Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos e acontecimentos II

Tempos e acontecimentos II

por Jorge C Ferreira

 

Enquanto as guerras e as ameaças continuam, homens mulheres e crianças morrem. A diplomacia parece coisa de enganar. A malvada geoestratégia.  As eleições, as falsas e as esquisitas, também. Maduros e verdes. Nos Estados Unidos a luta eleitoral parece reacender-se. O Trump já está bem da orelha e o Biden já deu lugar à Kamala. A presidente do Bangladesh fugiu de helicóptero para a Índia. Até na sóbria Inglaterra as manifestações de extrema-direita dispararam em várias cidades. Tudo ligado a informações erradas sobre a nacionalidade de um miúdo que matou três crianças, uma delas portuguesa, e feriu mais não sei quantas. Tudo isto mostra um Mundo estranho. Os meteoros voam perto de nós. Um mundo onde o dengue anda já por aqui, as temperaturas aumentam. O que restará de nós no próximo período da terra? Existirá ainda terra?

E aqui temos tanta coisa para discutir no tal café. O café que ficava naquele largo dominado por um senhor de garfo em punho. Os mesmos eléctricos a passarem. Os poucos carros a aparcarem. O quiosque dos jornais do Totina já fechado. Iria abrir muito cedo no dia seguinte. Este era o café onde depois de jantar íamos beber o café e tentar fazer a digestão. Algumas vezes chegávamos mais cedo e jantávamos na cave. Uma sala lindíssima, um mural espantoso. Depois, eram as conversas sobre tudo e mais alguma coisa. Desde o futebol à política. Havia coisas de que se falava com muito cuidado. Eles estavam em todo o lado. Em todas as esquinas. Os bufos. Uma escória que se vendia por dez reis de mel coado. Desapareceram todos como num golpe de magia após o 25 de Abril.

Hoje vamos falar de mais uma figura daquela tribo que, por vezes, frequentava a nossa segunda casa.

Era alto. Tropeçou em muitas coisas, como todos nós. Regressou à vida, endireitou-se. Sempre algo excêntrico. Chamavam-lhe desaparafusado. Ele ria-se. Arranjou um divertimento que levava à risca.

O café mudava de frequência conforme as horas e os dias. Só aquele tempo entre o após jantar e a partida para a noite alta nos pertencia. Eu sei, tenho de contar o divertimento do fulano…

Aos Domingos a personagem, primeiro comprava a Bola, na altura um trissemanário e que tinha aquele tamanho enorme, depois entrava no café a tempo de arranjar lugar. Sabia que os velhotes (Senhores da idade que eu tenho hoje, mais ou menos). Estariam a chegar para ocupar os seus lugares, uns vindos de casa, outros da missa dominical. Era nessa altura que ele abria o Jornal e começava a leitura. Passado um quarto de hora, mais ou menos, fechava o Jornal, enchia os pulmões de ar e cantava alto, goelas todas abertas: “O Sole Mio”. Todo o café parava, perante tal performance. Algumas chávenas tremiam nas mãos dos clientes. Algum café entornava-se. Ele abria o jornal de novo e recomeçava a ler como se não nada tivesse acontecido. E ia repetindo a mesma cena até se cansar ou o gerente o vir chamar a atenção até ao cansaço. Acaba por sair, pelo seu pé, e quando lhe apetecia. Saía com um sorriso aberto de par em par. Assim tinha estragado a manhã dos outros. Baralhado as conversas. Estragado todos os ouvidos bem apurados. Os empregados respiravam fundo.

A hora de almoço estava a chegar!

«Olha que tu contas cada uma! Não sei se estás a inventar ou se esse doido existia mesmo!

Fala da Isaurinda.

«Existia, podes acreditar.»

Respondo.

«Contigo estou sempre de pé atrás. Não sei que te diga.»

De novo Isaurinda e, vai, a benzer-se.


Jorge C Ferreira Agosto/2024(445)

 

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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11 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos e acontecimentos II”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado, José Luís, meu Amigo, Poeta. Que excelente comentário. Nós qur sempre vivemos no fio da navalha. Temendo aqueles botões sinistros e fatais, que ditam o fim de tudo e de todos. A poeira final. O Armegadão lhe chamam os que lêem a Bíblia. Vamos vencer os tiranos, meu Amigo. Vamos ser capazes. A minha gratidão. Abraço.

