Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos inquietos
Tempos inquietos
Insinuante. Um olhar que trespassa muros e paredes. Um caudal de sedução. Uma mulher que podia ser uma estátua de um escultor de beldades. Tudo perfeito no que os nossos olhos vêem. As pernas cruzadas e enroladas uma na outra. Uma boquilha enorme. Um cigarro. Uma explosão de fumo.
Tudo naquela sala é estudado ao mínimo pormenor. Tudo é de um tempo em que o belo se mostrava no mais pequeno detalhe. Um tempo em que o tempo passava sem aviso. Os móveis de uma arte que marcou e marca muitas vidas. Os vidros e os cristais. As cores que filtravam as luzes. Uma “Chaise longue”. Um corpo desatendido. Um provocatório estado de embriaguez.
O avesso das virtudes consagradas. A consagração da hipocrisia. A rebeldia. A coragem da transgressão. Ultrapassar os limites proclamados por quem não os cumpre. Saber que, depois disso, nada vai ser igual. Arriscar. Perder o medo. Desatinar. Ser apodado de louco e continuar. Não há hospitais para tanta gente.
A mulher continua a fumar. O fumo invade todo o salão. Os cortinados de veludo não se queixam. As paredes vão escurecendo. A sala toda fechada. Um segredo bem guardado. Uma tela de gente viva e atrevida. Invadir o espaço dos intolerantes, dos fundamentalistas, dos falsos pudores. Crescer muito e chegar à liberdade.
Um pintor monta o cavalete, coloca a tela branca, espalha as cores na palete, afia os pincéis na boca. Prepara-se para pintar a mulher que se encontra perdida na “chaise longue”. Há pingos de suor que escorrem no corpo do artista. Os seios firmes da mulher são desenhados a rigor. A cor da carne tem rasgos de divindade. Será uma Anja? Asas não tem. Ele decidiu não as pintar. Os lábios são de um carmim devorador. O ambiente é recriado de um modo fidedigno. Olhamos para a tela e somos transportados para aquele ambiente de liberdade para uns, de pecado para outros. O pintor bebe muito. O que ganha com os quadros não chega para a bebida. Bebe e alimenta-se com a busca do belo. Adora a beleza dos corpos nús. Adora os ambientes turvos. Ama as profanas deusas.
Num cabaret dança o atrevimento. Um tempo de descoberta. Uma vida que acaba nas mansardas de uma cidade inquieta. Assiste quem quer. Trajes arrojados. Pernas escultóricas. A beleza a dois passos de nós. Muito fumo, muito álcool, muita luz. A dança faz disparar as pulsações. O mundo está a mover-se. Num lugar distante há quem se ame num prazer louco.
O cigarro da mulher acabou. Tudo o que faz é feito com requinte. Fala agora como se tivesse renascido. Uma voz quente, quase rouca, uma libidinosa maneira de falar. Há quem a ouça. Há quem a deseje. Ela mantém-se firme no seu discurso. Sabe de todas as danças, de todas as falas, de todos os fumos. Conhece os segredos da sedução. Conhece a força do seu olhar.
«Olha do que te foste lembrar! Muito gostas tu das histórias desses lugares.»
Voz de Isaurinda.
«Só estou a tentar falar de um tempo que foi marcante. Nada mais.»
Respondo.
«Olha tu ganha juízo. Já tens idade para isso.»
De novo Isaurinda e vai, a mão a fazer o sinal da cruz.
Jorge C Ferreira Setembro/2019(217)
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A beleza sempre presente. A sedução,
O tempo da hipocrisia. Os desejos algemados.
A irreversibilidade. O instante sem retorno.
A tela que vais pintado tem o azul do mar e as cores da liberdade.
Obrigado Maria. Como gosto do teu comentário. Tão belo e sedutor. Abraço
Tempos inquietos. Os nossos olhos, ao atravessarem a narrativa respeitante aos referidos tempos inquietos, têm diante deles, a cena – as belezas e os detalhes como quadro vivo; como universo fantástico.
Tal visão é-nos dada pelo primor da escrita.
