Crónica de Jorge C Ferreira | Que vida

 

Que vida
por Jorge C Ferreira

 

As noites que se instalam sem darmos por isso. O escurecer que nos cala. Horas e horas de desafiar o tempo. Há quem tenha medo da noite. Há quem viva cada noite como se fosse a última. O deitar e o adormecer. Duas coisas tão diferentes. Dois modos de estar. Dois modos de viver.

Nunca saber se vai acontecer o dia seguinte. Nada temos como adquirido neste mundo voltado do avesso. Os que dormem de dia, pensam ao contrário. Muitas vidas no reverso. Muitas vidas que não acordam. A vida a crescer ao contrário. Uma coisa que não entendemos. Regressar ao início de tudo e não saber nascer de novo.

Os que sucumbem durante a noite. Anúncios de “néon” que se apagam. As velas mortiças. Um gato que continua a abanar a pata esquerda. Não temos calendário para nada. A nossa vida é uma estrada sem sinais. Pagamos muitas portagens ao longo da vida. Ao longo da morte outros pagarão por nós.

Um balanço que se encerra. O débito sempre igual ao crédito. Ter medo da agonia extrema, dos últimos suspiros. Partir só para parte incerta. Que viagem é esta que me andam a propor desde que nasci. Meu cansaço extremo. Minha divina loucura. Procuro mergulhar na noite como quem mergulha num mar desconhecido e escuro. Será que vou acordar?

Passamos a vida numa corda bamba. Sempre o risco presente. Sempre uma fronteira ténue entre o que existe e não existe. Entre o sono e o sonho há uma distância rara e, no entanto, vivem dentro um do outro. São gémeos verdadeiros que procuram a sua identidade e se revoltam numa história de pasmar. A vontade de ser independente. Uma vontade surpreendentemente difícil de compreender. Os dois condenados a se entenderem.

Depois há os que sonham acordados durante a noite. Eles, um cigarro, um copo e umas pedras de gelo que vão rodando sob os dedos. Um jogo que a noite convoca. A outra maneira de sonhar. Sonham, no entanto, sós. Vivem e vivem-se na mesma espera dos outros. Têm os relógios biológicos com os ponteiros a andarem ao contrário. O gelo derrete, o cigarro arde, o álcool evapora-se. Vão-se deitar pela manhã e pensam no mesmo que os que se deitam à noite.

A madrugada é sábia. Tem riscos e alegrias inesperadas. Acontecem conversas únicas e gasta-se a vida num recanto que escolhemos. Encontra-se gente estranha e não se estranha. Na noite a liberdade é diferente. Esquece-se muita coisa. Muitas vezes até a vida. Viver ao contrário e ameaçar os princípios mete medo aos puristas e conservadores, por norma, falsos.

Aceitar a vida e a morte como quem aceita um golpe de azar e um golpe de sorte. Este jogo é tramado. Um jogo que não aceita batotas. Um jogo que segue as suas regras muito rígidas. A estreita margem de errar. Nem os maiores rasgos driblam esta linha que nos deram. Não é possível apostar dobrado. Não há apostas. É o jogo de xadrez que nunca termina empatado.

Conseguir dobrar o cabo das tormentas e saber que novas dificuldades estão à nossa espera. Tormentas. Torrentes. Calamidades várias.

Obrigado, manhã por teres aparecido de novo. Obrigado, noite, por existires. Obrigado, vida!

«Tu estás a ficar pirado. É cada conversa mais estranha!»

Fala de Isaurinda.

«É uma conversa sobre a vida. A morte faz parte da vida.»

Respondo.

«Olha, tu ganha tino. Deixa-te dessas coisas.»

De novo Isaurinda e vai, a mão direita a persignar-se.

Jorge C Ferreira Setembro/2021(316)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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21 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Que vida”

  1. Cristina Ferreira

    Como compreendo a Isaurinda, querido Jorge, mas sem dúvida que é de todo importante reflectir sobre a vida, com o tema morte incluído, lá está. Porque a morte faz parte da vida. É o ciclo natural. E quanto mais cedo o aceitarmos, mais estamos em condições de viver a vida em pleno .
    Para o crente, a morte não é o fim, mas uma Passagem. A morte, é o encerrar de um ciclo neste plano de existência. É com ela que confirmamos ser todos rigorosamente iguais . A morte, é a grande igualizadora.
    Entender a morte e aceita-la, é essencial para compreendermos e desfrutarmos a Vida em toda a sua plenitude.
    Só estando em Paz com a nossa morte conseguimos perceber como A vida é bela!
    Abraço enorme

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. As nossas várias fases da vida e o modo como encaramos a morte. Ela sempre presente nesta roda que continua no seu louco rodar. O jogo e a finitude. Grato por vires aqui deixar a tua opinião. Abraço imenso.

