Crónica de Jorge C Ferreira | Os Reis

Os Reis
por Jorge C Ferreira

 

Uma das vezes que estive em Omã decidi-me a trazer mirra. A Isabel, para não ficar atrás, comprou incenso. Faltava o ouro. Como ainda íamos ao Dubai pensámos, se tiver de ser, será ali. Sim, havia, e há, muito ouro no Dubai mas, digo-vos eu, está muito caro. Chegámos a Lisboa feitos Reis Magos coxos. Só incenso e mirra. Do ouro nem o cheiro.

Não conhecemos tais reis. Afinal podiam nem ser reis. Dizem que eram astrónomos-astrólogos que seguiram uma estrela. Uma história bonita e elegante. Um bolo com frutos secos, frutas cristalizadas e um buraco no meio feito pelo cotovelo de um pasteleiro.

Durante uns anos, e quando soube que em Espanha só davam as prendas no dia de Reis, sempre pensei, e cheguei a falar com alguns amigos de infância, ir após o natal a Espanha para receber mais algumas prendas. Nunca houve coragem para tal aventura. Seríamos apanhados na fronteira, seria uma vergonha para a família. Havia a guarda-fiscal, a PIDE, eu sei lá. Só já adulto é que fiz isso e recebi umas prendas e abraços e beijos.

A compra da mirra e do incenso foi interessante. O árabe que falava a língua que nós quiséssemos, queria-me vender um incenso comestível. Eu, parvo, pensava que o tipo me estava a enganar. Mas não, há um incenso esverdeado muito puro que se come. Nem isso trouxe. Afinal sempre fui republicano. Desde que o meu Avô e o meu Tio-Avô, que iam no 5 de outubro à estátua de António José de Almeida contaram em casa como tinham fugido à polícia, decidi: também sou republicano.

Apesar de tudo, chegar do Oriente sem o ouro de Baltazar e sem um tapete é uma vergonha. Mas foi assim que terminámos a viagem mais que uma vez. Viagens sempre incompletas, temos de concordar. Sou um mau negociante. Só gosto daqueles negócios em que se empobrece alegremente. Nunca sonhei alto. Tenho vertigens e as quedas, na minha idade, são tramadas. O esqueleto já se queixa muito. Os ossos dão de si e parecem o galo que havia lá em casa e que mudava de cor consoante o tempo. Os ossos vão mudando de dor.

Ainda há quem diga bem da velhice. Geralmente são os mais novos. Os que ainda cá não chegaram. Os que ainda saltam e pulam sem que nada lhes doa.

Tenho de vos confessar que, enquanto escrevia este texto, comi uma fatia de bolo rei e a Isabel acendeu outra vela e um incenso. O ambiente fica logo outro. Continua a faltar o ouro. Mas vamos vivendo, ou sobrevivendo, já não sei.

Dia 6 tenho de telefonar aos meus amigos da outra rua para saber que prendas receberam e se tenho lá alguma prenda para mim. Vai ser outra festa.

Baltazar, Belchior e Gaspar, não se esqueçam de mim.

«Olha que tu inventas cada estória! Tens a mania de gozar com tudo.»

Fala de Isaurinda.

«Isaurinda, olha que tudo isto está quase certo. E não gozo com ninguém.»

Respondo.

«Sabes que te digo? Já não tens emenda.»

De novo Isaurinda e vai, a mão a dizer adeus.

Jorge C Ferreira Janeiro/2021(284)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Os Reis”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado Isabel. O encontro e desencontro da vida. Uma estória e alguma história. Abraço

  2. Cecília Vicente

    Que crónica maravilhosa, surpreende-me sempre esse legado de vida que muito contas como uma vida plena de surpresas e amizades que fazem todo o teu mundo e o da Isabel. Que bom aproveitar o lado bom da vida, que bom é o legado que deixas aos teus, esses que têm o privilégio de ouvir muitas vezes a tua volta ao mundo, que bom é trazeres contigo todos os cheiros e sabores desse vosso universo. Que bom é saber-te feliz com todas as tuas memórias. Que bom é escreveres e partilhares as tuas léguas e milhas que preenchem os teus nossos momentos quando as contas… Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigao Cecília. Se fosse possível viveria num camarote de um barco. Agora é impossível. O Mar é a minha grande atracção. Conhecer gente. Um abraço enorme.

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Bela a sua crónica. Comovente mesmo. Memórias de infância. Memórias de viagens. Belos momentos que fazem esquecer as dores dos ossos, a falta do ouro e a situação que vivemos.
    Obrigada meu amigo.
    Um grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. A vida e os seus momentos únicos. Os reis que não devism ser reis. Contar o tempo. Abraço grande.

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Que crónica linda, nos escreve hoje. Dedicada aos reis magos. Que bela história nos contou, sobre o dia de Reis . Dia em que guiados por uma estrela, chegaram ao local desejado. Quanto á vossa viagem, achei deliciosas as aquisições feitas, o ouro não faz falta a ninguém e Baltazar não se zanga por isso. Adorei o humor das suas palavras. Nem esqueceu o “galo que mudava de cor.” Já não me lembrava. Mas lembro muito bem as dores que tenho nos ossos. Adorei a ternura das suas palavras, meu querido amigo. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Contar uma história feita de histórias. Lembrar o vivido e o que nos contaram. Abraço enorme.

  5. Regina Conde

    Uma crónica que li como se ouvisee uma estória de encantar. Sério! Adoro que me contem estórias e histórias. Adorei a recriação do dia. Abraço grande Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. As estória e alguma história. Lembrar momentos felizes. Se te fiz feliz, sinto-me tão bem. Abraço.

  6. Cristina Ferreira

    Uma delicia de crónica. A “nossa “Isaurinda vai refilando, mas feliz, por te sentir assim, traquinas. E nós também.
    Eu não sou rainha (apesar de ser assim que o meu filho mais velho me trata), mas sou Belchior. E o peso que trago neste apelido, não é do ouro, mas de memórias que trago comigo e outras que cá quero deixar. Quanto a ti, mago das palavras, ofereço-te um abraço de muita ternura, amizade e gratidão.
    Cristina

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Ser Rainha para o teu filho não é pouco, é uma coisa maior. Essa é a tua melhor história. Ser Mãe de filhos que te adoram. Seres a Princesa de casa amada por todod os homens. Que queres mais? Abraço.

      1. Cristina Ferreira

        Acredita que não peço mais. Aliás, acho que nem tenho muito jeito para pedir. Mas gosto e muito de agradecer. Faço-o todos os dias.
        Sim, sou uma sortuda. Beijinho

        1. Jorge C Ferreira

          Que bom reconheceres. Outro abraço

  7. ivone Teles

    Olá amigo/ Irmão. Hoje, a tua crónica fala de um dia que, como sabes passa muito pouco acompanhado no nosso país. Como uma das irmãs do meu pai, a minha tia Adília, fazia anos nesse dia, nem dos ” Reis” nos lembrávamos. O facto de não termos instrução religiosa também não se ligava muito.. As tuas palavras têm, como sempre a magia das tuas palavras. Beijinhos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Uma hostória diferente, para comer bolo rei. Episódios de vida que nos ajudam a viver. Abraço enorme.

  8. Isabel Torres

    Uma crónica de belas memórias,por quem domina as palavras e nelas se encontta e desencronta.

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