  2. José Luís Outono

    “Existirá ainda Terra?”
    Uma questão pertinente, face aos complexos de hoje … um disparo pode motivar uma guerra, e esta o desaparecimento da Terra, face a loucos que “produzem” armas nucleares e prometem dizimar a Terra, esquecendo que cairão também na envolvência dos núcleos nucleares.
    Cada vez mais sinto esses medos, e pergunto-me das mentes que só sabem governar destruindo … face aos pensamentos “desaparafusados”.
    Custa-me ficar indiferente, ou caminhar seguramente, por entre factores sem mente.
    Onde estamos, quem somos, e o que fazemos … ouvi no outro dia numa esplanada, “o mundo anda bem desaparafusado, e os aproveitamentos aparafusam teorias de desvios, quem sabe para fugirem para bem longe … Marte … quem sabe?
    Excelente traço de um viver preocupante onde ainda andamos.
    Grato por mais uma leitura e lógica reflexão!
    ABRAÇO!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, José Luís, meu Amigo, Poeta. Que excelente comentário. Nós qur sempre vivemos no fio da navalha. Temendo aqueles botões sinistros e fatais, que ditam o fim de tudo e de todos. A poeira final. O Armegadão lhe chamam os que lêem a Bíblia. Vamos vencer os tiranos, meu Amigo. Vamos ser capazes. A minha gratidão. Abraço.

  3. Maria Luiza Caetano Caetano

    Excelente Crónica. Tudo tão bem observado, e bem descrito. Um narrador perfeito, não é fácil falar do mundo, no estado deplorável em que se encontra. Só vim aqui, para agradecer a verdade das suas palavras e dizer-lhe, mais uma vez o quanto admiro a sua escrita. É nobre e inteligente. Continue, meu querido escritor, “Até que a memória lhe doa.” Abraço grande,

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, querida Amiga. A sua presença é sempre muito importante. Espero continuar. A minha enorme gratidão. Abraço enorme.

  4. Mena geraldes

    ontem perdi-me à procura da lua.
    misteriosa, mística, insondável.
    dei por mim a escrevinhar uns
    tantos ditos a essa dama que
    restitui as benesses ao epílogo
    dos dias.
    voltei só agora à tua crónica.
    para a devorar em três tempos.
    pouco mais tenho a adiantar ao
    que referi na sua primeira parte .
    apenas para te sussurrar…

    o tempo até pode luarizar os teus
    cabelos, afadigar o corpo e mesmo
    enfraquecer os lampejos de outrora.
    só não permitas que rasurem os
    devaneios, esbatam o gracejar, te
    desmemoriem dessa genial vocação
    para os escritos, às lembranças e às
    observações sobre o actual mal estar do mundo.
    não ousem intimidar a revelia,
    esgotar a intensidade das palavras,
    ameaçar a emoção a par com a sensatez, o rigor e o discernimento.
    te inibam a intenção de entressonhar
    te reinventares em amorosidade e
    te impeçam de conceber, idealizar, tecer e criar.
    serás sempre o mestre dos vocábulos
    esmerados, esboçados a pena de ave.
    tu és este preciso momento.
    o senhor que conduz o leme
    que usa o astrolábio
    e se rege pelas posição das estrelas
    desenhando novas cartas de marear.
    num qualquer mar bravio.
    tu és ainda o que narra as aventuras
    e desventuras dos achamentos!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. É sempre tão bom ler os teus comentários. Sempre poemas que vêm com as marés. Espero nunca te desiludir. A minha mais profunda gratidão. Abraço enorme

  5. Branca Maria Ruas

    Um Mundo muito estranho este em que agora vivemos…
    E as memórias de outros tempos em que “eles andavam por todo o lado”.
    Não desapareceram, andaram escondidos mas muitos ainda andam por cá. E agora já aparecem sem vergonha porque sabem que têm muitos seguidores….
    Talvez agora existam também alguns “desaparafusados”. Se calhar não cantam “O Sole mio” mas terão encontrado outras formas de se alhearem da realidade que, por vezes, não é nada fácil de aceitar.
    Se não estivermos despertos para a beleza das “pequenas” coisas corremos o risco de não nos conseguirmos libertar da angustia que causa a impotência perante tanto ódio e violência que existe no Mundo.
    Temos que aprender a viver poeticamente a vida, tal como defende Edgar Morin. Penso que é mesmo a única maneira…
    Um abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. É tão bom ler aqui as tuas palavras. Sabes do que falas. Parece estarmos em fim de ciclo, só ainda não sabemos o que aí vem. Sim, tens razão, temos de procurar o belo para não nos afundarmos. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  6. Eulália Coutinho Pereira

    Crónica excelente e tão real. Que mundo este! Dia a dia tudo se transforma. Mata-se, rouba-se, sem olhar a meios para atingir os fins. Assiste-se à destruição em directo. Crianças indefesas,a quem roubam o direito de viver. Imagens que não esquecem.
    Eleições. Manifestações. Mentira. Informação e contra informação. Os senhores da guerra decidem o destino da Humanidade.
    Tudo arde, enquanto alguém canta o “Sole Mio”.
    Como será o futuro dos nossos netos?
    É urgente Paz!
    Obrigada Amigo por tudo desse lado.
    Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Que bom o seu comentário. Fala de todas as desgraças que nos querem destruir. Sim, que mundo virá aí? Vamos ter coragem e não perder a esperança. Será que a Poesia nos salva? A minha imensa gratidão. Abraço enorme

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