Crónica de Jorge C Ferreira | Por esse rio assim

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Por esse rio assim

 

“O barco vai de saída

Adeus ó cais de alfama

Se agora vou de partida

Levo-me comigo Ó cana verde

Lembra-te de mim ó meu amor

Lembra-te de mim nesta aventura

Para lá da loucura

Para lá do Equador”

(Fausto Bordalo Dias)

jcferreira livro

Penso que foi assim que Fausto nos deixou, ou quero pensar que assim foi. A sua partida trouxe-me à memória tanta coisa. Tanta gente do meu tempo a partir. Tanta gente a abandonar-nos. Tanta gente criativa que nos fez sonhar, vibrar e lutar.

À memória veio-me um andar na Forno do Tijolo, em Lisboa. Um andar a que eu chamava Carvalhos’s Bar. O lugar onde viviam os meus grandes amigos António Carvalho e a Nela com os seus dois filhos, o Ricardo e a Mónica.

Havia uma senha para a entrada na casa, duas tabletes de chocolate de leite Regina, daquelas amarelas, que comprávamos na leitaria que ficava no rés do chão do prédio. Já procurei e nunca mais encontrei. O Ricardo sempre à porta de mão estendida, a Mónica encostada a ele. A senha, dizia o Ricardo. Só depois de entregues os chocolates é que a entrada era franqueada.

Era uma casa de bar aberto e durante muito tempo a banda sonora era o recente disco do Fausto, o duplo álbum, “Por Este Rio Acima”. Ouvíamos e tornávamos a ouvir e não nos cansávamos. Dois discos de vinil, que requeriam todas as atenções. Serem limpos, a agulha do gira-discos também, pegar pelos bordos para ficar imaculado, sem dedadas. A obrigação de alguém ir virar e mudar os discos, todo um ritual. Assim estávamos com o Fausto toda a noite. Enquanto bebíamos uns bourbons que o irmão do Carvalho trazia. Bebíamos bastante naquela altura. Talvez demasiado. Muitas noites acabámos por ficar lá em casa, outras, íamos dormir à Albergaria Senhora do Monte.

O António deixou-nos muito novo. Ainda lembro os encontros no Martinho da Arcada e as noites de Poesia. Lembro-me tanto de todos.

Mais tarde tive uma inquietação que não me largava. Saber da Nela. Telefonava e ninguém atendia. Telefonei a um Amigo que foi falar com o irmão do António. A notícia veio como uma faca: A Nela morreu. Fiquei com o número de telefone do Ricardo e da Mónica.

O que verdadeiramente senti nesse dia, foi uma tristeza imensa. A mesma que senti de novo com a morte do Fausto Bordalo Dias. Ouvi de novo aquele álbum que nos acompanhou tantas noites e chorei. Chorei por tudo o que vamos perdendo.

Nela, ainda hoje tenho o sabor único do teu puré de batata no meu palato. Puré que fazias com tanto amor. Como o fazia a minha querida Avó. As batatas cozidas passadas no passe-vite, tudo feito a preceito. Um sabor único. Um manjar de reis. Depois era o prazer que ela tinha ao ver-me deliciar com aquele puré.

Havia noites de Poesia. Declamávamos poemas da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica” livro organizado pela enorme Natália Correia. O Ricardo e a Mónica iam comendo os chocolates. Fausto ia cantando em fundo. Muitas vezes, o José Mário Branco e o seu FMI, outras vezes, José Afonso e as suas cantigas de Maio.

Acabaram por ser minhas testemunhas e logo padrinhos no meu segundo casamento no Registo Civil de Cascais. Além dos noivos estiveram presentes oito pessoas, contando com os nossos dois filhos. Depois, fomos comer ao sítio do costume e ficou o evento completo.

É assim, há pessoas que vivem para sempre connosco.

Abraço grande meus amigos.

«Tens razão, há pessoas que estão sempre presentes na nossa vida.»

Fala da Isaurinda.

«Obrigado, minha querida. Também tu tiveste as tuas perdas.»

Respondo.

«Todos os dias falo com os meus que já nos deixaram.»

De novo Isaurinda, e vai, as mãos postas e a olhar o céu.

Jorge C Ferreira Julho/2024(441)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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12 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Por esse rio assim”

  1. José Luís Outono

    Momentos “de ouro” do nosso crescer e mais tarde viver.
    Digo com frequência, que recordar é uma excelente vitamina provocadora de sorrisos envolventes de sóis e luas agradáveis.
    Mas … no calendário as partidas e ausências por imprevistos de saúde, ou outras quedas da nossa vida, ficam eternamente no nosso diário, provocando reações análogas aos momentos por aqui expressos.
    Excelente “livro” que por aqui vais “desenhando”, num Império muito articulado de dores e sorrisos, onde um simples dar a mão, é o analgésico perfeito!
    Por favor, não pares … perdão … nunca pares, mesmo após a tua partida.
    Um grande e grato abraço, com muita estima e admiração, incluindo Dª. Isaurinda nuns traços finais únicos , quando conjuga o verbo entendido no dicionário prático constante do sorrir, e desabafa com pontos de exclamação, notas régias de um dizer directo, simples e bem argumentado.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís, meu Amigo, Poeta. Que belo comentário. Apetece escrever para ler estes textos. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    E assim, vão partindo tantos. Que marcaram um tempo e os nossos corações. Um tempo já vivido em Liberdade. Serão eternas as suas lindas vozes e belíssimas canções.
    Como gostei, desta história de verdade, lembrando amigos que ficaram sempre, na sua memória,
    Emocionei-me, quando falou na Forno do Tijolo, por lá passei longos anos, na companhia do meu melhor amigo. Saudades boas, mas que deitam lágrimas.
    Li com gosto e foi muito bom é sempre maravilhoso o que nos descreve, meu querido escritor e poeta.
    Abraço grande e sempre grata,

