O pranto
por Jorge C Ferreira
Sentirmos no ombro, no peito, um dilúvio de lágrimas. Ouvir os ininterruptos soluços. Tentar acalmar a dor e deixar que a raiva passe. Os gonzos da cela da prisão a encerrar a liberdade. O barulho das pesadas chaves. Uns lábios muito quentes. A febril emoção.
Saber da aveludada pele de outros pigmentos. Saber do amor falado noutras línguas. Outras maneiras de amar. Amar sempre o outro. Nunca sentir as diferenças. Ama-se porque sim. Porque se sente algo de especial. Uma vontade enorme de ser parte do outro. Um formigueiro que nos invade o corpo.
Saber ouvir as queixas dolorosas, os caminhos interrompidos, a vida por fazer. Ouvir calado, sem interromper, porque a vida nem sempre é fácil de contar. Esperar pela história inteira. Saber que há hiatos que são difíceis, que estão escondidos. Coisas que não se querem lembrar. Momentos perdidos no tempo. Coisas tão difíceis de lembrar como o corte do cordão umbilical.
O sítio do desabafo é indiferente. Pode ser um banco de autocarro, de jardim, um café vazio, um vão de escada, o poço da morte de um parque de diversões. Interessa é que haja quem saiba ouvir. Quem fale o menos possível. Que o silêncio seja um coro de embalos feito por quem o quer escutar. Quase um calado namoro.
Um autocarro de bancos verdes. Uma aflição com rodas. Um autocarro sem segregação. Um autocarro onde se podia chorar. A vista da prisão. Os muros altos e o arame farpado. Há quem chore do lado de lá. Depressa se entra num parque enorme. Uma cidade espreita para lá de tudo. Uma vontade imensa de nunca lá chegar.
Um cansaço de emoções vai castigando os corpos. Os soluços vão-se espaçando. As lágrimas mais grossas vão caindo demoradamente. Uma cara afogueada pela agonia. Por sentir a dor dos outros. A humana maneira de ser.
O ombro e o peito que tudo aceitam não desarmam. Estão ali até ao fim. Sem pedir nada em troca. É assim a solidariedade dos que sabem o que é sofrer.
O autocarro entra na cidade. Ruas por onde se cruza gente apressada e sem rosto. Mulheres vestidas de preto. Mulheres que nunca irão vestir outra cor. Um luto ou uma dor. Uma falta imensa que apetece escrever nas paredes brancas da urbe.
Temos de ser solidários. De saber dos outros. De não nos preocuparmos com o politicamente correcto. De não nos importarmos com o ter. Temos de crescer como humanos e arriscar pelos mais débeis. Temos de saber ouvir o outro. Temos de ter sempre vontade de alcançar o próximo estádio, de ir derrubando injustiças e nunca calar os criminosos actos.
Saber do pranto a história toda. Saber distinguir o choro sentido do choro das carpideiras. Aprender com a vida. Com o peito molhado e o ombro que consola. Nunca cobrar nada.
Chorar faz bem! É um tipo de cura dos desgostos engolidos.
“Olha que eu gosto do que escreveste hoje. Mas não abuses.”
Fala de Isaurinda.
“Que bom que gostaste. Fico tão contente.”
Respondo.
“Nada de vaidades!”
De novo Isaurinda e vai um lenço no ar a dizer adeus.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Há torrentes muitos nossas. Segredos que embalamos no peito.
Num mundo onde todos têm voz, mesmo que seja só para conflituar ou falar do supérfluo, do insignificante, saber ouvir é mais que virtude; é algo raro e precioso.
Tudo vai fazendo menos sentido; no entanto, é preciso continuar.
Um abraço.
Obrigado Sofia, sabes, sempre gostei de ouvir. De ficar ali a aprender sobre a vida. Aprendi com os meus mais velhos. Beijinho
A Solidariedade, as Histórias. Tão bonito este texto! Adorei! 🙂 Beijinhos.
Obrigado Sara, querida Sobrinha. Fico tão feliz por te ver aqui. Obrigado. Beijinhos
Belo. Tão belo. Tal como a Isaurinda fiquei rendida às palavras que tanto dizem. O alerta de sentimentos. O grito de liberdade. A justiça que se perde na multidão.
Ouvir o outro. Estender a mão. Dar o ombro. Não interessa cor ou raça. Não interessa o lugar.
Solidariedade. Sentir o outro.
Obrigada, amigo, pela forma maravilhosa com que fala das desigualdades. Obrigada pela luta pela liberdade e igualdade.
Um grande abraço.
Obrigado Eulália. Que bela leitura a sua. Sempre prontos para ouvir o outro. Abraço.
Querido Jorge, como tu consegues nos tocar sempre com as tuas belas, lúcidas e sensíveis palavras. Dizes tanto na tua forma tão doce e delicada. Abordas os temas mais dolorosos com a maior e mais pura leveza, fazendo chegar ao mais intimo de nós. Por isso te chamo o mago das palavras. Por isso nunca me canso de te ler.
