Crónica de Jorge C Ferreira | Sabedoria

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Sabedoria

Lembrar os sabores da pele e dos lábios. Sabores que desaguaram na nossa vida. Coisas que cobriam os corpos. Os corpos a quererem ser despojados de toda aquela parafernália de tecidos. O sabão azul e branco. O vinagre para dar brilho ao cabelo.

As pernas brancas e sem varizes das mulheres antigas. Os carrapitos. Os cabelos do tamanho da vida. As travessas e os ganchos. Um fio e uma medalha com a foto do falecido ao peito. Um camafeu. Um anel de pedido e duas alianças. Uns brincos muito antigos de filigrana. Sempre um casaquinho de malha para aconchegar. Um lenço, sempre um lenço de cabeça.

As comidas conforme as estações. A fruta da época. As bananas da Madeira. O Ananás dos Açores. As laranjas do Algarve e as enxertadas de romã da Vidigueira. As cerejas do Fundão. As amendoeiras em flor. As pinhas e os pinhões. Um copo de vinho e um digestivo.  Nem um comprimido. Nem uma doença. Mulheres de uma só vida. Mulheres com uma vida até à morte. Mulheres de um só sentir. Mulheres de um só amor.

O negro. A roupa assumida e depois o luto aliviado. A sabedoria de muitos anos. A idade tão crescida. O saber tão antigo. O ar pensativo. As regras e a educação. As mãos delicadas e ternurentas. Os percalços e as desilusões. Os caminhos todos da vida. A idade maior. Os tapetes e as escalfetas sob as mesas de camilha. O tricot. O alfinete de ama e o fio a correr. Os cuidados necessários. Os perigos a crescerem. Rezar antes de se deitarem. Benzerem-se ao acordar. O Missal e a missa do galo. Os madeiros, o fogo. Os rituais.

Um passeio às origens. A vontade de voltar ao início de tudo. A vida mais dura. Os sentimentos a desenvolverem vontades. Uma roupa nova. A longa viagem. Algumas vertigens. Esperar pelo nunca visto. Esperar pelas novidades na terra do nada. Muita coisa parada no tempo. Muito tempo parado na vida de quem se recusa a fazer o caminho. As diferenças que ainda não acabaram. Uma parte do País a fechar as portas. As chaves nas fechaduras das portas. Um rio selvagem que foi domado. Chegará o dia da revolta?

Os filhos já velhos. Os netos e os bisnetos. Mesas cheias de gente. Uma algazarra a que ninguém põe cobro. Tem de chegar a voz do mais velho para agradecer a refeição. Os mais novos fingem tudo e não ligam a nada. Estão no seu tempo de negação. Tudo se compõe. As coisas que dão gozo também cansam. Há um dos mais novos que toca viola e canta uma canção. Todos cantam o refrão. Uma festa grande.

Coisas aqui lembradas de festas muito antigas. Quando a discussão à volta da mesa fazia lembrar uma família Italiana. Os beijos e os abraços. Amigos que apareciam. A mesa mais antiga que a pessoa mais velha. Uma mesa cheia de amor, farta de carinho. Um queijo especial. Um vinho com nome e um whisky velho. Os bolos caseiros. Tanta mão de obra na cozinha.

Vivam as nossas Avós Sábias. Muitas saudades.

«Olha o que tu foste lembrar. Até me emocionei. Sabes do respeito que tenho pelos mais velhos.»

Fala de Isaurinda.

«Sabia que ias gostar. Agora também já sou velho.»

Respondo.

«Pois tá bem. Lembra-te também do que já foste.»

De novo Isaurinda e vai, a saudade nas mãos.

Jorge C Ferreira Abril/2019(205)

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12 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Sabedoria”

  1. Madalena Pereira

    Muita saudade e ternura nesta crónica que tanto me emocionou! Adoro a sua sensibilidade! Muito obrigada, meu amigo- Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Um comentário sentido este que lhe agdadeço. Abraço

  2. Teles Ivone Teles

    Esta tua ” SABEDORIA ” lembra-me a Universidade da Vida. Porque eram esses os saberes de então, talvez mais profundos e menos esquecidos, do que os das Escolas. E quando somos velhotas como eu, fazemos ” marcha atrás ” no tempo e revivemos as vidas das nossas mães e avós. Até mesmo de nós próprias. Como o mundo evoluiu e se transformaram os passados. Emocionante, sim, esta tua crónica. Tudo o que nos conduz às recordações nos desperta o coração. Como irá ser? Como recordarão as suas vivências, as nossas? É sempre bela e muito característica a forma como abordas, na tua escrita, tudo o que é VIDA. Beijinhos meu querido amigo/ irmão. E que bem me fizeram as lembranças que despertaste em quem já vai a caminhar talvez na estrada final.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Ainda tens muito caminho pela frente. Não te esqueças que temos um encontro marcado na Avenida das grandes liberdades. Abraço

  3. Cristina Ferreira

    Emocionaste a Isaurinda e emocionaste-me a mim. Gerações diferentes e tanto em comum. As cores, os sabores. As avós sábias. O luto, o lenço na cabeça. Muita dor. As maiores. E muito , muito amor.
    Os encontros em família, muita alegria e uma viola . Há cantares e danças , porque a vida continua, nos filhos, nos netos, bisnetos.
    Hoje, a tua ternura, lucidez e talento, trouxeram-me as minhas avós. As minhas Avós Sábias Emília e Aurélia. Que mulheres. Que histórias de vida.
    Se me permites, é a elas que hoje dedico esta emocionante crónica.
    Beijinhos, um abraço e obrigada. Sempre.
    Cristina

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Fico contente por teres recordado as tuas Avós. Faz-nos bem. Abraço

  4. Regina Conde

    Uma vivência aqui outra ali, acaba por fazer parte da nossa memória. O nosso património individual. Assim acontecia na Páscoa. Pernas brancas sem varizes da mulher que nunca foi idosa. A minha avó materna. Maravilhoso texto. Obrigada Jorge. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Que boas as recordações que me contas. Que bom o que me dizes. Abraço

  5. Célia M Cavaco

    Um texto rico de todas as memórias etnográficas.A família que era família nunca faltava,se faltava era porque estava a braços noutras terras de língua estrangeira. As avós,as filhas tudo embrulhado em lembranças de afectos.Que recordações boas escreves para que nós possamos ler e reviver quem teve dias desses…
    Abraço meu amigo,Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Que bem reproduzes essas vivências. Que bem o escreves. Abraço

  6. Eulália Pereira Coutinho

    Emocionante.
    Só compreende verdadeiramente estes quadros, quem tem estas memórias.
    As vivências. Os pormenores. Todos descritos de forma incomparável.
    Um abraço amigo. Obrigada.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Grato pela sua leitura e comentário. É sempre bom sabermos a opinião do outro lado. Abraço

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