Peregrinação
Conhecer as rotas dos desejos. Esquecer os caminhos dos sacrifícios. Viajar num pensamento por descobrir. Abraçar os outros. Os que escolhem os mesmos caminhos. Os irmãos de desejos. Os que caminham com os pés descalços e o coração nas mãos. Os que buscam o amor. Os que têm amor para dar. Uma destinação.
Cantam homens e mulheres o caminho vai ganhando alegria. As mantas coloridas. Os cestos cheios de sonhos. Os bastões. Os lenços pequenos e grandes. As flores roubadas nos campos. Silvestres euforias. A pureza do ar. A sombra das árvores e um campo sem limites. A predestinação.
O caminho de que não conhecemos o fim. As pedras, o pó e a terra. A força imensa. O não desistir. Os pés, as pernas, o corpo todo cansado. O abrigo que não se vislumbra. Os aguadeiros. Refrescam-se gargantas sequiosas. Procuram-se os limites. Rasga-se alguma carne. Os desejos a matarem as dificuldades. A superação.
Aparece a subida quase final. O caminho para um momento que cheira a sacrifício. Já se arrastam um pouco os corpos. Há quem leve crianças às cavalitas. Quando se decide parar para comer qualquer coisa, tudo é partilhado. Um tempo de descanso. Um tempo que atrasa o desejo. Um tempo, apesar de tudo, de imensa partilha. Tratam-se os pés. Há quem trate a ferida do outro. A comunhão.
Já é muito tarde quando o abrigo aparece. Um palheiro. Distribui-se tudo. Inventam-se camas. Dividem-se os homens e as mulheres. Aparece um galo como que a avisar que vai cantar de manhã. Faz-se lume. Come-se mais qualquer coisa. Canta-se mais uma cantiga. Este tempo de muita entrega. Um tempo antes da entrega do corpo ao descanso. A inacção.
O galo cantou. Tudo acordou. A corda, um balde e um poço. A água fria e límpida. As ramelas tiradas. Um balde de água pela cabeça abaixo. A temperatura assim o pedia. O caminho ia continuar. Todos tinham jurado que iriam chegar. Que se ajudariam uns aos outros. Que curariam as mazelas uns dos outros. A determinação.
Fizeram-se ao caminho de novo. O desejo cada vez mais perto. As cantigas a ganharem fulgor. Começava-se a sentir um cheiro diferente. Um cheiro desconhecido. De repente todos pareciam acelerar o passo. A vontade a ganhar força. Os corpos a reerguerem-se. Rumo ao sonho. A abnegação.
Mais uns quilómetros. Um monte. As ervas mais rasas. Alguma terra mais leve. Os pés a enterrarem-se. O caminho a fazer-se difícil. Uma leveza que incomoda. Um cheiro cada vez mais intenso. Um ruído desconhecido. Alguma alegria nos rostos tisnados. As rugas a ganharem outros contornos. A aproximação.
De repente, depois de dobrarem as últimas dunas, avistam um azul imenso. Tudo é azul. Azuis que juntam e se mesclam. Uma espuma que rebenta na areia e num vai e vem constante se espreguiça na areia. Parece que qualquer coisa sobrenatural acontece. As mulheres arrepanham as saias. As pernas roliças ao léu. Os homens arregaçam as calças e todos vão experimentar, pela primeira vez, o sabor do mar. Alguns já pensavam que não iam conseguir tal desiderato. A consagração.
«Que caminhada bonita contaste. Hoje não descarrilaste!»
Voz de Isaurinda.
«Que bom que gostaste. Tu, mulher de uma ilha. Tão bom!»
Respondo.
«Sim, mas não cantes de galo. Estarei sempre atenta.»
De novo Isaurinda e vai, a mão a pingar mar.
Jorge C Ferreira Julho/2019(208)
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.
É grande a fraternidade desta peregrinação – presente naqueles que seguem juntos – que permite sensações de amor. O colorido e a persistência. A canção na voz; o sacrifício também; a não desistência; o mar, o destino comum; a água azul…
É grande a fraternidade deste enlaço em direção ao sonho…
Há beleza nisto…
Eugénia
Obrigado Eugénia. Só com fraternidade as caminhadas fazem sentido. Vencer as contrariedades. Atingir o desiderato. Abraço.
Adorei a tua descrição. Vidas de quem busca o amor e tem amor para dar.
A predestinação. A superação. A comunhão. A inacção. A determinação. A abnegação. A aproximação. A consagração. Uma caminhada feita de etapas numa partilha constante de afectos que desaguam no teu Mar!
Obrigado Maria. O mar como destino final. O beijo das ondas. A caminhada dos que nunca viram o mar. Abraço
E por fim, descobriram o mar… Feliz peregrinação. Gostei muito, Jorge.
