Crónica de Jorge C Ferreira | O Nosso Chile

Jorge C Ferreira

 

O Nosso Chile
por Jorge C Ferreira

Santiago do Chile, Cerro de Santa Lucía.

Chegar e ver uma exposição de arte Mapuche. Uma frase chama a minha atenção:

“La tierra no es nuestra. Nosotros somos de la tierra”.

Sento-me num banco de madeira junto a uma fonte e é aí que, de repente, acontece o episódio a que chamei:

“O Baptizado”

Chegou como se viesse do nada. Vinha sujo, mal dormido e mal vestido. Trazia sulcos da calçada no corpo maltratado. Os cabelos fartos, inimigos de pentes e outros tratamentos capilares. No rosto, apesar de tudo, traços de luz.

As marcas da dificuldade da vida sobrepunham-se, no entanto, a tudo o resto.

Chegou àquela fonte como se tivesse chegado ao rio Jordão. Encheu uma garrafa velha que trazia com a água que jazia no lago e despejou-a pela cabeça como se estivesse a baptizar-se. Depois saciou a sede com a água conspurcada.

Ficou a olhar para o nada. O vazio encheu-lhe a cabeça. Bebeu mais água. Apertou o cordel que fazia de cinto. Baptizou-se de novo. Uma confirmação de votos.

Depois encheu a velha garrafa e partiu. Por certo foi procurar outra fonte.

Também eu fui explorar o cerro e as suas fontes. Subir sabendo que tinha de descer. Depois, descansar de novo. A figura de que vos falei nunca mais a vi.

O segundo episódio passa-se em Valparaíso e tem como intérprete a Isabel. Tudo aconteceu depois de vermos a Sebastiana a casa de Pablo Neruda naquela cidade. Cada casa do poeta é uma forma de brincar com a vida. Uma festa. Vamos então ao episódio que apelidei de:

“Um Gato”.

Começamos a descer da Sebastiana para o museu ao ar livre. A Isabel acha que já andou por aqui. Só não sabe quando nem a fazer o quê. Vai descendo como se conhecesse todas as esquinas. Vai à minha frente, como quem diz:

«Esta é a minha terra, já fui daqui.»

Vai ligeira. Senhora de si. Uma alegria a encher-lhe o corpo.

Acerca-se um gato, que a rodeia e se encosta às suas pernas, uma dança desatada. De repente levanta o rabo, fica com o pelo eriçado. Também ele parece dizer:

«Já por aqui andaste. A isso me cheiras. Por que voltaste?»

A Isabel continuou a descer, o gato, embora nitidamente indisposto deixou-se ficar. Eu, que vinha mais atrás, passei pelo bichano, nem olhou para mim o felino, votou-me a um desprezo imperial.

Depois de estarmos sentados a apreciar o museu ao ar livre descemos na direcção do mar. Quando chegámos à beira-mar sentámo-nos a falar do que se tinha passado.

A Isabel continuou a dizer:

«Eu já fui daqui, mas foi há muito tempo, não me consigo lembrar de nada.»

Atravessámos todo aquele bulício, tomámos um café. Tudo num silêncio por vezes entrecortado por considerações sobre o passado. Tudo isto antes de subir ao cerro. Antes de chegar a outra vida.

Eu só me lembro das duas vezes que lá estive como se lá vivesse uma vida inteira.

São estas coisas que nos levam a viajar.

«Vocês já viram muito mundo e conheceram muita gente.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes que acima de tudo viajamos para conhecer gente diferente, modos diferentes de viver. Assim aprendemos.»

Respondo.

«Eu sei e gosto dessa vossa maneira de viver.»

Isaurinda de novo e vai, uma alegria no andar.