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, querida Amiga. As saudades que vivem connosco. Mas, também a recordação dos tempos especiais. Dos tempos que não morrem. A minha gratidão. Abraço grande

  3. Claudina

    Foi com muito carinho que li a tua crónica Poeta Amigo. Bons tempos que recordamos com saudade. Muito triste vermos partir quem amamos e admiramos. Amei!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina, minha Amiga de longos anos. Que bom estares aqui. Muito grato. Abraço grande

  4. Eulália Coutinho Pereira

    Saudades e nostalgia dos que partem.
    Viajei no tempo. Um mundo diferente do que se vivia na cidade grande.
    Tempo de sonhos. Belos momentos a ouvir Fausto, Zeca.
    Vão partindo. Missão cumprida.
    A verdade é que permanecem para sempre, como símbolos de liberdade.
    Os anos vão passando,. Os que nos querem bem vão partindo, mas ficam para sempre nosso coração. Com eles ficam as memórias de uma vida.
    Obrigada Amigo,, pela viagem no tempo.,..por esse rio acima.
    Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália, minha Amiga. Que bom o seu comentário. A sua presença neste espaço é uma maravilha. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  5. Mena Geraldes

    assim que entrei por esse rio, as velas do meu navio desfraldaram-se.
    azul era o pano de fundo.
    as ondas batiam com musicalidade na proa do navio. compassadas.
    deixando para trás o “cais de alfama”
    eram aves que deixavam o horizonte.
    longas asas de viagens por estrelas
    que iluminavam os céus.
    por sóis que feriam as carnes.
    por sedes, frios e escorbutos.
    por falta de terra à vista tanto que era o mar. tanto..tão demais…
    ai,.quanta saudade meu amor…ai,
    vou de partida…ai, não me esqueças…

    quando comecei a ler a tua crónica sabia que ia doer. como dói a ausência de quem
    seguimos na rota do tempo.
    das lembranças boas.
    conheci Fausto Bordalo Dias. apaixonei-me
    levava-o dentro da pasta quando tínhamos que navegar. eu e eles.
    e a cada nova aula sabiam que Fausto
    entrava na aventura.
    connosco.
    eram descobertas feitas a par da música e dos poemas desse aventureiro.
    que nos levava por mares adentro
    e falávamos sobre a vida dos navegantes
    os perigos e o desconhecido.
    a ambição dos grandes senhores.
    as ordens reais.
    o comércio de escravos.
    o ouro de África.
    o odor longínquo a especiarias.
    as partilhas. as riquezas.
    as perdições.
    fomos grandes. agora pouco somos…
    ficam as memórias em livros lidos de séculos de gastos excessivos.
    demasiada ambição.
    por demais a ostentação…
    um povo que percorreu oceanos, terras nunca antes visitadas, outros povos, hábitos e linguajares.

    como gostei de te saber.
    nessa tua aventura.
    pessoal e íntima.
    desses dias e noites em que te reunias com amigos e também iam de viagem.
    quantos sonhos…devaneios até ser dia…
    quantas conversas a varrer a noite.
    quantos amigos se perderam e outros permaneceram.
    é assim a vida, meu escrevinhador.
    sabe-lo melhor do que eu.
    portos seguros, tormentas, ventos de
    feição e outros não, aportar a lugares insólitos e conhecer outras gentes, novos e ardentes lugares onde teremos deixado o coração…
    grata por mais esta descoberta!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, minha Amiga imensa. Que bom estares neste espaço com os teus sempre belos poemas. Toda a minha gratidão. Abraço enorme.

  6. Fernanda gonçalves

    Também eu senti muito a partida de Fausto. Já guardei num sítio especial dois albuns dele, o que acabas de referir e os três cantos. Consola-me que tenha ido aos dois últimos concertos. Acabei também por me despedir de José Mario Branco e de Fausto no Terreiro do Paço. Agora aconteceu-me uma curiosidade. Uns 10 dias antes da sua morte alguém me contactou por mensagem no facebook dizendo que era o secretário do Fausto e queria saber a pedido do Fausto se eu era mesmo fã dele, etc, etc, passado uns dias recebo mais uma mensagem e já era o próprio Fausto com uma conversa perguntando se eu tinha um irmão etc, etc,aí desconfiei, que seria alguem que me queria vigarizar, Bloquei o contacto. Passado uma semana o Fausto partiu. Fiquei muito pertubada. Nunca mais me contactaram.Eu estava na Página do Fausto como Fã. Tudo ficou bloqueado. Fausto está a descansar Eu choro quando o ouço. Emociono-me sempre.Falta-me o album das Montanhas Azuis. Nunca consegui comprá-lo. Pode ser que a< FNAC o volte a editar. Gostava muito de o ter é uma Epopeia. É muito Bom. Como trabalho escrito é o melhor.. Ou alguém que possa gravá-lo para mim, eu pago.
    Se souberes quem o tem diz-me. OK? Abraço grande em ti. Fernanda

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Tão impressionante a tua hostória. Que comentário! Fiquei arrepiado. É tão bom ler-te. A minha gratidão. Abraço grande.

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