Crónica de Jorge C Ferreira | O mundo do avesso

Jorge C Ferreira

 

O mundo do avesso

por Jorge C Ferreira

 

Cheias no Oriente, uma chuva inclemente, devastadora. Na Coreia do Sul procuram-se desaparecidos. Túneis que se enchem de água. Morrer entre paredes e metal. Afundar-se na lama, desaparecer. Os mergulhadores tentam o impossível. Só buscam mortos. Que triste deve ser. Noutros sítios há pontes, viadutos, estradas que se quebram. A inesperada queda no vazio, um voo não marcado para o fim de tudo. Mais desaparecidos.

Um vulcão zanga-se na Islândia. La Palma arde de desgosto depois de o seu vulcão se ter calado.

A ocidente as temperaturas assemelham-se às dos inóspitos desertos. Desmaiam os mais fracos. A falta de ar. A busca de oásis inexistentes. A água que vai escasseando. As florestas que se irritam e desatam a arder. Aviões, helicópteros, bombeiros. As casas em risco. Gente que não quer arder. Gente suada, gente cansada, gente perdida. As casas de uma vida que os bombeiros tentam salvar.

Há quem busque o mar. Entram nele como quem rasga a vida. Vão ficando salgados de uma frescura pouca, mas,apesar de tudo, saborosa. Também a temperatura da água está mais elevada. Vale a leveza que a água salgada lhes dá. Saber flutuar, mergulhar, nadar debaixo de água e não ter guelras.

Apesar de todos os avisos há quem se esparrame ao sol em busca do tal bronzeado. Uma coisa que vai e vem. As praias já não têm toldos e barracas. Agora têm chapéus de palha e espreguiçadeiras. Tudo a armar às Caraíbas. A tal mania das imitações. Eu sei que o areal encurtou, o avanço do mar é inexorável. Quem acha que somos do mar espera impaciente a sua vinda. Outros temem acordar afogados.

Espécies pouco usuais vão aparecendo em estranhos sítios. As orcas assassinas atacam os barcos. Ainda não se habituaram a estes novos lugares. Tubarões passeiam-se por sítios que nunca tinham visitado. Os banheiros içam as bandeiras vermelhas, as pessoas abeiram-se o mais que podem do sítio onde o animal vai errando.

Do outro lado do Atlântico os extremos tocam-se. Em New York cheias, no vale da morte as temperaturas chegam a valores impróprios para o ser humano. Lembram-se de o fumo dos incêndios do Canadá ter chegado até nós? O ar mais abafado, a respiração mais difícil. O número de mortos que aumenta.

Mas o que leva a tudo isto?

O consumismo desusado. A voragem do lucro dos falsos empresários. As coisas feitas por mão de obra escrava. O lixo que é enviado para os países mais pobres. A sociedade do descartável. Do mais vale comprar novo que arranjar. Do fato virado passámos para o fato novo que a nova moda obriga a comprar. E assim fomos virando a vida do avesso. A falácia da reutilização e da reciclagem. O petróleo e agora o lítio. Tanto império de pronto a vestir e de distribuição e tanta gente a morrer de fome no mundo. Uma vergonha.

A roupa que a minha Mãe fazia, as malhas que a Isabel ainda faz. Encho a memória com as senhoras que num rés-chão baixo, ou numa cave alta apanhavam as malhas das meias das clientes. Lembro-me de um ovo para passajar as meias dos homens. Do sapateiro do vão de escada. Das meias solas. Onde vivem as cerzideiras? As camiseiras? Os alfaiates são agora um luxo. Antes um fato era para a vida. Havia o fato de ir à missa e o fato de trabalho. Alguns só tinham o último.

Quando vamos voltar a comer a fruta da época?

Se o meu bisavô fosse vivo estaria a dizer: «o fim do mundo está a chegar!»

«Isto está tudo do avesso. Não sei o que te diga. O teu bisavô se calhar teria razão.»

Fala de Isaurinda.

«Acho que somos capazes de dar a volta a isto. Coragem.»

Respondo.

«Está bem, eu vejo é cada vez tudo pior.»

De novo Isaurinda e vai, um ar de desilusão.

Jorge C Ferreira Julho/2023(405)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O mundo do avesso”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado Fernanda. Tudo o que diz de uma forma sucinta é um texto brilhante. Uma verdade que nos fere. Uma dor que cansa. É tão bom estar presente neste nosso espaço. Muito grato por tudo. Hasta Siempre.

