Crónica de Jorge C Ferreira | O Prescrito

O Prescrito
por Jorge C Ferreira

 

Jorge C Ferreira, setenta e dois anos. Tanto tempo. Tantos anos a viver e sobreviver. Perto de prescrever.

Quem me vai salvar? Quem me vem salvar? Desta agonia de me sentir perto da prescrição.

Um Senhor Doutor Juiz de Direito olha para mim, incrédulo, e diz de martelo na mão: – O senhor aqui? Respondo: – Sim, sou eu. De novo o Juiz: – O Senhor diz ser Jorge C Ferreira? e acrescenta uma série de números identificativos que alguns sei de cor. Verifico os outros, tento fazer prova com os documentos. Mostro-me de frente e de perfil. Tiram-me as impressões digitais. O Juiz diz que vai reunir com os oficiais de diligência que têm, em seu poder, todas as provas da minha existência. Ali fico sentando a torcer os dedos. A máscara a importunar-me.

O Juiz entra de novo e traz não sei quantas páginas escritas, e começa a debitar uma lengalenga que parece não acabar.  No fim a tomada de decisão é inexorável: … – embora os documentos sejam credíveis e as impressões digitais confiram com as suas, estamos perante um caso de difícil prova. Na verdade o senhor prescreveu, portanto, tais provas ficam em poder do tribunal. Assim fiquei declarado prescrito. Assim fiquei ninguém indocumentado. Assim me declararam um não acontecimento.

Saí do tribunal e fui falar com os Jornalistas. Apenas uma declaração sucinta: – Esqueçam. Eu não existo. Sou apenas uma sombra. Ficaram umas coisitas que irei resolver.

Dizem-me que tudo depende dos Juízes, dos bons advogados. Dos buracos na lei. De inventar não acontecimentos. De saber esconder bem as coisas. Da classe social do arguido. Tento não acreditar.

A partir do dia em que decretaram a minha prescrição e não existência comecei a ficar transparente. Ninguém me via. Eu bem me tentava mostrar, mas a minha não existência estava a funcionar.

No entanto, tudo isto me estava a incomodar. Foi então que decidi ir para Paris. Mercadejei com um fulano e, com documentos falsos, lá cheguei. Enfim Paris. Paris de novo. Como eu gosto daquele ar. Daquele bairro de gente bem. A Torre Eifell ao fundo. Sempre que saio à rua a porteira trata-me por Sr. Engenheiro. Fiquei outro num instante. Pedi a um Amigo para me escrever um livro sobre um tema do qual tinha umas ideias soltas. O rapaz aprimorou-se e eu tinha amigos que compravam muitos livros meus de uma só vez. Tinha de ser um êxito.

Acordei e estava, afinal, aqui. Fui em busca dos documentos e tinha-os todos. Tocou o telefone e ouvi uma voz: – Daqui fala o Rosa. Desliguei e fui tomar um duche.

Ligo a Televisão num canal de notícias e a primeira notícia põe-me vermelho de raiva:

Um quinto da população portuguesa é pobre e a maior parte das pessoas em situação de pobreza trabalha, sendo que a maioria dos trabalhadores nessa condição tem vínculos laborais sem termo, segundo o estudo “Pobreza em Portugal — Trajetos e Quotidianos”.

É assim este o país em que me calhou nascer. Dizem-me que estou na Europa. Num país desenvolvido! Tudo isto é uma vergonha.

Todo este estudo foi feito antes da pandemia. Vamos ver o que aí vem.

«Tu toma cuidado contigo. Olha que há para aí gente…»

Fala de Isaurinda.

«Apenas inventei uma historieta, nada de mais.»

Respondo.

«Sim, sim. Tu és um gozão.»

De novo Isaurinda e vai, nas mãos leva um riso cansado.

Jorge C Ferreira Abril/2021(298)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O Prescrito”

  1. ivone Teles

    Meu querido Amigo/Irmão, só hoje vim espreitar. Vim e cheguei a tempo. Gostei muito desta tua Crónica, desta tua fábula. Prescrito. Há muita gente, “contentinha” com as prescrições. A tua História de VIDA não prescreveu, querido Jorge, mas porque tens ainda muito de ti, guardado. Provavelmente ” o melhor de ti “. És um SER dos que são únicos, porque guardam em ” SI” o que provoca que juízes, ” encartados, ou não “, os querem prescritos. Pessoas como tu, ” são muito ” perigosas “. As autoridades, oficiais e outras, sempre de martelo a bater em secretárias, conferenciam entre si e concluem: ” O melhor é prescrevê-lo ” Mas tu iluminas o escuro; perigosíssimo. Beijo amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Não podemos deixar que nos prescrevam. Temos de ser uma voz activa contra as injustiças. Temos de continuar. Não calar. Abraço enorme.