“O pranto” – Quem nunca viveu dias ou momentos de dor? Quem nunca viveu ou vive a precisar de um ombro? De um peito que bata junto e ao mesmo tempo que o seu? Muitos de nós. Tantos. E tantos que nem nos passa pela cabeça. E por vezes tão próximo de nós. Mas nós somos egoístas. Vivemos numa sociedade cada vez mais egocêntrica. Cada um só olha por si. Para si. Fechado no seu mundinho.
Felizmente há quem esteja atento, quem saiba olhar e ver. Quem saiba se colocar na pele do outro, ou simplesmente, que saiba respeitar a dor do outro. Como dizia, felizmente há, mas são poucos. Abençoados sejam, que para mim têm um nome, chamo-lhes anjos. E abençoados sejam os que por eles se deixam tocar. Por esses seres de Luz.
A tua crónica é muito bela. A Isaurinda emocionou-se. ela sabe que tu és o mestre. E nós também.
Abraço.
PS:
Obrigado Cristina. A necessidade de ter alguém em quem se confia e se entrega tudo. A importância de saber ouvir. A calma que chega. Abraço.
” O Pranto, um canto de dor impossível de não ouvir, de não sentir. O choro às vezes está preso bem dentro do peito, outras vezes os olhos também choram e caem lágrimas, mas o pranto dói em quem o deixa escapar e em quem dá o ombro para o amparar. Belo o teu texto. Uma cena de ” um filme de uma(s) vida(s). A tua escrita cinematográfica. Um recado.” É assim a solidariedade dos que sabem o que é sofrer” ( palavras tuas). Alertas para que a ” humanidade ” não seja só uma palavra. Contigo, existe. No olhar, num sorriso, num abraço. Por isso este texto teu. A tua sensibilidade. O gosto de ajudar, de ter sempre uma palavra para ajudar. És assim, Jorge, meu Irmão/ Amigo.
A Isaurinda gostou porque ela adivinha o teu interior. O tal onde a dor se cola. A de outros e a tua. E o teu entendimento da Vida. A tua generosidade. O mundo seria melhor com gente, como tu. Gostei muito. Beijo.
Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Tu sabes de tudo isto muito mais que eu. Tu és uma mulher sempre atenta aos outros. Abraço enorme.
Belo, tão belo este texto. Que te posso dizer mais que isto? Este teu jeito especial de escrever poucas palavras, todas repletas de sentimento. A pigmentação a não fazer sentido. Ser solidário. O ombro, o abraço, as lágrimas incessantes. Se eu tivesse lágrimas talvez ao abraçar a Isaurinda acontecessem. Meu Amigo Jorge deixo-te um abraço imenso.
Obrigado Regina. Saber quanto vale cada lágrima. O pranto cansado. Quando a vida pesa. Abraço imenso também para ti
“Olha que eu gostei do que escreveste hoje!”
Com a paixão. Solidariedade.
Tolerância.
O que lhe queiramos chamar.
O estar para os outros. Este espaço onde pairamos não nos pertence. É de todos. As ruas. As calçadas. Os becos. Os transportes.Os miradouros.Os monumentos. Os parques.
Os espaços verdes. A beira do mar.
Chorar? É deixar escorregar, em modo de lágrima, o que nos enfraquece. O que dói. O que custa a curar ou não tem cura.
O reaprender a escutar. As frases que chovem. As que reclamam. As que se tingem de negro. As dormentes. As eufóricas.
As que nada dizem… Só porque pedem um olhar atento. Um ombro moldado em barro. Ou apenas um aceno de cabeça.
Amar não precisa de palavras…💕
Obrigado Mena. Que bom ver-te por aqui. Que bem que escreveste o inexplicável amor. Abraço.
Penso que não se nasce com maldade. As condições de vida e a educação é que vão formando, ou deformando, cada pessoa. A vida devia ser a aprendizagem da constante melhoria de cada ser humano. Nunca o contrário.
Há experiências traumáticas que podem transformar vidas. Uns revoltam-se. Outros vão escondendo os seus prantos. Tal como dizes, é muito importante saber ouvir. Saber distinguir o pranto (tantas vezes camuflado) da pegajosa lamechice. Separar o essêncial do supérfluo. Escolher Ser em vez de Ter. Ser solidário. Ser justo. Ser humano!
A Isaurinda gostou. Eu também!
Maria, tens toda a razão. Nascemos iguais. Ser solidário é uma urgência. Saber ouvir os outros. Abraço grande.
Li o texto, como sempre, até ao fim como se estivesse a escutá-lo. Ouvi as palavras no meu silêncio e não houve interrupções para quebrar a sequência de um raciocínio que ajuda a erguer quem está necessitado de ser ouvido e ouvir quem está no uso da palavra. Os convidados para a entrevista sempre a serem interrompidos por quem não sabe ouvir e diz disparates julgando-se brilhante perante a câmara . É um tempo perdido que não mais será recuperado!
Que pena!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. No meu tempo, nos jantares em família, os mais novos tinham de pedir para falar, Assim aprendi a ouvir. Saber ouvir e ser solidário a importância que tem. Abraço.