Crónica de Jorge C Ferreira | Peralvilhos

 

Peralvilhos
por Jorge C Ferreira

 

Estou farto dessa gente nova que nasce velha. Estou farto dos que disso fazem alarde para se promoverem. São os falsos velhos. Os que tentam, através de uma aparência bem pensada e uma estratégia estudada, fazer os outros pensar que têm vida e sapiência de um velho que percorreu a vida e o mundo. Apresentam-se de ar circunspecto como se tivessem todo o conhecimento em si. Apelidam-se de muitas coisas e omitem os fracassos. (Aliás, já os esqueceram…) Não me lembro…não me lembro…não me lembro.

São peralvilhos que gostam de se fazer acompanhar das suas alcoviteiras. Uma troupe que tenta fazer parar o trânsito. Também têm aias que lhes preparam as camas e os banhos exóticos. Chamar a atenção sobre si e venderem-se é a sua tarefa diária. Gostam de ter a sua corte. Esgravatam e batem a todas as portas. Muitas portas vão-se abrindo e dão-lhes palco. É aí que se sentem donos do mundo. Senhores inteiros. Artistas.

Muitos tomam partido e dizem-se disto e daquilo. Na verdade, não são de nada, ou são e não são. É tudo um faz de conta. Um jogo de máscaras sem qualidade. Por norma não têm Amigos verdadeiros, têm uma agenda de interesses. Os peralvilhos estão ligados uns aos outros por processos ínvios e alguns pouco claros. Almoçam em restaurantes muito privados e distribuem lugares entre si como num jogo de monopólio. Saem dos restaurantes a distribuir sorrisos de novas vidas aprazadas.

Disse o Poeta: “e só ficam os peões de brega cuja profissão não pega”. Também os peralvilhos (o meu Amigo Afonso chama-lhes fidalgotes ilusionistas) têm os seus peões de brega a preparem o caminho para o sucesso rápido. Por vezes a vertigem é tal que caem com estrondo de uma escada sem degraus. Desastres inesperados. As aias lambem-lhes as feridas, fazem dois ou três telefonemas e recebem promessas de novos sucessos.

Há os que pensam, se nos andamos a vender a nós, porque não ajudarmos os outros a venderem-se? E fazem-se empresários. Empresários, caixeiros-viajantes, vendedores de banha da cobra. Abrem escritório com vista para a cidade grande e lá fazem de tudo. É o espaço onde se sentem deuses. Abençoam e são abençoados. É a casa de todos os acontecimentos. Alcoviteiras, aias e concubinas convivem no mesmo espaço. Um espaço multidisciplinar. Uma banheira redonda na casa de banho.

Gente estranha? Não. Gente que pulula por aí. Alguns conseguem atingir objectivos inesperados. O seu ar circunspecto, a sua falsa velhice, ajuda-os a serem mais credíveis. Aguentam algum tempo, mas quando alguém com dois dedos de testa se apercebe de quem está ali, o caminho é traçado e torna-se inexorável.

Não pensem que vão ficar sem abrigo. Não, a sua rede de interesses é suficiente para passado algum tempo, terem outro poleiro. É tudo isto que faz o nosso País pobre. É toda esta gente que conspurca o nosso viver. São estas as vaidades e as sobrancerias que temos de aprender a castigar e que não podemos deixar continuar a medrar perto de nós. Não nos deixemos afogar nesta porcaria.

Basta!

«Tu hoje parece que acordastes zangado com o mundo.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes, há coisas que já me cansam. Isto é um desabafo.»

Respondo.

«E tu também sabes que, por vezes, o povo castiga esta gente.»

De novo Isaurinda e vai, o punho erguido.

