Os Muros
por Jorge C Ferreira
Tinha caído o muro de Berlim no dia anterior. Recebo em casa um telefonema de um grande Amigo: «querem ir passar uma semana a Berlim? Só pagam o voo.» A resposta foi imediata: claro que sim!
Dois dias depois estávamos a voar para Berlim. Nos passaportes ainda vistos para a entrada na antiga RDA. Aterrámos em Berlim Oriental num voo da TAROM. Estarmos onde a história estava a acontecer levava-nos a correr todos os riscos. Foi uma semana de loucura. Os amigos que foram connosco tinham a mesma vontade de ver o mundo a mudar como nós.
Trouxemos bocados do muro, um passaporte cheio de carimbos colocados em Checkpoint Charlie. Atravessámos a ponte dos espiões. Experimentámos andar num Trabant. Estávamos num hotel em Berlin Oriental. Saíamos cedo para o lado Ocidental, muitas vezes regressávamos para comer a Berlim Oriental e tornávamos a Berlim Ocidental. Eisbein com chucrute e corn. Só não conseguimos passar pelas portas de Brandemburgo. Foi uma semana de rostos felizes que nos ficou gravada para sempre. Foi uma parte importante da nossa experiência de vida. Ver aquele vai e vem sem fim entre uma cidade ainda dividida. Encontravam-se pessoas conhecidas. Pessoas conhecidas que vinham cheirar uma mudança que se previa maior. Os coelhos tinham fugido do terreno de ninguém que ficava entre muros e passeavam-se em família pelos parques de Berlim. Almoçar no cimo da torre da televisão e ver tudo em perspectiva. Uma amiga que não se cansava de andar de Trabant. No voo de regresso os nossos olhos vinham muito abertos. De espanto e conhecimento.
A quase certeza, pelas conversas que tínhamos tido, que a junção das duas Alemanhas ia acontecer. Questão em que fomos muito contrariados e contestados. No entanto aconteceu. Foi uma das semanas das nossas vidas. Nós que adoramos mudanças e aventuras. Foi assim em muitas outras ocasiões. O coração, no entanto, sempre no lado esquerdo da vida, ao lado dos mais fracos.
Lembrei-me de escrever isto depois de ouvir o Papa Francisco dizer: «Estamos num mundo de muros.»
Sim, é verdade, começam a crescer muros por todos os lados. Gente que sofreu com os muros faz muros para outros. Um contrassenso que me deixa doente. Arames farpados, fronteiras altamente vigiadas e uma fúria guerreira que mete medo. Que mundo estamos a criar?
Tanto país destruído. Tanta gente que ficou sem cidade, sem casa. Gente que já não sabe de onde é. Gente que arrisca a vida e que se entrega na mão de traficantes sem escrúpulos. Uma Europa que não se entende. Morre gente no Mediterrâneo, no Canal da Mancha, em busca de uma vida com dignidade. Gente que, na sua maioria, só pretende um trabalho e uma casa para viver.
A vergonha do muro entre a América e o México. A forma como vivem os mexicanos que conseguem chegar mas não passam da fronteira. Estou cansado de fronteiras.
Quando se chega ao ponto de Marine Le Pen criticar os excessos de um outro candidato de extrema-direita, Eric Zemmour, diz bem sobre o período estranho que estamos a viver.
É esta uma outra grande pandemia. Sinto que somos cada vez mais uma sociedade altamente vigiada. Os senhores do mundo sabem de nós a todo o momento. Estamos a ficar frágeis, altamente vacinados, mas altamente controlados.
Temos de começar a derrubar muros. É tempo.
«Lembro-me dessa vossa viagem. Até me zanguei. Muito gostam vocês de confusão.»
Fala de Isaurinda.
«Eu sei que gostas de nós. Mas ver a história acontecer é das melhores coisas que se podem viver.»
Respondo.
«Tão doidos… Foram-se sempre safando. Nem agora estão mais calmos!»
De novo Isaurinda e vai, um dedo na cabeça a indicar a doidice.
Jorge C Ferreira Dezembro/2021(327)
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Que crónica, Jorge! Como gostei de te ler, de saber que estiveste lá, sempre presente física e emocionalmente em momentos de uma enorme importância para a humanidade, como foi a queda do muro de Berlim. No entanto, que triste é saber que os muros, quer fisicos, quer invisíveis continuam a proliferar neste mundo de desigualdades tamanhas. São muros que separam paises ricos dos pobres, que separam e destroem famílias inteiras. Pelo caminho ficam tantos inocentes a quem roubam o sonho de uma sobrevivência com dignidade. Que triste realidade, que dor nos consome saber que há mais muros que caminhos livres e seguros para acabar com o sofrimento dos mais desfavorecidos.
Abraço grande, meu querido amigo.
Obrigado Manuela. A nossa geração viu muita coisa acontecer. Muita mudança de hábitos e de mundos. No entanto estamos de novo encurralados num mundo indigno. Que nos faltará ver? Tanto para mudar. Abraço imenso
Excelente. Senti-me viajar no tempo. O derrubar do muro, que separava amigos, famílias e afetos.