 

Jorge C Ferreira Maio/2023(396)

 

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O Nosso Chile”

  1. Manuel Costa Silva

    Uma Crónica maravilhosa, plena de episódios existenciais e da vida ! Muito bom. Adorei,amigo. Abraço apertado.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Manuel Costa Silva. É muito bom saber que me lê e gratificante saber que lhe agrada. Grato pelo seu comentário. Abraço grande

  2. Regina Conde

    Dois apaixonados que adoram viajar. Cada um tem uma sensibilidade que se complementa quando o fim do dia acontece. Adorei o gato que envolveu a Isabel. A ti nada disse. Eles são felinos únicos. Conta-nos mais vivências. São maravilhosas. Abraço Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Sim, cada um pode tem o seu olhar, é a sensibilidade se cada um a falar. Os pequenos acontecimentos podem ficar para sempre marcados para a vida. A minha gratidão. Abraço grande.

  3. Lénea Bispo

    Viajar é um banho de conhecimento ou um batismo pela água. Purificamos a alma e há até quem traga águas numa garrafa como no Mar Morto Há fontes também com águas santificadas. O banho de conhecimento é muito mais abrangente e desta vez repito as palavras da Isaurinda.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea. Sim viajar é uma libertação. Saber dos outros, aprender sobre nós. Estradas de coisas sempre novas. Viajar para sobreviver. Abraço grande.

  4. José Luís Outono

    Visão ímpar de vários olhares, no longe e perto do nosso dizer presente nos momentos de aferição de histórias e sentires nascentes no acto de ensaiarmos a cena da reflexão .
    Apelativo e desafiador ímpar, o teu contar de geografias diferentes e sempre páginas de surpresa nos finais de Isaurinda.
    Confesso-te que me “agarraste”, e quero continuar a “ouvir-te” nos teus traços maravilhosos.
    Abraço FORÇA!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís,poeta. O mesmo lugar é sempre diferente. Depende como e quando o olhamos. Há alegrias que nos encantam no dia a dia. Uma viagem pode ser um tremor de terra e mudar a nossa vida. Podemos ser lava e fogo, o instante inicial. Um abraço enorme.

  5. Eulália Coutinho Pereira

    Crónica magnífica. Por momentos senti-me longe. Santiago do Chile.
    Povo lutador. Vidas sofridas.
    Num banco de madeira, junto à fonte, o olhar do Poeta vê as vidas que passam e deixam memórias inesquecíveis.
    Sebastiana, casa de Pablo Neruda. A sensação de pertencer ali, reconhecer ruas e lugares. A vida tem estes mistérios. Sente-se, não se explica.
    Obrigada Poeta.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. O Chile é um sonho. um acidente geográfico. Um casa de Poetas. Ver é o melhor que tem viajar. Há sempre algo de especial que nos abraça os olhos. Os segredos e os mistérios. Grato. Um grande abraço.

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    Ler o que o que tão bem escreveu: soube-me bem, é como se esteja a ouvi-lo. Tanto mundo percorrido. Fica para a próxima, falar dessa exposição de arte Mapuche.
    Como esse homem necessitava de se refrescar e saciar a sede.Que sagrado baptismo!
    Tão triste, o que vai pelo mundo. Sempre a aprender consigo, felizmente que a “terra não é nossa.”
    A Isabelinha deve ter razão … o gato conheceu-a. Por mais que saibamos, não sabemos tudo. Acreditar sempre.
    Desta forma, ainda posso viajar convosco.
    Adorei, querido escritor. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Será o melhor que levarei desta vista. O que vi, os que encontrei. As novas maneiras de viver, de abraçar, de beijar. Os vários modos como a Lua e o Sol se nos apresentam. O Sol que nunca s põe. O sol que nunca aparece. Acreditar em coisas pouco críveis e viver momentos únicos.
      Viajar consigo é sempre possível e uma alegria.
      A minha gratidão. Abraço enorme.

  7. To

    Texto ímpar de beleza e ternura que nos transporta a outros tempos e dimensões. Quanto à exposição Mapuche aguardo desenvolvimentos.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado To. Não sei quem é, mas é uma alegria ter aqui o seu comentário. Quando viajamos somos sempre transportados para outras dimensões. Há coisas que são para ver e olhar com os olhos bem abertos. A minha gratidão. Abraço.

