Proteger
As biqueiras das botas. Os pontapés em falso. Os protectores. O sapateiro. Os pequenos pregos na boca. Meia mão de cabedal. O martelo. As pancadas secas. A eficaz protecção.
As botas cardadas. Os polainitos. A ordem para marchar. Enfrentar os tais canhões. Ir e vir. Um capacete mal-alinhavado. A corrida e o cansaço. Um fio ao pescoço com a medalha de uma santa. Acreditar que se está protegido. Uma bala perdida. Um grito de sangue.
O nosso Anjo da Guarda. A protecção entregue a um ser invisível. Um suave ruído de umas asas que não vemos. Outros sons. Os sentidos deslocados. Esperar que tudo acabe em bem. Quem chamou esta criatura? Quem a enviou? Ficamos quedos e mudos. Somos uma estátua. O bronze a ficar verde.
A divina protecção. A protecção dos mais crentes. A vida depositada em milhares de orações. O Pai, o Filho e o Espírito Santo. Chamam os sinos para o terço. Caminham os devotos. Os que se levantam e deitam com rezas profundas. Aparece uma pomba branca morta no meio do largo de todas as festas. Um mau presságio.
A protecção civil. Uma pomposa organização que raramente funciona. Os atrasos. As comunicações perdidas. O pessoal a bastar-se a si próprio. Muita pompa e pouca eficiência. As pesadas estruturas geram falta de agilidade. Um homem de calças e mangueira na mão. A falta de água. A dramática situação. Mais umas rifas para a ambulância dos bombeiros.
Os protegidos do senhor de todas as herdades e finanças. Os que sobem na vida a galope. As falsas caridades. Os bancos de tudo que não são de todos. A vassalagem. O sim senhor. Um carro topo de gama e um cavalo árabe. Um luxo asiático. A missa na capela da família. Um padre amesendado. O pároco privativo. Que alguém o perdoe.
O chulo. Outro falso protector. A malvada vida da mulher que diz proteger. A prostituta. A venda do corpo. As camas de lençóis quentes. As águas quentes e frias. As toalhitas e os preservativos. Uma mala cheia de nada. O dinheiro no sutiã. O “seu homem” sempre a controlar o movimento. Uma calculadora humana. Alguma tareia desculpada.
«Ele toma conta de mim.»
Os amigos, os amigos verdadeiros. Os que nos adivinham as necessidades. Os que aparecem na altura certa. Os que estão sempre presentes. Os que sabem da vida a hora necessária. Os que sabem acertar o relógio dos corações. Controlar as emoções. Saber ajudar. Saber Ser. Amigos/Irmãos. Vozes que ouvimos sempre. As pulsações a voltarem ao normal. Um abraço apertado. Um seguro de vida.
A família chegada. Os Avós, o Pai e a Mãe que já perdemos. A falta que nos fazem aquelas mãos, aqueles beijos. Os nossos filhos. Os nossos netos. Será que vão sentir a nossa falta? Os nós imensos. Nós difíceis de desatar. Nós cegos de ternura. O peito oferecido ao sacrifício. O leite materno. Onde está o nosso cordão umbilical? Quem nos separou da outra vida? Que tesoura foi essa? A protecção que faz falta!
Voltar ao início de tudo.
«Eu dou-te razão, mas há coisas que são escusadas de falar.»
Fala de Isaurinda.
«Acho que se deve falar de tudo. Não se deve calar nada.»
Respondo.
«Era eu a falar. Tu fazes o que te der na gana. Só avisei.»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Janeiro/2019(192)
A escrita em dia,as emoções paridas.A ternura de todos os anos.
A nossa ternura como herança…quem se lembrará?
Quase que me atrevo a perguntar à Isaurinda,será que me responderia ou viraria as costas desaparecendo com o seu real pano do pó?
Meu querido amigo,nem sempre,nem nunca,mas voltar onde nos sentimos bem.É como abrir uma página que ficou por ler.Foi o caso,só pude ler hoje este maravilhoso texto.Abraço!
Adoro ler os seus textos … leio-os de uma forma diferente … com avidez, mas voltando atrás quando perco o fio à meada … gosto de o ler com muita atenção, para não perder pitada. O meu muito obrigada
Obrigado Ana. Como gosto de saber que me gosta de ler. Fico-lhe muito grato. Gostei muito do seu comentário. Abraço
A protecção ou a falta dela, ao longo da vida. A vulnerabilidade das pessoas e instituições em quem confiamos. O desânimo. O longo caminhar. A tristeza.
Mais uma bela crónica que nos deixa a reflectir sobre o sentido da falta de protecção a que nos vamos habituando. Resta-nos a protecção divina. Um abraço.
Obrigado Ana Bela. Sobraremos só nós? Quem bai cuidar de quem? Abraço
Simbiose de emoções. Do passado ao presente. Viagem sem tempo.
Guerra e paz.
A Isaurinda sempre atenta!
Um privilégio ler as suas crónicas!
Obrigado Eulália. A paasagem. O caminho. Tantos cenários. A amizade. Abraço
Meu querido amigo/irmão, que emoção enorme me provocou a leitura da tua crónica. É bom ter um coração grande, como o teu. ” Proteger ” lhe chamaste, mas vai muito além de proteger. Abordas a protecção social, aquela que, generalizada, ajudaria as ” gentes ” a fugir de situações perigosas e que, por falta de atenção, falha. Abordas a protecção ” divina ” que nos dizem que todos têm através do seu Anjo da Guarda, mas onde se esconde ele, às vezes? Onde deixará as suas asas e nos deixa cair? A protecção dos poderosos esvai-se no poder do dinheiro. Querem lá eles saber dos outros. E falas dos ” chulos”, protectores que dizem ser, das mais infelizes mulheres, que se vendem para lhes encherem os bolsos e contra as quais eles despejam em pancada as suas frustrações. E elas, embora magoadas amam-os, porque são os ” seus homens”,os que as ” protegem”, julgam. Mas que protecção?
Belo o teu texto. Mexe com o mais interior de nós, os que te lemos. Avivas–nos a memória. Na falta de pais e avós que já não temos, procuraremos em verdadeiros amigos, os que nos amam, como nós a eles, a protecção da AMIZADE, o mais bonito amor.
E passou agora por aqui a Isaurinda, sempre com o seu pano. Ela sabe que sou tua amiga/irmã. Sorriu-me e percebi que, com tamanho carinho, te iria despertar de tristes pensamento, Por ela enviei um grato beijo e terno abraço.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Tão bom ler o teu comentário. Tão sábio! Sinto que a Isaurinda gosta muito de ti. Abraço
Magnifica crónica. Apetece que não termine. Ler-te é um desafio aos nossos sentidos. Proteger é darmo-nos. Acertar os relógios dos corações, perto ou longe. Como nos transmites tantas vidas. Obrigada Jorge. Abraço.
Obrigado Regina. Que importa a distância, quando os corações são gêmeos? Cuidar sempre. Abraço
Que texto tão bem escrito! Um verdadeiro jorrar de ideias e memórias de que não se consegue desviar a vista e a atenção. Parabéns, Jorge, isto é literatura! Magia! Adorei! Um beijinho.
Obrigado Madalena. Tão generoso o seu olhar sobre o texto. É bom ler. Abraço
Abraço!
Disse-o várias vezes e digo sempre , ler-te é deixar-nos ir ao fundo de nós. É crescer mais um bocadinho ou pelo menos tentar-mos. A tua arte mágica tem esse poder. É um Dom! Privilegiados os que se deixam tocar por ele. Abraço
Obrigado Cristina. Grato pela tua leitura e comentário. Vamos saber crescer. Abraço