Abraço. Eugénia
Obrigado Eugénia. Generosa amiga. Sabe bem ler o seu comentário. Adoro. Abraço
A beleza veste seda, extrapola limites, dança liberdades plenas!
Poesia…
Um abraço, gostei muito.
Susana Canais
Obrigado Susana. Um comentário que é um Poema. Uma maravilha. Grato. Abraço
Eu também agradeço, abraço.
Tempos inquietos lhes chamaste. Tempos que uns viviam, tal como o quadro que pintaste de palavras. Na tua escrita sempre uma mistura de tintas. A transgressão que apetita os sentidos. Os lugares do prazer de uns e pecado de outros. De tão escondidos só tarde as raparigas ouviam em segredo falar. Havia curiosidade, mas o resguardo necessário para não haver certezas. Nos livros que se liam adivinhava-se que havia uma verdade. Eram meios só acessíveis a alguns e alimentavam as fantasias de sonhos também proibidos a muitos. A sedução sempre reprimida. Mesmo famílias não formatadas pelas religiões, escondiam das ” suas ” raparigas. Só mais tarde se adivinhava o prazer a dois. A Isaurinda sabe como foram marcantes para ti esses tempos. Há segredos só teus, mas ela sabe-os, ou não fosse o teu alter-ego. Gostei, como sempre gosto, da forma como te ” despes ” de algumas grilhetas, contando, mas de uma forma nunca chocante, porque as tuas palavras são claras, mas nunca vulgares. Beijo amigo
Obrigado Ivone. Que tempos falas. Este país escuro. As outras festas. Tu sabes tanto. Como me compreendes! Abraço.
Confio na tua excelente forma de escrever. A falta de claridade, provocação, tentação, sedução, onde os tons quentes e persuasivos são uma constante. O quadro, a que deste o nome de Tempos Inquietos, finaliza com a assinatura da Isaurinda. Fantástico texto onde decorre um tempo de vontades. Abraço Jorge.
Obrigado Regina. Não calculas como adoro quando chamam quadro ao que escrevo. Estar tudo exposto ao olhar das pessoas. Que bom! Abraço
Muito bonito, sensual ….
Como sempre Jorge é tão bom ler o que escreve. Obrigada e abraço.
Obrigado Maria da Conceição. O que eu gosto de saber a sua opinião sobre a minha escrita. Amiga generosa. Abraço
Ler-te é ser pintura e ser pintor. É ser poeta e ser poesia. É dançar a valsa mais bela até às 12 badaladas. É criar a mais intensa e bela história e ser o protagonista da mesma. É ser viagem e ser destino. Tu, querido Jorge escreves o belo da forma mais sublime. A tua escrita é como aquela “sala” , “em que o belo se mostra no mais pequeno detalhe”. O belo e a liberdade, A liberdde do pensamento estético. E não só.
Obrigada uma vez mais por nos fazeres sonhar e obrigada também à Isaurinda por nos fazer acordar. Desta vez, se não fosse eu, onde eu já ia. Abraço
Obrigado Cristina. Que belo comentário! Tão bom ler-te. Grato por tudo. Uma balsa e um abraço.
Adorei! A Isaurinda parece que nem tanto… Ela é bem do tempo da repressão sexual. Tristes tempos em que tudo o que fosse prazer era pecado. A Igreja Católica encarregava-se disso como ninguém para manter os fiéis sob controle. Quanta hipocrisia, meu Deus! Ainda bem que havia gente que transgredia…Assim se coloriram vidas insuportávelmente cinzentas .
Parabéns, meu amigo pela descrição primorosa de todo o cenário! A Liberdade também lá estava. Muito bom!
Que delícia! Eu a ler e a ver o quadro: picante, sedutor, desafiante. Amei! Tina Fernandes
(Vou ler os outros).
Obrigado Maria Celestina. Como adorei o seu pequeno mas inciso comentário. Está lá tudo. Abraço
Obrigado Madalena. A nossa educação judaico/cristã ainda é culpada de muitos medos. O valor inteiro da liberdade leva tempo a instalar-se. Abraço