  8. Fernanda Luís

    Amigo Jorge
    Emocionante, puro encantamento. Maravilhosa viagem.
    O Nosso Chile!
    Sinto que também herdei dessas raizes, dessa cultura. As afinidades são imensas.
    A minha filha é chilena da parte do pai. Temos uma ligação muito forte familiar e cultural a esse País.
    Partilho da mesma sensação de pertença a vários lugares do mundo, a várias culturas.
    Grande abraço.
    Até à próxima viagem

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Sim, o nosso Chile. Aquele encanto que nos fascina. Nós pertencemos ao mundo. Devemos saber preservar este canto de vida. Devemos chegar a um lugar do mundo e saber aprender com os que lá vivem. A minha gratidão por partilhar aqui o seu exemplo. Abraço grande.

  9. Filomena Geraldes

    És um contador e encantador de viagens.
    Continuas a ser o nosso guia. Os teus são os nossos passos.
    Por ora o nosso olhar reteve-se no homem andrajoso que se baptizou e matou a sede com a água da fonte. A água que tudo limpa. Algo de místico a distingue.É pureza. É vida!
    Depois, em Valparaíso, a tua Isabel, teve uma impressão genuína e única de déjà vu.
    Acontece. As explicações divergem.
    Eu creio que ela já teria visitado aquele local.
    Num outro tempo ?Numa outra dimensão ? Numa outra existência? Possivelmente.
    Na nossa mente acumulam-se
    recordações por demais antigas que se perdem na história deste agora. Somos levados ao longínquo passado e a sensação é tão real,
    tão forte e intensa que nos apercebemos que a vida é isso mesmo. Uma ida e um retorno que se repetem ao longo centenas e centenas de anos.
    A natureza não se deteriora e reconstrói a cada estação?
    Eu creio que Isabel terá passado
    por uma experiência assombrosa. Inolvidável.
    O gato? Certamente a reconheceu.
    Tornou a crónica invulgarmente apelativa e misteriosa.
    Obrigada, Jorge. Na próxima viagem continuaremos a pedir que sejas o nosso guia inspirador. Depois do Chile, qual será o próximo itenerário?
    Aguardamos notícias tuas.
    Abraço amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Não sei que te dizer depois de ler os teus belos comentários/poemas. Fico feliz que me acompanhes nestas viagens. É uma honra para mim. Agora estou neste ensejo de viajar e tentar fazer viajar as pessoas. Espero contar outras viagens e fazer delas aventuras. A minha gratidão. Abraço Grande.

  10. Claudina silva

    Vivências que não sabemos explicar! Tão lindo o teu texto, de certo foi uma experiência inesquecível!Obrigada pela tua partilha!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina. Eu é que te agradeço por estares sempre presente. Exprimes o teu sentir de uma forma única. A minha gratidão. Abraço grande,

  11. maria fernanda morais aires gonçalves

    Eu acredito que sim, mas isso faz com que creias na reencarnação. Não Vale dizer que não há mais nada para além desta vida. O mistério existe. somos muitas vezes confrontados. quantas vezes tens um pressentimento que conheces o local que estás a visitar pela primeira vez e este te é familiar? Por que será que tens preferência em viajar para o local mais pobre do mundo,de paisagem lunar, sem atractivos, quando dás por ti estás a voar para esse local, nem sabes bem, o íman é bem mais forte do que a racionalidade ao ponto de pensar” gostaria de acabar ali os meus dias.”…Há muito que não sabemos explicar, não sabemos dizer qual a razão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. A Isabel é que acha que já foi dali. Muito do que contas tens razão. O sítio onde chegamos a primeira vez e parece já conhecemos. A vontade de viajar sempre para o mesmo lugar. Eu, posso-te dizer que nada sei sobre estes mistérios. Sobre estes magnetismos. Não tento explicar nada. Muito grata pela tua presença neste nosso espaço. Espero que se torne vício. Abraço enorme.

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