Beijinho
Obrigado Manuela. Sim esse mar que te rodeia ou outro. O intenso caminhar. Abraço
Maravilhosa caminhada que me levou a um tempo distante repleto de amor, partilha e o fascínio de ver o Mar pela primeira vez.
Obrigada por este momento, Jorge!
Obrigado Maria Rosa. Que bom dizer que lhe recordei antigas caminhadas. Fico contente. Abraço.
Sublime esta crónica. Este escrever que desperta sentidos. Sente-se a partilha da peregrinação. Pressente-se um fim. Caminho difícil, tortuoso. O encontro com o azul imenso!
Estou como a Isaurinda, que caminhada tão linda contou!
Obrigada meu amigo.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Sempre o mar. O mar que adoro percorrer. O mar ainda inacessível para alguns. Abraço
Que descrição fascinante! Obrigada, querido amigo, gostei muito. Um beijinho
Obrigado Madalena. Que bom ter gostado e ter comentado. Quem escrevinha fica feliz. Abraço
Apetece ficar junto dos peregrinos que tão bem nos dás a conhecer. As romarias por devoção, o percurso penoso, a partilha entre todos. A união pela mesma vontade. O desejo à concretização. O deslumbramento do mar. A isaurinda com mão a pingar mar é tão delicado. Obrigada Jorge por este “conto” belíssimo. Abraço.
Obrigado Regina. Caminhar com os outros. A sublime tentação. A alegria da vida. Que bom vires fazer parte desta caminhada. Abraço
Depois de voltares, lá vais, novamente num caminho de peregrinação. e….. é-me impossível comentar. Tu não escreveste, querido amigo, tu registaste para oferecer aos amigos, um bocadinho dum filme que esperaste e viveste. Tenho lido sobre ” peregrinações “.. A primeira foi a de Fernão Mendes Pinto, oferta dos meus pais. Esta tua fez-me caminhar contigo, partilhar os teus amigos, comer dos vossos farneis. E vivi-a com um enorme prazer, porque era um Homem feliz que nos encaminhava. E eis que a ” Consagração” que nos esperava era azul, a minha predilecta cor.
Teve razão a Isaurinda; não descarrilaste nessa ” caminhada bonita “. Foi um Jorge leve e feliz que veio até nós, seus amigos.
Gostei muito. Beijinhos querido amigo e dá também por mim um beijo e um forte abraço à Isaurinda.
Obrigado Ivone. Sempre tão especial o que escreves. Escreves, escrevendo-nos. Sempre generosa. Sempre peregrina. A caminhada. Os muitos caminhos. Abraço
Que narração tão maravilhosa,só quem quem fez o “caminho” entende,é como uma vida dedicada ao sacerdócio da natureza humana tendo como mãe a natureza cheia de vida que acompanha todas as emoções por vezes contraditórias. A existir o tal Deus,creio ser dele o silêncio que cada um sente, muito intimista e pessoal,é algo intransmissível.Este regresso tranquiliza-me e as palavras escrevinhadas dão-me espera para a próxima segunda-feira.Obrigada meu amigo.Abraço!
Obrigado Célia. Belíssimo o teu caminhar, a tua caminhada. Que bonita a tranquilidade que transmites. Gosto tanto do teu comentário. Abraço
Ahhh querida Isaurinda , hoje, deixe o Jorge “cantar de galo” à vontade, que ele bem merece – Que crónica! Que caminhada tão bela ele nos trouxe. Mas sim, esteja atenta como sempre. Só cá entre nós, com tanto elogio, não vá entretanto descarrilar… (rsrs)
Descarrilar também é impossível para nós enquanto seus leitores. Com a riqueza deste caminho. Destes Mares. Alguns nunca antes navegados. Outros, que nos chegam sob a forma da nossa história coléctiva e individual. Dos nossos mares. Recordo emocionada como a minha mãe me contava a primeira vez que vira o mar. Já adulta. E o que sentiu. Pela mão de meu pai. Namoravam então. Mas esta memória só me ocorreu mesmo já no final desta sublime caminhada. Ao longo da sua leitura, fui pensando no que É SER peregrino e tudo o que envolve. Todo o enriquecimento interior. Toda a FÉ – É essencialmente a Fé que move o peregrino. Que nos move. Católico ou não. Crente ou não crente. É a Fé, este sentimento comum e eterno, que nos salva.
Numa apoteótica consagração é também como me sinto depois de ler esta extraordinária crónica. Obrigada
Obrigado Cristina. Sim, foi a pensar nesse deslumbramento que é ver o mar, ( como o que falas da tua Mãe), que escrevi isto. Essa imensa ligação o do mar ao sagrado. Gostei muito do teu comentário. Abraço
Outro abraço