Que tempos!
por Jorge C Ferreira
Quando ela apareceu de boina verde foi um estoiro. Todos tínhamos visto o “Bonnie and Clyde”, todos estávamos apaixonados por aquele par de novos bandoleiros. Tínhamos sido seduzidos pelos bandidos. Ela soube iniciar a moda. Romper com o marasmo que pairava no bairro. Abanar as mentes.
Tornou-se a mais desejada. O atrevimento. Romper as normas. Aquela roupa que lhe definia um corpo que chamava a atenção. Ela sabia que todos a olhavam e desejavam. Continuava a fazer por isso.
Eu nunca tive metralhadoras. Mentira, na tropa tive uma. Que tempo! Mais tarde uma Walter. Tinha medo daquilo. Do que nos obrigaram a ser! Um tempo que esqueci. Limpei da minha memória. Quarenta meses de martírio. O terrível serviço militar obrigatório.
Mesmo quando gritei, “O Povo está com o MFA” sentia algo estranho a roer-me por dentro. A rejeição e ao mesmo tempo o agradecimento pela liberdade. Uma contradição que fui tentando sanar. Tudo tão estranho. Pensar que mais um ano e estaria metido naquele movimento. Talvez tivesse saído do quartel para ocupar algum lugar chave para consolidar a revolução. Talvez. Nunca o saberei.
Mas falemos dos tempos antes desse tempo. Do fumo dos cafés e das liberdades que nasciam. Das mini-saias, das pernas bem desenhadas. Dos anéis, das pulseiras e dos colares. Desse movimento que tentávamos importar.
Os que trabalhavam tinham uma roupa para o dia e outra para a noite. Faziam lembrar os travestis que, mais tarde, eclodiram na Lisboa liberta. Tive ocasião de assistir à sua transformação. Às horas de trabalho antes da apresentação, antes do show. As purpurinas e as lantejoulas. Os colares de pérolas de várias voltas. Um trabalho cansado como o dos palhaços, dos trapezistas. “The show must go on”.
Ela tinha várias boinas. Ia-se apresentando cada vez mais arrojada. As “boîtes” começavam a sua labuta depois do tempo dos cafés. Era a nossa outra vida. As vidas iam-se misturando numa dança de corpos suados e luzes eternas. Luzes que nos mostravam a nu. Luzes que paralisavam os nossos movimentos. O nosso tempo de loucura. Duas, três da manhã tudo findava.
Uma loja que importava coisas de Londres. Carnaby Street estava no auge. Os festivais de música ao ar livre explodiam. A música era electrizante. Hyde Park, Wood Stock e tantos outros. Tanto para ver lá fora e eu sem passaporte. Antes de irmos para a tropa éramos cidadãos ainda com menos direitos. A guerra colonial estropiava muitas vidas dos que lá andavam e castrava as nossas. Nós tentávamos resistir conforme podíamos. “NÃO À GUERRA COLONIAL” escrito numa parede. Pichagens feitas pela calada da noite que prontamente eram apagadas pela polícia política de um regime cansado, mas ainda actuante.
Ela teimava em entrar de boina no café. Pedia a bica escaldada e fumava. O filtro do tabaco a ficar marcado com o batom vermelho daqueles lábios grossos. Cada vez mais pretendentes a beijar aqueles lábios. Juro que não me lembro quem foi o sortudo que a conquistou para a vida.
Os “Porfírios” era a entrada noutro mundo. Um pouco de sonho na nossa vida ameaçada. Lembro-me que foi nesse tempo que eu e um amigo escolhemos um perfume na “Loja das Meias” na baixa. Ainda o uso. Ele infelizmente já cá não está. Trocávamos de roupa sem problemas era um aroma que viajava de casa em casa. Saudades tuas meu querido Amigo.
Quando à rapariga da boina, perdi-lhe o rasto. Não sei como nem onde estará. Não sei de que lado está da vida. Espero que esteja bem. Que esteja feliz.
«Olha que tu vais buscar cada coisa! E essas vidas… essas vidas!»
Fala de Isaurinda.
«Tempos que vivi. Nem tudo foi fácil. Muito sofrimento também.»
Respondo.
