Crónica de Jorge C Ferreira | Os Sacramentos

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Os Sacramentos

 

Uma ilusão. Uma estranha teimosia. A diferença entre o que vinga e não vinga. Foram dias, meses, anos. A vontade imensa que ele tinha de lhe dizer tudo e o mais que fosse. Trocavam olhares cúmplices, ou seria ele que assim os via? A verdade é que esses olhares lhe alimentavam sonhos. Assim se foram vendo e cruzando, assim foram crescendo vontades, euforias e desgostos.

jcferreira livro

Faltava-lhe a coragem para lhe dizer o que já tinha estudado e escrito em folhas de sebenta várias vezes. Sebenta que um dia deixou cair ao lago de uma fonte e assim as letras foram desaparecendo na água até se tornarem apenas um fio de tinta.

Usavam ambos crucifixos pendurados ao pescoço. Sabiam e rezavam as mesmas orações. Foram fazendo ao mesmo tempo os vários sacramentos. Ele tinha pudor em pedir nas suas orações, coragem para lhe dizer o que lhe queria dizer. Ela ia-lhe esboçando sorrisos envergonhados. Ele ficava a pensar o que ela diria na confissão. Atenção, estamos a falar de um tempo em que quase tudo era pecado. Em que as regras eram rígidas e o país triste e cinzento. Valiam os olhares e os sorrisos deles. Uma luz que iluminava aquela igreja escura. Uma igreja em que cada santo no seu altar nos parecia perscrutar os sentimentos. Santos sisudos a quem, por vezes, pedíamos um sorriso. As igrejas eram templos escuros, sombrios, onde só a fé fazia ver a luz que iluminava todo o mundo. E eles a quererem apenas ser felizes e anunciar a sua alegria ao mundo. Muitas vezes, era essa dicotomia que os fazia duvidar de si próprios e até da sua fé. Mas aquele era o caminho. Só a parte feminina da família nos indicava esse caminho. A influência das Mães na educação religiosa dos filhos era muito importante. A parte masculina ou não ligava à religião ou era mesmo anticlerical. E, no entanto, tudo vivia na “paz do Senhor”. Uma estranha forma de estar. Nem uma discussão, nem uma má palavra. Por vezes um dito mais provocador, mas logo um sorriso apaziguador, e tudo ficava sanado.

Sobre os nossos jovens, seguiram caminhos diferentes na Igreja. Foram crescendo e também se foram afastando. Aquele desejo de namorico juvenil nunca se chegou a concretizar. A Igreja começou a ficar longe, cada vez mais longe. Depois foi a debandada final. Seguiram o seu caminho, nunca mais se viram e não sabem um do outro. Quantas pessoas passaram pela nossa vida e desaparecem sem deixar rasto? Felizmente outros continuam presentes tantas décadas passadas. Quando nos encontramos são como que um rejuvenescimento que acontece, esquecemos as dores e relembramos aventuras impensáveis. Rimos e saímos do encontro como se tivéssemos ido ao psicoterapeuta e só pagamos o preço do jantar. Depois ainda ficamos a conversar na rua, lembrando os antigos tempos. O tempo em que tramávamos patifarias para o dia seguinte. Os do Jardim, os do café, os das noitadas. Assim fomos crescendo O cutelo da guerra colonial sempre sobre o pescoço. Alguns foram os que perdemos. Entretanto a vida continua.

«Essa tua mania de falar da Igreja. Essa tua calada fé.»

Fala da Isaurinda.

«É só uma estória ingénua. A Igreja é só e por acaso o cenário.»

Respondo.

«Sabes que não gosto. Sou uma mulher de fé.»

De novo Isaurinda, e vai, a persignar-se.

 

Jorge C Ferreira Fevereiro/2025(464)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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3 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Os Sacramentos”

  1. Lénea Bispo

    Uma boa reflexão sobre tempos de outrora onde tudo era pecado . Vivíamos espartilhados entre três tipos de pecado , pois o mesmo abrangia os pensamentos, palavras e obras. Era um peso que tínhamos de carregar , contudo , ainda se conseguia olhar e sonhar . Quanta ternura se pode transmitir num olhar, quantas promessas… muitas vezes não concretizadas porque a vida se encarrega de desviar caminhos , a tornarem- se difíceis e percorrer . E a igreja a ficar tão longe …
    Nunca desistir da felicidade , é um trabalho que exige persistência , mas que compensa.
    Gostei muito da crónica ! Obrigada

  2. Fernanda Luís

    Enquanto na TV generais e comentadores vão discutindo estratégias de guerra, fui levada a revisitar a minha infância e juventude…
    Pois, a ilusão, a teimosia, olhares que alimentavam sonhos, coragem ou falta dela, as mesmas orações, sebenta ou diário, revisitei tudo isso como se estivesse numa sessão de psicanálise ou no velho sótão onde se guardavam algumas tralhas. Ali estava juntamente o acordeão do meu avõ, um autêntico tesouro.
    Tempos e etapas que, às vezes, parecem fotocópias, independentemente do género.
    Ah sim o pecado, coisa de peso, de repressão e nós a querermos simplesmente rir, gargalhar e ser felizes.
    Soube bem esta viagem pacífica, “na paz do Senhor”.
    Agradeço o desafio.
    Bem haja.
    Abraço, até breve🌹🌹🌹

  3. José Luís Outono

    … num repente, ao reler-te vejo-me num cenário onde dois corações desabafavam e armadilhavam construções de sonhos, num correr a gosto.
    Sorri, e disse-me :
    – Este Jorge é fundamental na minha vitamina de um sorrir, reflectir e até um opinar quantas vezes com vírgulas … ou interrogações num sorriso bem apelativo de leitura.
    E a fala de Isaurinda é o traço de um final bem humorado, mas desafiador e até causador de reflexões necessárias … direi … obrigatórias!
    Como é bom abrir o Jornal e “ver-te” no calendário de cada início semanal, como vitamina até ao próximo artigo.
    Grande abraço, estimado e criativo amigo, que muito admiro!

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