«Que travessas foste buscar! Lá travesso sei que foste. Muita gente sabe disso.»

Voz de Isaurinda.

«Lá estás tu, não perdoas nada. Sempre a falar das minhas travessuras.»

Respondo.

«Pois falo e quanto às chineladas só se perderam as que caíram no chão.»

De novo Isaurinda e vai, uma mão travessa.

Jorge C Ferreira Setembro/2019(215)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

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7 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Travessas, travessuras, travesseiros e travessões”

  1. Isabel Campos

    Travessas, travessuras, travesseiros e travessões…
    Nós na a crescer na vida e a vida, às vezes, a esgotar-se em nós.

    Passadiços que teimamos fazer…
    Quantas vezes vencemos antes de chegar ao fim. As derrotas, essas, valem o que valem.
    Travessuras na vida.

  2. Branca Maria Ruas

    O travesseiro onde pousas a cabeça quando te deitas deve ser feito de sonhos para conseguires encadear tantas memórias em textos deliciosos como este.
    As tuas travessas convivem com travessuras e envolvem-nos em ternuras.

  3. Idalina Pereira

    Que crónica terna e deliciosa.
    Recordar estas travessuras é reviver uma época distante que se tornou viva na nossa memória.
    O Jorge e as suas travessuras. Deve ter sido ” fresco” como se diz por aqui.
    Obrigada pelas doces memórias!

  4. Madalena Pereira

    Tão bom recordar todas estas travessuras que me levaram até às minhas também! Obrigada por este momento delicioso.
    Um beijinho

  5. Cristina Ferreira

    Que ternura de crónica. Belíssimas memórias me trouxe. Também tive uma avó Emília e também ela usava carrapito. assim como a avó Aurélia. Duas mulheres “sábias e resistentes “, tanto. Porque não estranho das travessuras que a Isaurinda nos dá conta? Porque tu fazes magia com as palavras e esta magia é fruto da sensibilidade de quem está atento ao mundo e a tudo o que o rodeia. As memórias do aprender nas tuas maravilhosas crónicas e as travessias de que nos vais dando conta e que tanto aprendemos com elas. Obrigada por mais um delicioso momento. Abraço.

  6. Eulália Pereira Coutinho

    Sublime esta crónica! As memórias duma geração. As travessas fumegantes, no tempo em que o tacho não ia à mesa.
    Os travesseiros indispensáveis na cama, a que sejuntava a almofada.!
    As travessuras no tempo em que não se conhecia o Halloween.
    Ponto final, parágrafo, travessão…..era assim o ditado…..
    É assim a travessia da vida!
    Obrigada Jorge, por memórias preciosas comuns a uma geração e um país.

  7. Celia M Cavaco

    Que fostes escrever meu amigo…quantas recordações de mil memórias me fizeste buscar neste meu sotão cansado e exausto de tanto guardar. Se pudesse,se tivesse lágrimas estas teriam caído só de lembrar da travessa velha posta na mesa de natal pelas mãos de fada da senhora minha mãe que nela punha o doce e saboroso jantar para todos,mas,sabia feito com todo o carinho só para mim.A travessa fumegava com o delicioso frango de fricassé feito de propósito para a minha chegada,aquele doce azedo de gemas de ovos com muito limão fazia a minha gulodice…
    Só por isto,e muito do que está escrito, dei-me à emoção que me permito sentir.Especialmente hoje em que a minha mãe no meu regresso de férias cozinha a tal iguaria para trazer para o jantar assim que os km permitissem a chegada a casa… Abraço terno meu amigo

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