  2. Maria Luiza Caetano

    Esta é mais um excelente Crónica.
    Escrita de um forma única. Ao seu jeito, como tão bem sabe. Com humor inteligente, gostei muito.
    Como são merecidas as palavras que o Jornal, onde colabora lhe dedicou.
    É um gosto lê-lo querido escritor, de alma e coração “Transparente”.
    Muito obrigada, por estes momentos. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Gosto tanto de a ver aqui. Neste nosso espaço. Tão belas as palavras que temo não merecer. Abraço enorme

  3. Filomena Maria de Assis Esperança Costa Geraldes

    Prescreveste, Jorge?
    Ora muito bem. Não serás o primeiro nem o último…
    Quanto ao teu inesperado desaparecimento, bem me pareceu. Andei à tua procura e não te encontrei.
    Nem em Paris. Nem de volta a casa. Nem à saída do duche. Com cheiro a alfazema.
    Calma. Depois, dei por ti.
    Vermelho de raiva. Com os olhos acesos. A ler as últimas notícias. Sobre a miséria em Portugal. Terrível flagelo!
    Dizes que é um país desenvolvido?
    Possivelmente desenvolvido em injustiças. Corrupção. Prescrições.
    Não te esqueças que nem tudo é negativo neste nosso pedaço de terra. Temos, se bem me lembro, uma óptima gastronomia, um sol de dourar até as criaturas que chegam das terras frias do norte e uma mão cheia de turistas que dizem, num portugalês arranhado que adoram o Algarrrrve…
    E pouco mais.
    Mas eu nem sou má língua. Pelo menos é o que afirmam os entendidos. O SNS tem dado conta do recado, as escolas continuam a funcionar e a justiça, bem, o melhor é calar-me.
    Não estou a ver-me num tribunal, a ser observada em detalhe, com ou sem provas e, finalmente, a ser dada como prescrita.
    Valha-me Deus e a Santíssima Trindade!
    Vou mas é desaparecer.
    Ah, eu nunca te contei, mas sou da raça dos super heróis e quando me dá na real gana, transformo-me em vespa e dou ferroadas a quem me irrita. É que hoje estou irritada. Deve ser do SPM…
    Desculpa, amigo, mas apeteceu-me brincar.
    Resultado das tão bem intencionadas prescrições.
    É sempre um gosto.
    Um paladar indescritível.
    Uma verdadeira aventura para a mente.
    Uma afortunada bênção.
    Ler-te!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Que bom o teu comentário. Fico irritado com a pobreza endémica deste país. E com os que se entretêm a fazer caridadezinha. Abraço imenso

  4. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Um país desenvolvido sem faculdades mentais ou mal aproveitadas!
    Valham-nos todos os santos e arcanjos!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado meu Amigo. Tanta pobreza. Tanto emprego precário. Alguns senhores que engordam à custa da miséria. Abraço

  5. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente. A realidade com uma pitada de humor.
    O sonho de uma vida de luxo em Paris. Sonho, que para alguns é a vida real.
    Acordar e entrar no pesadelo. Os poderosos a dominarem o mundo. Os pobres a tentarem sobreviver e ficar cada vez mais pobres. As diferenças entre os povos a acentuarem-se.
    O sonho a tornar-se pesadelo. A cegueira avassala o mundo.
    Vamos resistir, amigo.
    Obrigada pela sensibilidade e partilha dos seus textos.
    É um privilégio poder acompanhar a sua escrita única.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eugénia. As desigualdades cada vez maiores e que temo se vão acentuar. Os barões a engordar fortunas. Um estado de vida que nos cansa. Não podemos desistir. Abraço.

  6. Isabel Torres

    Mais uma crónica de uma simplicidade bela. Leva-nos a pensamentos profundos. Escrita em duas partes. A ironia da primeira,onde se advinha a admiração e o desnorte;da qual só o “sonho” permite verbalizar. A segunda aponta para uma realidade dura,mas real onde se manifesta a indignação.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabe. As duas paryes estão ligadas. São as grandes negociatas e a corrupção que fazem de nós um país cada vez mais pobre. Temos de deninciar. Abraço

  7. Cristina Ferreira

    Gostei muito. Parabéns e obrigada.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Que bom teres gostado. Que bom teres vindo comentar. Abraço

  8. Cecília Vicente

    O nosso jardim à beira mar plantado, devia ser um paraíso este nosso recanto e afinal tanto tem de excelente como tem de inferno, e são muitos a viver neste momento um inferno inesperado, fazem fila para receber o que comer, por vezes a única refeição do dia. Pobres infelizes, bem que podiam ter algum familiar que lhes presenteasse com algum, muito para viverem desafogadamente (…) se bem, que ninguém dá nada a ninguém, a não ser, a não ser, era uma vez…
    O rei vai nu, a procissão continua, e nós a vermos… tanta desilusão que fere a alma, o coração bate por bater, viver deixando que nos façam de ” Burros” e assim vai a pandemia da vida, o vírus agradece, continuo na minha, o vírus é um ser inteligente… Abraço meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Grande comentário. As injustiças sociais. A corrupção. As mentiras e os mais frágeis sempre a sofrer. Vêm aí tempos difíceis. Abraço forte

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