O mundo a assistir ao acontecer da história.
A esperança de um mundo melhor está abalada.
A Europa não se entende,os refugiados procuram uma vida digna e encontram portas fechadas.
Tantos ficam no fundo do oceano.
Erguem-se muros e barreiras intransponíveis , em nome de interesses económicos.
Para onde caminhamos, meu amigo?
Para os senhores do mundo, vale tudo.
As desigualdades acentuam-se e os muros não se derrubam.
Obrigada por estar desse lado a alertar consciências, desta forma única de escrever.
Um grande abraço.
Obrigado Eulália. Cada vez mais muros. Mais egoísmo. Menos solidariedade. Temos de mudar este mundo. Temos de fazer valer a vida. Abraço
Volta a Berlim em 1989. Rejubilarás! Desmedida alegria pela queda de um sinistro muro. O mesmo que separou famílias, negou abraços, amedrontou olhares e intimidou existências.
Continua. Avança no tempo…
Depois da lição de uma Alemanha reunificada e de um povo que se aproximou e recriou laços, houve quem a esquecesse.
Quem construísse outros “muros”. Quem pactuasse com o tráfico humano e com a morte. Corpos à deriva em mares desconhecidos. Incógnitas terras. Ilhas/cemitérios. Sombras fugidias.
Quanto vexame ao nomear a barreira que separa a América do México?
Tamanha a vigilância dos donos do mundo. Implacável. Tenaz. Ardilosa.
Como preconiza o nosso poeta
-cronista, em jeito de lamento, ” estou cansado de fronteiras”. Quem não está? Quem não está?
Jorge C. Ferreira, guia e mentor, leva-nos num percurso pelos meandros da nossa actual História. Surgiram muros libertadores.
Outros de vergonha.Aqueles que o fanatismo religioso instaura.
E os que nos vigiam e controlam.
Façamos jus a quem nos permite reflectir, bem como adverte e encaminha, pertinente e eficazmente, tendo como objectivo primeiro, um mundo mais igualitário e humano!
Já Isaurinda, sempre atenta, fiel e sem parcimónias, zelando pelos amigos de longa data.
Bem-hajas, Jorge!
Obrigado Mena. Em cada comentário uma crónica tua. A revolta que grassa em nós perante tanta indiferença. Quantos mortos mais precisamos de ver para mudar isto? Abraço grande
Como tão bem nos relata, momentos tão tristes da história da humanidade.
Sempre escutando o seu lado esquerdo, onde mora o seu coração sensível e lembra povos destruídos e pessoas a quem tudo é negado. Os mais fracos. Navegando à deriva, em busca de um lugar melhor. A maioria não chega a bom porto..
Já são tantos os muros!
E o mundo não pára, refletir. A ganância dos homens está incontrolável.
Obrigada, querido escritor por estar sempre, com os que não têm voz..
O seu texto está soberbo, como sempre.
Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Cada vez a ganância medra. Tanta dor nos muros, arames farpados e mares. Temos de estar sempre com os mais fracos. Obrigado por estar comigo. Abraço grande
Admiro a vossa vivência, toda uma vida de histórias e estórias que lembram e levam às memórias. Muito poucos ouviram, viram e visitar o mundo, o vosso mundo, a vossa vida preenchida, que legado os vossos têm o prazer em os ouvir. Fico maravilhada com o que contas, fico feliz por sentir-me presente em tudo o que viveste e contas, escrevinhas com sentimento, com a alegria de teres vivido todo um mundo ,toda uma navegação repleta de tanto e muito que orgulho o meu poder ler-te. Obrigada, sempre meu amigo. Abraço!
Obrigado Cecília. Estar onde está a aconter a história é um privilégio. Tive sorte em algumas situações. Saber das mudanças e ir ajudar a mudar. Abraço enorme
São muros a mais que nos limitam no pouco espaço onde vivemos.
Pagar rendas exorbitantes já é um muro que nos obriga a migrar para latitudes sem destino, entregues a nós próprios.
Santo Deus: que cruz carregamos sem saborear a vida a tempo inteiro e sem família!
O Mundo tem que refletir e investir no futuro.
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Sim os muros não são apenas os muros físicos. Há tanta coisa a impedir a liberdade plena. Tanto para mudar. Grande abraço
Uma crónica excelente como só tu sabes transmitir de momentos únicos e importantes na história da humanidade. Buscando as minhas referências e lembranças é quase com se lá tivesse estado.
Beijinho e obrigada
Obrigado Eulália. E estiveste lá. Hoje estamos em todo o lado. Faltam os cheiros, os suores dos corpos, é verdade. Precisamos de saber filtrar a informação. Grande abraço
Uma crónica de narrativas que se entrelaçam. Vivências passadas por que todos lutaram. A urgência da ida para sentir a liberdade,a nova vida que se iniciava,matando um passado de prisão,sofrimento e impeditivo de movimentos. O privilégio de viver esses momentos inaugurais e vestir-se de novos saberes,de novas gentes.
