Crónica de Jorge C Ferreira | Saber Ver
Saber ver. Aprender a contemplar. Imaginar a vida para lá do que vemos. Como se chega aqui? Como vamos lidar com toda esta informação?
Saber que se tem um amor do outro lado do mundo e não saber o lugar, a morada. Ter toda a vida por escrever. O destempo. O desespero.
Chegar ao inimaginável lugar e abrir os braços ao novo vento. Sítios que não vêm nos mapas, nem nos globos com lâmpadas que iluminam as terras e os mares. Lâmpadas esquisitas em terras de lamparinas. Aves, muitas aves. Estranhos cantares. Há uma mulher que corre alvoraçada, é branca, lívida, magérrima. Uma ágil mulher que corre na direção de um lugar, para nós, inexistente. (Esta nossa mania de chamar inexistente ao desconhecido.) – É louca! Diz alguém que não vejo. Tudo não passa do ziguezaguear dos sons que se misturam e nos envolvem. Sons novos para a nossa memória. Sons iniciáticos. O corpo a ser aprisionado pela estranheza.
Olhar e nunca se cansar. Em cada olhar uma nova visão. Um novo sentir. Formigueiros que mudam de sítio. Barrigas que mudam de corpos. Corpos que mudam de lugar. Duas casas quietas. Não sabemos quantas vidas por desvendar. Apagou-se uma vela. Nasceu uma erva. O contínuo renascer. O verde fogo. As virtudes das santas apeadas dos altares. Sempre uma cruz nalgum lugar. Sempre um sítio que merece uma cruz. Sempre alguém a fazer o sinal da cruz. Há sempre quem se procure salvar na terra da salvação.
Há locais que são como luas embonecadas. Locais que têm um halo difícil de descodificar. Terras de noites loucas. Terras em que se espera que o impossível aconteça. Terras onde as mulheres parecem nascer da terra com archotes e olhos flamejantes. Seguem-se as danças que ninguém se lembra e falam-se línguas nunca faladas. Os homens guardam o fogo e afastam as feras. O barulho do fogo é azul. As mulheres saltam a noite toda. Uma árvore sorri ao febril encantamento. Não desce nenhuma cobra. Sobem os rapazes, trepam os galhos e assistem a tudo. Esta é uma noite sem manhã.
As noites são mães das manhãs. Em cada manhã há uma nova coisa para olhar. Há os que contam o que vêem aos que perderam a visão. É entre lágrimas de saudades que estes multiplicam a descrição e chegam à euforia do nunca visto.
Porque ver é algo que está num imaginário desocupado e pronto para tudo. A beleza pode ser uma voz que se ouve, um braço que nos toca inadvertidamente, um beijo mais arrastado sem nenhuma explicação. Procuramos, tantas vezes, o belo com o belo ao nosso lado! Tudo não passa de uma maneira de ver, escutar, tocar, cheirar, provar. Não ter medo de comer a vida. Não ter medo das dentadas grandes. Não dizer que não a um beijo ou a um abraço. Saber a linguagem dos corpos e da natureza. Saber estar só, onde o silêncio é um grito. Conhecer a mãe de todas as coisas e não saber de nada.
«Que raio de viagens andas a fazer ou a tramar? Tu não me assustes!»
Voz de Isaurinda.
«Nada disso. Apenas outra maneira de ver as coisas.»
Respondo.
«Espero que sim. Porque contas para aí coisas! Valha-me Deus.»
De novo Isaurinda e vai, a mão a espantar bruxedos.
Jorge C Ferreira Setembro/2019(216)
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Ver e sentir a beleza que nos rodeia. Saborear cada momento como se de uma iguaria se tratasse. Desfrutar a vida e partilhar afectos sem nunca deixar de sonhar.
Gostei muito deste teu olhar! Tu fazes parte dos que sabem ver.
Obrigado Maria. Andamos a aprender a ver até ao fim. É uma aprendizagem imensa. Que bom que me lês. Abraço.
“Não ter medo de comer a vida “ – palavras que eu mastigo e saboreio , uma aventura que me fascina. Vamos ver com o coração, porque o essencial é invisível aos olhos. Obrigada por este momento. Lindo!
Obrigado Cristina. Sim, dentadas grandes e fascínios. Tentar ver sempre mais. Abraço
Maravilhoso o seu texto Jorge. Bonito como sempre.Fica aqui uma palavra de apreço para os comentários da Ivone Teles que tão bem se entrelaçam e completam os seus textos. Obrigada aos dois por escreverem coisas tão bonitas e me darem oportunidade de ler. Abraço.
Obrigado Maria da Conceição. Agradeço pelos dois. A minha generosa Amiga/Irmã esmera-se nos comentários. Vamos viver. Abraço
” Saber ver. Saber olhar. Saber que num lugar há alguém que não se encontra. Uma Mulher espera-o, mas os lugares mudam com o rodar do mundo esférico. A noite traz sonhos que se vivem como realidades. As utopias crescem. Estão em cada esquina. Há beijos, abraços e toques que têm o perfume dessa Mulher.É ela? Não sabe. A noite é mãe em trabalho de parto. De manhã é um dia recém nascido que se toma nos braços numa nova procura. E a vida é assim vivida, porque a esperança não morre, nunca. É bom não esquecer que é a procura que leva as gentes a encontrar as utopias. E tu o dizes :” è preciso não ter medo de comer a vida.”. Beijo
Obrigado Ivone. Sempre brilhantes os teus comentários. Não sei se os meus textos os merecem. És a minha generosa Amiga/Irmã. Grato por tudo. Abraço
Noite mágica! É preciso ‘não ter medo de comer a vida’… adorei! ‘Não dizer que não a um beijo ou a um abraço’ . Tanto nos fez imaginar nesta narrativa, meu amigo! Que talento! Obrigada.
Um beijinho
Obrigado Madalena. Nunca ter medo do que a vida nos oferece. Ser também um pouco de imaginação. Abraço