Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos que não me largam

Tempos que não me largam
por Jorge C Ferreira

 

Um vai e vem pandémico que nos deteriora o pensar. O pensar que é tão importante para compreender. As respostas que variam consoante as fronteiras. As fronteiras sem sentido. Muros virtuais. Linhas mal traçadas. Mais poder para uns quantos.

Cheguei um dia a este mundo e fui parido com dor. O sofrimento da minha Mãe e eu quase asfixiado. Sobrevivemos os dois para nossa alegria. A parteira cortou-me aquele mágico cordão e fiquei à guarda de quem me carregou, pariu e acolheu. Ouvi todas as histórias do tempo antigo. Das guerras, das pestes, da pneumónica, de tanta coisa. Aguentei a ditadura, lutei contra ela. Fui sempre do contra. Fui espancado, preso, solto, julgado e absolvido.

Nunca a minha Mãe pensou que viria aí outra pandemia quando eu já estivesse em idade de risco. Todos os dias oiço os conselhos que ela me daria. Lembro-me das suas mãos a correrem-me o rosto, dos beijos carinhosos, dos seus olhares suplicantes no final da vida. O coração a não querer mais. O cansaço de uma vida de trabalho. Tudo isto até eu olhar para trás e não ver ninguém em linha recta. Tenho, para minha sorte, os primos /irmãos da minha Mãe. É com eles, todos na casa dos 90, ou quase, que vou tirando dúvidas do meu tempo mais antigo. São os meus livros das memórias que esqueci.

Toda esta situação me tem levado a visitar tempos mais antigos, as pessoas que conheci e que tinham nascido no século XIX. Lembro-me do seu ar, do seu nodo de vestir, da sua capacidade de resistência. Lembro-me do meu querido Avô nascido em 1900 e que passou por duas guerras mundiais, a pneumónica e os sacrifícios que nem imaginamos, o meu tio/avô nascido em 1898. Os dois juntaram vontades e fizeram uma casa com as famílias juntas. Uma perfeita irmandade. Foi nesse colo que fui criado. Foi nessa casa que aprendi a lutar. Assim cresci.

Estudei e, assim que acabei o Curso Geral do Comércio, fui trabalhar. Comecei tinha 15 anos, trabalhei 37 anos com a tropa pelo meio. Só quando me reformei procurei outra forma de viver. Sentia que todos os meus mais velhos estavam de olho em mim.

Quando veio o tempo da rebeldia. De ver a vida ao contrário. De ter vontade de virar tudo do avesso. Aprendi a dialética à hora de jantar naquela mesa cheia de gente. O jantar com hora marcada.

Perder a fé e acreditar pouco em mim. Foi algum o tempo que assim passei. Ainda hoje me lembro quando olho para o missal por onde a minha Mãe me ensinou as orações. Orações que também sabia em latim. Arrumei a alva, o cordão e a cruz no guarda-fatos, e comecei uma vida sem muletas. Resisti até agora. Muitas vezes senti a necessidade de algo mais. Tenho de confessar.

Agora isto. Agora, neste plano inclinado e sem retorno para o fim. Esperava uma nova crise, mas não assim. Não com estes contornos. As pessoas a lutarem contra o medo. Os dias de agonia. A vida a mudar. O tempo que conta e não conta. Um confina, desconfina. E o discurso bafiento da economia.

Que cansaço!

«Olha, tu tens de te pôr fino. O que tu foste buscar. Coragem.»

Fala da Isaurinda.

«Sabes que estou sempre a lembrar-me de todos os que me ajudaram a ser quem sou.»

Respondo.

«E fazes bem. Eles bem merecem. O que te devem ter aturado…»

De novo Isaurinda e vai, um sorriso trocista na mão fechada.

Jorge C Ferreira Setembro/2020(269)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Partilhe o Artigo

Leia também

19 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos que não me largam”

  1. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente crónica. Identifico-me em muito com o que descreve.
    Regressei à minha infância, à minha adolescência, à minha juventude. Senti o carinho dos meus pais. Ouvi a minha avó falar da pneumonica, da fome que muitos passaram. Tempos difíceis.
    Lutas estudantis. Uma guerra incompreensível.
    Liberdade. Sonhos.
    Tantas memórias.
    Ninguém diria, que em pleno século XXI, o mundo fosse assolado por uma pandemia, da qual tudo se desconhece.
    A idade e a doença dão-me o estatuto de pessoa de risco.
    Que saudades do abraço.
    Nada será igual.
    Resta -nos resistir.
    Obrigada, meu amigo.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Sim, minha amiga, tudo o que escreve neste belo comentário também vive em mim. Somos a soma de todos os ensinamentos. Abraço.

  2. Cecília Vicente.

    Meu amigo, tempos estes que estamos a viver, a minha bagagem de vida nada se compara à tua embora eu também tenha algumas páginas a contar. Desde a primeira crónica que absorvo todas as peripécias, todas as viagens, noticias do teu reino, do mar que também é meu, sei como tu ir por aí. De todos os teus, histórias e estórias que preenchem toda a tua vida, fico grata por tanto, tudo fica, tudo há-de passar… Somos, dizem, um povo sacrificado desde sempre, e, continuamos o nosso fado com essa coisa que leva os mais vulneráveis, os mais desprotegidos, os de sempre…
    Dizem por aí que vamos ficar bem, dizem, simplesmente dizem…
    Fica bem, aquele abraço meu amigo, amigo que considero para sempre.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Tens tanta vida para contar. Tanta luta. Tanta coragem. Somos um caminho e caminhamos. Tens razão no que dizes. Abraço.