«Sei que nem tudo foi fácil. Mas, no meio de tudo, tiveste alguma sorte.»
De novo Isaurinda e vai, a mão aberta a dizer adeus.
Jorge C Ferreira Novembro/2021(325)
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Obrigado Cristina. A vida é de todos nós. Um caminho percorrido. Um caminho por vezes cansaço. A liberdade que faltava. A transgressão. Assim crescemos. Abraço enorme
Brilhante. Grande viagem no tempo. A mesma geração em realidades diferentes. Uma geração de grandes mudanças de modas e mentalidades.
Bonnie and Clyde trouxe a moda da boina. Mary Quant trouxe a mini saia. Foi a loucura total.
Inesquecível. Juventude feliz.
A Baixa de Lisboa. A ida obrigatória aos Porfirios.
As lojas da Baixa. Tempos felizes ensombrados pela Guerra Colonial.
Que tempos!
Adorei a aventura da rapariga de boina verde.
Obrigada amigo, pela excelência da sua escrita.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. As nossas aventuras numa boina verde. Um tempo de alegrias e angústias. A mordaça da ditadura. Grande abraço.
Que tempos. Que também passaram por mim,) embora os meus nove anos a mais, fizessem a diferença ) da noite nada presenciava, embora não desconhecesse o que se estava a viver.
Lia e conversávamos entre amigos, toda essa mudança. Mas com o pai e a mãe a conversa era outra. Sempre a protecção. Outras formas de pensar. Contudo, não me posso queixar, tive uma juventude feliz. Muitos amigos e amigas, muitas festas que os rapazes organizavam. Os bailes e como eu gostava tanto de dançar. Nunca nada disto, me foi proibido. Mas sempre com o olhar atento da mãe. Desta forma a festa podia ir noite adentro. Obrigada mãe e pai. Sei que era por muito me quererem. Sempre me senti livre. Não queria magoá-los. Não posso deixar de dizer, que fui feliz, neste tão belo tempo.
Não fora a vergonha da guerra a ensombrar-lo.
Grata aos jovens da minha da minha idade, que com esta mudança, mostraram o quanto desejavam, a Liberdade.
Obrigada, querido escritor pelo seu magnífico texto. Brilhante narrativa. Como tão bem descreve.
Com verdade, sempre. Gostei tanto.
Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Que escrita yão suave e delicada. Tão belo o que escreveu. Esse tempo em que as mulheres eram vistas de forma diferente dos homens. Ultrapassar a ditadura. Crescer com a liberdade. Abraço grande
Uma crónica autobiográfica tendo como pano de fundo a liberdade. Esta a construir-se,a alcançar-se a pulso,com os passos de cada um e os passos de “todos”. Comportamentos que desafiavam as normas e rasgavam caminhos. Comportamentos desafiantes e impositivos de novos padrões. Vanguardistas (e corajosos;muito; por entre a guerra e o facismo),que romperam a paralisia cultural e política.
Uma narrativa que revela tudo isto e nos obriga a relembrar um tempo de luta,sofimento,coragem e passagem para outro tempo. Onde ainda estamos?
Obrigado Isabel. A idade da rebeldia. A vontade de mudar o mundo num país amordaçado. A vontade imensa da liberdade. As outras vidas. Abraço
A “idade da rebeldia”e a necessidade imperiosa de “rebeldia”. Já disse ao Jorge,sou fruto dessa “rebeldia”,dessa luta pela liberdade e democracia,sem a qual estava votada à “escuridão”. Pude estudar,com bolsas de estudo (que não havia)e viver sem medo de falar ou de tet certos comportamentos. O meu obrigada,a essas gerações. Aliás, sou casada com um homem dessa “época ‘. E por isso familiarizada com os problemas que enfrentaram e a luta que encetaram. O meu obrigada.
Obrigado Isabel. Parabéns pela lita e pela coragem. Ousar sempre. Abraço imenso.
Pois foi, meu Amigo. Resolvi entrar na tua crónica. Atrevimento o meu. Tinha que conhecer a rapariga da boina verde!
Não foi difícil. Apareceu-me com um sorriso de lábios vermelhos, uma gargalhada cristalina e um amendoado de olhos escuros. Um cigarro a fazer piruetas entre os dedos.