Jorge C Ferreira Outubro/2021(317)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Peralvilhos”

  1. Manuela Moniz

    O mundo está cheio de alucinados, Jorge.
    Tanta pretensão de ser o que não se é, pelo poder… quanta
    dissimulação,hipocrisia, desonestidade e injustiças se cometem.
    Beijos e obrigada, querido amigo, pelo teu inconformismo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Não nos podemos deixar atropelar e que atropelem os bem intencionados. Tamos de ser firme. Enquanto tiver forças conta comigo. Beijos

  2. Isabel Torres

    Uma crónica marcada por uma linguagem que se ouve. Mais uma vez,uma narrativa exímia sobre os bastidores (serão mesmo isto) de quem tem voz,porque sim. Porque tem raízes de “sangue azul” ou porque teve a “habilidade” de ser carneiro ou ainda de escolher e vingar no politicamente correcto. Este texto é um grito de revolta e retrata os meandros de quem nos “comanda”. Temos de juntar vários gritos e,provavelmente, ir para a rua exigir (penso que basta isto,ou não)que se cumpra a constituição. Continue a reflectir,desvendar e lutar por uma sociedade democrática e humanitária (talvez sejam o mesmo). Não desista. Não desistamos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Sim, minha Amiga. Muito do que diz. Não podemos calar. Muito vício entranhado. Muita ronha. Coisas que conhecemos. Abraço grande

      1. Isabel Torres

        Obrigada!

        1. Jorge C Ferreira

          Obrigado, eu., minha Amiga. Abraço.

  3. Jorge C Ferreira

    Obrigado Maria Roma. Muito grato pela sua presença. Sim, assim vamos empobrecendo. Grande Abraço.

  4. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Gente sem agenda marcada que vive do expediente imediato, deixando dúvidas por todo o lado!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. É isso meu Amigo. Vamos estar atentos. Grande abraço

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Neste seu olhar, profundo e verdadeiro, eu subscrevo cada palavra sua.
    Muito obrigada, querido escritor. Grata sempre. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Obrigado por partilhar as minhas preocupações. Grato sou eu pela sua presença. Abraço imenso

  6. Eulália Pereira Coutinho

    Intenso. Verdadeiro. Preocupante.
    Grito de desabafo. Tanta vida de aparência.
    Como diz o Zé Povinho lobos vestidos com pele de cordeiro.
    Obrigada amigo por estes sinais de alerta. Espero que a memória não seja curta, que os ouvidos não fiquem surdos e que os olhos não fiquem cegos. Até porque o maior cego é aquele que não quer ver.
    Vamos estar atentos à feira de vaidades e à impunidade.
    Obrigada pelas suas crónicas e textos cheios de saber e escritos de forma única.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. As preocupações de quem quer um mundo mais justo. Estamos fartos de tantos vendedores de banha da cobra. Vamos castigá-los. Abraço grande

  7. Cecília Vicente

    A vida pula e avança, de cretinos e falsos profetas está o mundo cheio, não todos, mas, uma maioria julga e pensa que governam, os idiotas, outros tantos, mais de mil julgam-se na sua prepotência senhores feudais, tudo vale para fazerem todos os demais pobretes e alegretes, e conseguem, a inercia e o faz de conta é valido. Viajam pelo mundo com bolsos a abarrotar de ganância, muitos mais clamam inocência, afirmam e proclamam a eterna inocência, e, assombrosamente conseguem-no porque a justiça sofre de cegueira, a balança da desigualdade a continuar, e irá perversamente continuar…
    Acredito nos brandos costumes, acredito que irá nascer um milagre para sabermos a senha do ” Basta, o mundo está doido e doente”…. Obrigada meu sempre amigo. Aquele abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Perfeito o que escreveste. Só me resta mostrar-te a minha gratidão por este texto. Acrescentar alguma coisa seria estragar. Abraço enorme.

  8. Cristina Ferreira

    Lúcida e assertiva crónica.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. A tua presença é sempre importante. Grande abraço.

  9. José Luís Outono

    Criativo, intenso e pleno de razão, nos olhares que perpetuas com a tua palavra.
    Grato uma vez mais!
    Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Poeta. Sempre conciso. Sempre as palavras certas e importantes. Grande abraço

  10. maria roma matos

    Como diz e muito bem, “É tudo isto que faz o nosso País pobre.”
    A mim, deixa-me uma tristeza profunda.

    Beijinho meu Amigo.

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