  3. Isabel Campos

    Pois é …

    Desde o cordão umbilical que nos fica sem ficar até aos dias deste covid que entrou sem pedir licença, fica a nossa caminhada, o que aprendemos até aqui, tal como dizes.

    Este tempo não vale nada pela dor mas vale pela oportunidade de repensarmos muitas atitudes
    e mudar. Estamos a ser postos à prova e continuamos a embarcar na vulgaridade, no show, a cuspir no chão, a fumar entre os que não fumam, a poluir sem contenção, a consumir mais do que precisamos, …

    E continua a fome e a sede… Continua a faltar o pão e a água.

    Tão fácil, não é?!

    Eu continuo a fazer praticamente tudo como até aqui ….Algumas precauções e cá vou em cada dia a dia. Sem medo.

    Beijinhos Jorge e outros tantos para a Isaurinda. Até vou ver quando nos encontramos e assisto a um ralhete ☺

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Isabel, minha Amiga. Tu és um exemplo de caminhar. Sim, ainda te penso ver. Obrigado por tudo. Abraço.

      1. Isabel c

        Ralhete da Isaurinda a ti ☺ queria dizer.

  4. Isabel Campos

    Jorge

    Agora só a tentar deixar o que a nossa querida Ivone te deixou de coração cheio.

    Eu volto mais logo

    ❤️❤️❤️
    “Meu querido amigo Jorge, apesar de seres muito mais novo, as nossas vidas têm muito em comum. Por isso também somos irmãos. Também eu nasci de duas famílias lutadoras e resistentes. De pequenina, ouvia em convívios ( às vezes nascidos para enganar a polícia política ) que mais um tio/a, primo/a, familiares mais chegados e amigos/as, tinham sido presos pelas suas ideias, pelas suas lutas contra o poder fascista instituído. Lembro-me de, com 5 anos, ter achado uma maravilha o casamento da irmã mais velha do meu pai com o seu ” namorado” ( ambos com mais de 50 anos, chegado do Tarrafal e de outras deportações nas costas Africanas (Esperaram perto de 20 anos um pelo outro.). Aos poucos ia sabendo mais. Aos poucos, acompanhava a minha tia/madrinha de quem herdei o nome,( Ivone Teles) a reuniões. Com 10 anos tive o 1º contacto com a PIDE. Num encontro realizado no Grémio Operário acompanhei-a. Trabalhava-se para as Eleições onde um dos candidatos era o Norton de Matos. Tossan entretinha os mais novitos contando histórias e desenhando num quadro. De repente uma ” confusão “, uma balbúria e eu, com muito medo, acho que prometi a mim mesma não parar. E não parei. Desculpa estar a contar sobre mim, sei que não é muito correcto. Mas não foram, também, estas vidas, que nos tornaram” irmãos?” E não selámos a nossa irmandade num bonito abraço já com anos em liberdade?.” ” E agora, isto,” dizes e eu subscrevo., Nem podia ser de outro modo. Adorei o que escreveste e como o fizeste. Deste-me o ” mote ” e eu contei o que também nos torna amigos/irmãos chegados. Obrigada por fazeres parte dos meus dias. Longe, mas com tanto em comum.
    Espero que publiquem , mas como não tenho ” site ” e não sei o que é URL, vou fazer coppy e passarei para a tua página.. Beijinhos amigos pela troca de recordações. <3 .

    1. Isabel Campos

      Tanta vida na vida. Uma vida de coragem, de entrega, de solidariedade, …
      Nem sabe o quanto a admiro para além do muito que gosto da Ivone. Muito, muito.
      Beijinho grande, de ❤ para ❤

      1. Jorge C Ferreira

        Beijinhos, Bé. Obrigado muito.

        1. Isabel Campos

          ☺☺☺

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel, por trazeres até mim, as palavras da nossa querida Ivone,
      Ivone, minha querida Amiga/Irmã, obrigado por estas palavras em que te expões sem medo. Mulher corajosa, mulher imensa. Mulher que o acaso, ou não, trouxe até mim. Acrescentar algo ao teu comentário seria estragar. Beijos.

      1. Isabel Campos

        ❤🌸

    3. maria fernanda da cunha morais aires gonçalves

      Por tudo o que passámos e cumprimos com regras, quer em casa, quer no trabalho, na sociedade, no país, na família, pensávamos que estávamos na recta final e que nada mais iria de novo acontecer. Mas não. Como nos enganámos! Agora mesmo ao cortar da meta surge este contratempo. Todos têm que nos compreender. Isto é um pesadelo!
      Esta semana abracei seis amigos como se fosse a última vez. Desde Março que não estávamos juntos. Um deles tem uma insuficiência respiratória e nenhum de nós o quer prejudicar.Não sabemos qual de nós morre primeiro quando sabemos que todos nós temos a morte garantida.
      Já não há volta a dar ao assunto. Deram cabo da esperança de Vida!
      Cada um na sua . Quem inventou este Vírus?

      1. Jorge C Ferreira

        Obrigado Fernanda. Coragem minha querida amiga. Lembra-te pelo que já passámos. Será isto que nos vai derrotar? Vamos lutar, resistir. Abraço imenso.

  5. Branca Maria Ruas

    A nossa geração já passou por muito. Por mudanças radicais. Faltava-nos esta…
    Não podemos perder a esperança.
    Um abraço, querido Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria, ninha Amiga. Sabes o que agradeço por tudo. A esperança nunca a iremos perder. Sabes que dizem que “a esperança é a fé dos laicos”? Abraço grande.

  6. Cristina Ferreira

    Uma bela crónica onde me identifico.
    Abraço, querido Jorge

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Obrigado por estares sempre aqui com uma palavra. És uma amiga solidária. Abraço grande.

Comments are closed.