Chamava-se, afirmou, Verónica. Nome herdado de uma bisavó da qual só sabia que vivera com cinco gatos e fazia colecção de bonecas de porcelana.
Ainda me contou sobre o tempo da desesperança e dos nós apertados na garganta.
Depois, falou-me das andanças pela cidade, pelos lugares do costume e do dia dos cravos. Alegria maior, sonho trazido ao peito, aquele dia em que a liberdade andou de boca em boca e foi entoada por tudo quanto era canto… e recanto. Florido.
Quando lhe disse o teu nome, soltou-se-lhe uma gargalhada.
Sem rubor. Límpida. Despudorada.
O Jorge? O Ferreira? Então não haveria de saber? E soltou-se-lhe nova gargalhada .
Era um tipo às direitas, digo, emendou, às esquerdas.
Porreiro!
Amigo dos amigos.
Alma de revolucionário.
E não beijava nada mal, não senhora… Acrescentou com ar malicioso, piscando-me o olho. Escrevia umas coisas…Tinha jeito para as palavras, o sujeito. E um dos seus maiores sonhos era conhecer mundo.
Passado todo este tempo, deve ter desaprendido o meu nome. Mas das minhas boinas, certamente, não se terá esquecido.
Olha, se souberes dele, conta-lhe que ainda guardo o poema que me escreveu, ali, para os lados das escadinhas do Duque.
Pelos vistos, está bem. Diz que lhe mando um beijo. Pelos velhos tempos. Antigo!
E lá foi, andar solto, leve, deslaçado de pardalito fugidio…
Obrigado Mena. Não sei que te diga. Foste de uma imaginação genial. És especial. É tão bom ler-te. A minha gratidão é imensa. Abraço forte
Recordar tempos, num viver constante de reflexões.
Contraste constante do ontem e do hoje, onde perguntamos pelo amanhã, num correr do ontem.
Liberdade, um prémio alcançado num esforço coerente, apesar de ziguezagues de tempos e emoções.
Grato amigo pelo teu criar!
Obrigado José Luís. A maneira como me lês é sempre gratificante. A tua poesia a escorrer neste espaço. Um prazer ter-te aqui. Abraço enorme.
Em cada texto teu, há sempre algo em que nos identificamos. Mesmo sendo de gerações diferentes como é o nosso caso. Uma escrita tão real e que tantas vezes nos faz sentir personagens integrantes, e ao mesmo tempo mágica, sedutora.
Gostei muito, poeta.
Abraço
Que tempos corajosos. Tempos de paixões, algumas temporárias. Vontade de viver como se fosse o último dia, não esquecendo dos riscos puníveis. A vontade de conhecer outras cores outras gentes. A sensação que estivemos numa conversa de Amigos. Agora tenho de ir. Obrigada Jorge. Abraço imenso.
Obrigado Regina. Tempo de viver com paixão. O medo e a vontade de o vencer. Alguns encontros fugazes e uma paixão enorme: a liberdade. Virar a vida ao contrário Abraço gigante.
Bonnie and Clyde , duas personagens de filme, num Filme a que quase toda a juventude assistiu.. O ” prazer do interdito ” de que Freud falava e que moldava para o melhor e para o pior o ” modo de estar “. Não digo que moldava personalidades, porque dependia muito da estruturação psicológica prévia de cada um. Mas num país cerrado à LIBERDADE, era necessário ter coragem. Na minha casa as três raparigas/ irmãs cumpriam o que o ” Freud/ Telles”, pai recomendava a esse respeito, como na maior parte das famílias. Vivências diferentes as nossas que ” espreitavam” com imensa curiosidade as que referes . Mas aprendíamos a luta pela outra LIBERDADE do País, enquanto íamos sabendo que…” não se podia falar nisso fora de casa.” Hoje reconheço que tivemos uma juventude feliz com muitos outros rapazes e raparigas , filhos de tios e/ou amigos dos pais. ADOREI o teu texto, meu querido Amigo/ Irmão.
Obrigado Ivone. Que bom o que escreveste. A Avenida grande espera por nós. A liberdade será cantada. É tão bela a tua presença neste espaço. Não calculas como sabe bem encontrar-te. Abraço enorme.