Os anos contados
por Jorge Ferreira
Quantos anos perdidos nesta vida. Anos sem nexo e sem fruição. Chega o fim do ano. Uma coisa previamente determinada. Uma invenção, para mim, escusada. Os terríveis calendários. Os malvados relógios. Já chega a noite e o dia. Mesmo nos sítios onde a noite dura vários meses.
Que atrasados estamos. Que interessa quantos anos temos. O ano em que nascemos. Somos nós que nos sabemos avaliar. Hoje já existe uma coisa chamada idade biológica. Coisa a que não ligo muito. Acho que é mais uma treta. Serve para fazer bons contratos. Não estou interessado. Passo. Como passo os livros de auto-ajuda, os falsos médicos e todo o tipo de trapaceiros. Não me convencem.
Porque nos andamos a regozijar por mais um ano feito? As velas, o bolo, aquela canção sempre desafinada e, no fim, as palmas. Todos os anos o mesmo. Felizmente que há alguns de que não me lembro. Agora nem beijos nem abraços. Apenas cotoveladas. Não tarda nada volta a moda das cotoveleiras na roupa. Passa a ser fino.
O que é a vida? Que caminhada é esta? Porque nos desafiamos todos os dias? Porque nos encantamos quando mais uma noite acaba?
Qual a razão para nos festejarmos nestes dias sem vida aparente? Um cansaço que nos arrasta para não sabemos onde. Os do costume no café e, subitamente, as regras são quebradas. Aparece do lado de fora da esplanada um Pai a quem morreu um filho de quarenta anos, não, não foi desta malvada doença, apareceu com as lágrimas a borbulharem nos olhos. Eu e Isabel levantamo-nos, dizemos aquelas palavras de circunstância que, pelo menos a mim, me saem sempre embaraçadas e sem nexo e, finalmente, é afectuosamente que saudamos o nosso conhecido. Ficámos sem medo e com a sensação do dever cumprido. Sentimos a vida a cumprir-se. Olhamos um para o outro com os olhos húmidos e percebemo-nos sem uma única palavra. Até que a Isabel disse: «este homem necessitava de dois beijos.»
Como terá sido o enterro? Quantas pessoas? Quantos abraços? Que tempo este! Porque não fomos avisados?
Fui ao cabeleireiro. Pareceu-me estar numa nave espacial. Limpezas, desinfecções, plásticos. Só não sei quantos de cada vez. Esperei cá fora. O cabeleireiro veio-me chamar. Não cortava o cabelo desde novembro. Saí mais leve e, espero, mais desinfectado.
Uma coisa boa disto tudo. O contacto mais assíduo com o pequeno comércio. Com os que são nossos vizinhos. A preocupação com os mais frágeis. Os telefonemas mais assíduos.
No entanto custa-me ver os transportes cheios com os que vão colocar tudo em ordem para os outros começarem a trabalhar. Não me digam que não há classes. Claro que há e claro que há modos diferentes de tratamento.
Entretanto o ministro compra carruagens de comboios em segunda mão na “feira do rastro” de Madrid.
Vem aí dinheiro. Os escritórios de advogados já estão a trabalhar. Os mercedes estão na linha de montagem.
Viva o TGV Lisboa Porto. Uma pena ter fechado a “Casa Aleixo”. Adeus meus queridos filetes de polvo com arroz do mesmo e minha adorada aletria.
“Tu, tem calma. Vamos vivendo um dia de cada vez. Sempre foi assim para mim.”
Fala de Isaurinda.
“Eu sei, mas isto custa. É diferente. Faz mal à cabeça.”
Respondo.
«Olha, aguenta. Não sejas coca-bichinhos.”
De novo Isaurinda e vai, o lenço a rodar em cima da cabeça.
Jorge C Ferreira Julho/2020(260)
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
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Crónica dos actuais dias.
Como tu, dispenso os livros de auto-ajuda. Cada um saberá o que lhe traz bem estar e pode recorrer aos amigos que o são mesmo. Fica logo melhor.
Como tu, cortei o cabelo que não cortava talvez também desde Novembro. Eu e a minha filha. Uma sensação de certa estranheza.
Não passei uma cena dessa, de luto de um amigo por um filho, sempre tão enormemente triste. Mas não deixaria de abraçá-lo, como vocês.
Também me faltam abraços, sobretudo aquele que sabes; o que não esperava perder algum dia. E deliberadamente.
Estranhos são estes tempos, de notícias muitas vezes más, cada vez mais violentas. Alteram-nos a disposição, abanam quem somos.
Um abraço.
Obrigado Sofia. Que tempos estes. Estamos com as mesmas rotinas e as mesmas faltas. Compreendemo-nos bem. Andamos quase sem rumo. Abraço imenso.
Os abraços os beijos os afectos tudo em compasso de espera. Os dias as horas o medo a ansiedade a aflição. Vivemos tempos conturbados até quando meu amigo?!
O amor dos nossos as suas vozes alegram-nos os dias que não passam que passam se passar. Um abraço amigo obrigada.
Obrigado Isabel. A vida a complicar-se. Os sentimentos a serem chorados. Tanto o que nos falta. Abraço.