  2. Cecília Vicente

    Li e fiquei a olhar para as letras que formam as palavras que eu queria ter escrevinhado, algo me incomodou, me alertou para o que achava estranho, a noite, pessoalmente espero a noite para deitar-me, esquecer e que tudo se torne vago como um sonho irreal. As manhãs são um inquietante acordar, algo me assusta com as horas intermináveis que o dia leva a passar… Espero a noite, melhor, o anoitecer, para que tudo o que receio desapareça ainda que de quando em vez a própria noite me acorde para uma realidade que quero longe, tão longe que eu aprenda que os medos possam apenas sonhos inexplicáveis, quero acreditar que sim, no momento, a noite é um adormecer sereno, quiçá um efeito placebo que me atenua o passar das horas.
    Obrigada meu amigo. Abraço imenso!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Que belo comentário. Que ansiedade pela noite. Quando a noite é descanso e afugenta os medos. Abraço forte

  3. Regina Conde

    Crónica de quem é um experiente da vida. A determinada altura da nossa existência tomamos conhecimento que vamos descontando dias à vida. Os pesadelos que não desejamos que se repitam, e os sonhos acordados que importância lhe damos? O valor que damos à má sorte é superior. Temos o dever de nos gostarmos, e viver o agora. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Sim, minha Amiga gostarmos de nós é essencial. Sem nos endeusarmos no entanto. Saber dos prelúdios da noite. Amar os outros. Abraço grande

  4. José Luís Outono

    O olhar preocupado de tempos presentes, onde o ponto de interrogação é uma constante do livro VIDA.
    Excelente!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Que livro trazes à discussão! Um livro sempre em aberto. Um livro sempre inacabado. Celebrar a noite. Forte abraço.

  5. Filomena Maria de Assis Esperança Costa Geraldes

    Esta “vida” dividida.
    A morte.
    Estar sem quê nem porquê. Deixar que o tempo nos corroa os ossos, nos trinque as vísceras, nos abocanhe os sentidos, nos imobilize e em nós desfira o derradeiro golpe.
    A vida.
    Passamo-la “numa corda bamba”.
    Somos trapezistas sem rede.
    Somos alvos fáceis.
    O jogo nunca “termina empatado”. Há que aceitar as regras. Foram estipuladas. São-nos familiares.
    Tudo sabemos de onde vimos, nada sabemos para onde vamos.
    O que tu sabes da vida, meu poeta das horas todas…
    O que tu procuras sobre o outro lado. O sombrio. O desconhecido. O misterioso.
    Trazes contigo o bem maior de saber exprimir pensamentos, evidências, dúvidas e até receios.
    És o profeta da existência.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Esse jogo fatal que é a vida. O início e o fim de tudo. Nossa festa e nosso desgosto. A agonia anunciada. Tão bom o teu texto. Beijinho

  6. Branca Maria Ruas

    Uma excelente crónica sobre a vida e a aceitação da sua efemeridade.
    Gosto da noite. Mas sinto-me grata em cada acordar.
    Raramente me recordo do que sonhei. Na maioria das vezes apenas durmo. E pouco! Guardo os sonhos para os sonhar de dia.
    Vivamos intensamente, mas sem pressa, saboreando cada momento.
    Obrigada pela tua escrita! Muitas vezes é ela que me transporta até ao sonho.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Sonhar de dia as luzes naturais, a natural alegria. A noite é um poço de onde por vezes se sai. Grato por tudo. Abraço imenso

  7. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Um obrigado à vida inclui todas as facetas a que estamos sujeitos todos os dias. Um agradecimento respeitoso, venerável e bastante reconhecido. É um obrigado quando a vida nos presenteia com mimos sem serem, quiçá, merecidos(?) !
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Agradecer todas as dádivas e todas as noites acordadas. Estarmos por aqui é bom. Abraço forte

  8. Maria Luiza Caetano Caetano

    Uma Crónica de excelência.
    Que nos lembra uma grande verdade, da vida que todos temos de cumprir. Como lamento não ter palavras, para lhe responder, querido escritor.
    Fui procurar ajuda, a quem de palavras é Mestre, que passo a citar.
    Vida lhe é tanto de amor
    e amor à vida tão forte
    que morte não lhe dá vida
    vida vê na própria morte.

    Agostinho da Silva

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. As suas palavras são sempre importante. O conhecimento que tem da vida em todos os seus contornos é imprescindível neste espaço. Depois Agostinho da Silva e as suas palavras mágicas. Estou tão grato por tudo. Abraço imenso

  9. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente. Grande reflexão sobre a vida e a morte.
    Todos temos um fim, essa é a verdade.
    Durante anos não pensamos nisso. Com a idade a avançar e a saúde a agravar, começamos a dar valor a pequenos nadas. A vida tem outra dimensão.
    Cada ano é menos um. O acordar é mais importante do que o adormecer.
    Vamos valorizando cada momento, viver cada dia, sem pensar no amanhã.
    Este momento de leitura e escrita é maravilhoso..
    Obrigada amigo, pela generosidade da partilha.
    Um grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. As suas palavras tão importantes. A vida. O tempo em que pensamos que somos imortais. A vida a avançar. Uma roda que não pára. Grato sempre pela sua presença. Abraço grande

  10. Isabel Torres

    Uma crónica magnífica. Fiquei sem palavras. A vida é uma roleta russa. Uma casa de kogo,com regras próprias e incompreensíveis. Talvez,por isso Agostinho da Silva tenha dito:”não faças planos para a vida que a vida já tem plenos para ti”.Indecifráveis.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Um jogo tramado. Da euforia à depressão. Da imortalidade à andiedade. Apostas de jogo clandestino. Gosto muito de a ver neste nosso espaço. Um grade Abraço.

      1. Isabel Torres

        Muito obrigada! Abraço

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