Esse muro caíu. E outro(s),presente,desenvolve-me numa tragédia incompreensível e evitável, como ttão bem descreve o cronista. Tal como apela a outra luta. Uma batalha por quem foge de realidades indescritíveis, que os levam a arriscar a vida. Os que chegam encontram muros e situações desumanas.
Como refere o autor,é necessário lutar para eliminar este fenómeno. Não desistir. Lutar,sim,pelos frágeis, vulneráveis… e por isso sem força para agir. Quem diria que estes muros seriam possível.
Mais uma vez,uma crónica de revolta,compaixão e indignação por quem sofre,está aprisionado e coaptado de liberdade e dos direitos humanos mundiais.
Obrigado Isabel. Procurar saltar todos os muros. As barbáries a mando dos senhores do mundo e as outras. Um mundo do avesso. Vamos mudar isto. Abraço grande
Foi em Novembro de 1989. Nunca me esquecerei. Estava internada num hospital, depois de uma intervenção cirúrgica altamente traumatizante (cancro de mama). Via as imagens passarem numa televisão do quarto e associo o acontecimento, mesmo que não queira ao meu problema que pensava ser o fim da minha vida. Afinal só morremos quando menos esperamos e a morte na maior parte das vezes não se faz anunciar.
Mas os Muros continuam e não param infelizmente de ser levantados. O da Cisjordânia tem muitos quilómetros de comprimento. O de Belém, dentro da cidade de Jerusalém. Os de arame farpado, e os de água, nos mares onde jazem milhares de corpos que tentaram passar as fronteiras. Todos os dias ouvimos falar de mais muros.Este Mundo não é o que foi prometido aos Homens! Há outros que têm interesses no negócio das armas, que fomentam as guerras,. Outros que investem fortunas em viagens ao espaço em vez de investirem esse dinheiro que têm a mais a matar a fome em África e nos Países carenciados.
Que desilusão!
Chegar ao fim das nossas vidas e deixar como herança aos nossos netos este mundo porco e desumanizado!
Obrigada por continuares a escreveres poemas todos os dias!
Abraço.
Obrigado Maria Fernanda. Que muro tu saltaste! Que vitória a tua. Mas os muros estão a proliferar. Os senhores do mundo nunca estão saciados. A cegueira das religiões cega-nos. Vamos acreditar num mundo novo. Abraço-te muito
Bonito texto sobre muros. O de Berlim que desde criança achei que cairia pois não se pode dividir um povo por decreto (pensava eu). Esse muro por razão bem diferente da minha ideia de menina caiu pela mesma razão que foi construído, por “política”. Vivas de todo o lado à queda do muro de Berlim pois do lado oriental havia um bicho papão “O Comunismo”. Hoje, afastado o equilíbrio de forças mundial, imposto pelo bicho papão, e como escreve Jorge C. Ferreira no seu belo texto, vão sendo construídos outros muros em vários lados, uns de cimento outros de arame farpado e ainda outros pela mão humana. Muros que separam a Palestina da sua própria terra, os do México para que os mexicanos não entrem nos EUA, os refugiados a quem os EUA e a pandilha da UE lhes destruiu a sua terra e que apenas querem ter direito a viver e morrem na fuga no mediterrâneo transformado-o em grande cemitério. Os refugiados são impedidos de entrar na UE mas não é impedido com tanta brutalidade o tráfego humano tanto para exploração sexual, ou para transplante de orgãos ou, como entre nós, para a mão de obra escrava em estufas de produção agrícola e outras culturas. O mundo tem vindo a percorrer um caminho de desumanização, de falta de respeito e compaixão pelo próximo que só nos pode levar a um novo holocausto tenha ele a forma que tiver.
Obrigado Leonilia. Que bom estar neste espaço. Sim, os muros continuam a crescer. A ganância não cessa. O mundo está um local perigoso, cada vez mais perigoso. Temos de estar atentos e mudar este estado de coisas. Não desistir. Abraço grande.
Vida! Tão bem vivida, querido Jorge. Por momentos foi como se eu também lá tivesse ido. Que Dom bonito que tu tens.
Muros. É o tema desta belíssima crónica. Quer sejam físicos ou não , é nosso dever nunca alimenta-los. Derrubar sempre.
Obrigada por este momento.
Abraço
Obrigado Cristina. O meu problema é que os muros e a falta de solidariedade aumentam. Precisamos de ser solidários. Saber amar o outro. Abraço enorme.
Lembro bem a queda desse muro. Um ex-colega meu do secundário estava lá a estudar.
Que o tempo de viajar aventurando-se volte rapidamente, é o que todos desejamos.
Um abraço.
Obrigado Sofia. Depois da queda desse quantos cresceram? Uma situação que não devemos tolerar. Grato por estares aqui. Grande abraço