Meu querido amigo
São dias pouco claros e perturbantes,já nem sei se será desse tal vírus que afirmam ser invisível mas que de algum modo se mostra … Uma calamidade que tem estados de estágio. As festas de arromba,as orgias,as bebidas,os grupos e os ajuntamentos. Os tiros que atingem,a maldade que o vírus faz ou fez questão de mostrar aos que escondiam ser…a futilidade das festas ou a importância delas. Os ladrões e os policias. O fogo e os bombeiros ,as estevas que ardem por da cá aquela palha de mãos criminosas ou loucas. Mulheres e crianças que viveram quarenta anos de maldade. Meu amigo,não sei se tenho medo do desconhecido se medo de ligar a TV e ver…ver a pandemia viral do que é o ser humano na sua essência. Não todos,mas muitos me assustam,sinto-me orfã,desaprendi,creio eu, a saudar afectos,os abraços ainda os posso prometer,mas,e o coração? saberá distinguir ou ainda bater forte? Meu querido amigo,tal como o vírus perdi-me algures no que ainda sou… A tua crónica é o que ainda me faz aparecer. Fica bem,frase feita,mas que me salva a acreditar no que poderá ser o amanhã com todas as tempestades previstas. Fica bem,para pudermos ficar igualmente BEM!… Abraço!
Obrigado Cecília, que belo comentário. Uma maravilha. As nossas dúvidas e os nossos receios. A vontade de nos superarmos. Cuida-te muito, minha amiga, Abraço.
Que crónica maravilhosa.
Dias infinitos. Noites sem fim. Anos velozes. Cada um é menos um.
Menos saúde. Menos tranquilidade.
O sorriso fica por detrás da máscara. Os olhos vêem o que não viam.
O coração sente o que nunca sentiu. Sente a falta do abraço, do carinho, do beijo. Aprende-se uma nova forma de amar.
Os poderosos continuam loucos. A ambição não conhece regras nem medidas. Para onde caminhamos?
Cada vez mais, regresso às memórias do tempo em que cada dia era mais um. Continuo a resistir.
Sempre igual a ” sua” Isaurinda com belos conselhos.
Obrigada meu amigo por estar desse lado.
Grande abraço.
Eulália, minha amiga, obrigado. Escreveu tudo no seu comentário. Leia, por favor. a minha próxima crónica. Muito grato pelas suas palavras. Abraço.
Que dizer de nós para, de um momento para o outro alterarmos todos os nossos comportamentos, até temos receio de respirar, mas não nos esquecemos de o fazer, seria a nossa ruína. É uma mudança experimental a cada dia neste laboratório da vida. Lamenta-mo-nos todos e acreditamos que vai passar por que nada é eterno mas, enquanto passa e não passa tentamos vivemos escondidos do que não vemos.
Um abraço, Jorge.
Obrigado António. Há uma mudança na nossa vida que custa. Estamos metidos no meio de um ciclone de sentimentos. Abraço.
Não há calamidades que interrompam o meu caminho porque só assim ele o é.
Tenho descoberto, neste tempo de máscara que continuamos a comunicar … O nossos olhos quando vêem são os maiores comunicadores e talvez por isso, a Isabel, tenha dito da necessidade dos beijos.
A máscara de nada nos impede na expressão dos afetos e não faço dela um acessório de moda.
A máscara, protege-me. Não me limita no essencial ao coração.
Beijo grande
Obrigado Isabel. Os olhos. Essa linguagem que não engana. Os olhos que se beijam. És uma lutadora dos afectos. Abraço.
Bonito isso 🙂 lutadora dos afetos.
Sim, é verdade. Tudo o resto é só o resto.
Beijo
Tempos estranhos estes que nunca imaginámos viver.
Abraços e beijos adiados. Afectos contidos. Mas há momentos em que o coração fala mais alto. Aconteceu-me por duas vezes e, em ambas, chorei de emoção.
E que bem me souberam aqueles abraços….
Num deles fiquei ali, como se uma cola invisível nos impedisse o mínimo afastamento.
E passei a dar um valor, ainda maior, aos abraços.
Ainda não passou meio ano desde que esta pandemia nos veio alterar a vida e parece uma eternidade. É como se o tempo tivesse parado continuando a andar. É como se cada dia fosse um dia perdido.
Precisamos recuperar este tempo não vivido.
Precisamos retomar as nossas vidas e regressar depressa à verdadeira normalidade. Porque não é normal exteriorizar afectos à cotovelada…
Precisamos ter de volta o tempo dos abraços!
Maria, obrigado. A falta que os afectos nos fazem. Chorei com as tuas lágrimas. Acho que este ano vai ser retirado do calendário. Abraço-te muito.
Meu querido Jorge, mas que posso eu acrescentar ao que nos escreveste? Eu iria copiar e não gosto. Mas é, tal qual dizes e escreves. Que sensação tão estranha. A ansiedade sobe diariamente, Muitos amigos foram para as suas casas em Quiaios, praia/campo, no sopé da Serra da Boa Viagem. Há uns anos que íamos para o Hotel de uma engraçada ” urbanização ” que lá existe há anos. Casas pequeninas, muito agradáveis, com tudo pequenino. Quase Parque de Campismo. Este ano ficamos por aqui. A saúde assim obriga. Tempos difíceis . Eu que sou uma pessoa de abraços e beijos; de tocar em quem gosto, Um gesto que, em segundos, permaneça. Muito gostei da tua crónica, como de tudo o que leio de ti. Dá à Isabel um beijo meu, mesmo não a conhecendo pessoalmente. Outro à Isaurinda, teu alter-ego. Para ti, abraço muito terno, coração com coração. e beijinhos grandes da tua Amiga/ Irmã .
Ivone, obrigado minha querida Amiga/Irmã. Estamos num tempo sem vida. Tudo adiado e nós sem tempo. Grato por tudo o que aqui vais escrevendo. Abraço imenso.
Eu sou de afetos…sou do toque…gosto de abraços…
Neste tempo, sem tempo, num dia de cada vez…há situações que nos deixam sem palavras e, agora sem gestos…
Isto vai passar…há de passar…
Os abraços e os beijos vão voltar!
Até lá, uma ” cotovelada”,meu amigo.
Obrigado Idalina. Somos latinos, somos do sul. Que a sua esperança se cumpra. Abraço.