  2. José Luís Outono

    Nunca esperei gritar em sons bem desiludidos – Triste mundo, onde vivemos!
    Perfeita a tua análise de desencontros humanos e falhas climatéricas … para não falar nas guerras sem nexo e “vedetismos” explosivos.
    Permite-me este desabafo estimado amigo … quando sonhava viver calmo e sorridente já neste período de quase três séculos, sorria e gritava … vamos em frente!
    Hoje, pergunto-me … porque razão a estupidez ganhou o festival da demagogia e apesar dos vidros da nossa visão estarem muito embaciados, gritam-se vitórias sem nexo, num mar poluído e destruidor.
    Permite-me dizer-te, um OBRIGADO pelas memórias aqui relatadas, e que os Sóis genuínos e puros reeditem a PAZ danificada e negativa.
    Um orgulho ler-te, e estar contigo nas verdades que tão bem teces em traços puros, criativos e apelativos.
    Um grande abraço!!!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís, Poeta. Quem diria, não é? O tanto que sonhámos! Agora a guerra na Europa de novo. Os desastres climatéricos. As desgraças ainda por anunciar. Temos de ter coragem para enfrentar isto. Eu sei que há coisas que já nos cansam. Apesar de tudo não desistir. Grato pelo teu comentário. Abraço grande.

  3. regina Conde

    O mundo do avesso é demasiado feio, cruel. Entre o dia que publicaste a crónica e hoje tudo piorou. Confesso que por vezes não sinto esperança de ver o mundo a cores que tanta falta me fazem. Os tempos evoluem. Não tem que ser assim. Sabes, que adoro ler-te, a tua sensibilidade é preciosa, a coragem de escrever esta crónica é imensa. Para conseguir fazer este comentário estou a ouvir uma valsa. Meu Amigo deixo-te um abraço de abraçar de verdade. Até para a semana.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. O mundo colorido. As cores todas que nos libertsm. A falta que nos fazem. A sensibilidade é importante. Sensível é o teu comentário. Foi bom ler. Muito grato. Abraço grande

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Li e reli, esta crónica que tão bem nos relata, ao mais ínfimo pormenor o mundo em que vivemos, muito bem analisado. Nada lhe escapou. O perigo que nos cerca, consentido pelo homem.
    Tanta fome, mas tanto se deita fora. O Jorge domina todas as coisas, na perfeição, sempre atento e conhecedor de muito mundo. Nada falta nesta narrativa, tão triste e assustadora. Porque é verdade. Mais não digo, minhas palavras não são suficientes para relevar, um texto como o que escreveu. Gostei muito. Sempre grata, me despeço.
    Abraço meu.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Sabe tão bem ler os seus comentários. Bem escritos e prova da arte de quem sabe ler. Sim, cada leitor é um artista. Todo este intercâmbio de textos é muito reconfortante. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  5. Eulália Coutinho Pereira

    Tudo dito e tão bem dito nesta crónica excelente.
    O mundo do avesso, é assim que também o sinto. O mundo está a ser destruído pela mão do homem. Assistimos em directo e diariamente aos cataclismos que ameaçam a humanidade. Por um lado fogo ,que tudo destrói, por outro cheias que tudo arrastam. Os senhores do mundo, na sua ambição desmedida, ficam surdos aos gritos de alerta .
    Não era este legado que gostaria de deixar às gerações vindouras.
    A vida está do avesso. Tão pouco tempo e tanta mudança.
    Tenho até a sensação que os dias já não têm vinte e quatro horas.
    Obrigada Amigo, por estar sempre desse lado.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Que comentário tão perfeito. Não foi por este estado de coisas que lutámos. O mundo tomou caminhos muito estranhos. As guerras sem fim. O descartável. Temos de continuar atentos. Muito grato pela sua presença. Abraço grande

  6. Lénea Bispo

    Concordo com tudo e ainda que queira acrescentar algo, não irei conseguir , pois foi feito um rastreio tal ao mundo , às suas intempéries , aos desequilíbrios ambientais , de uma maneira tão cortante que não ficou quase pedra sobre pedra. O desmoronamento do mundo , o preço da civilização …
    Mas como eu gostei desta poesia que se fez palavra…
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lénea. Será mesmo civilização? Sabe tão bem ter aqui a tia opinião. Temos de falar uns com os outros. Talvez se faça alguma luz. A minha enorme gratidão. Abraço enorme

  7. Cecília Vicente

    Dizem que no silêncio há todo um barulho, um grito, um emaranhado de soluções, talvez por isso acredito muito que sou demasiado observadora, desde criança vivia no meu mundo, sabia o certo e o errado do que via acontecer, mesmo criança sabia que queria senão o mundo, um lugar que não houvesse desentendimentos nem que os grandes conseguissem fazer com que a natureza se revoltasse, ainda hoje, não vivendo num casulo apoquento-me e revolto-me quando esbarro num imenso muro de indiferença, somos muitos, mas, a inercia é tão mais doente que os que fazem acontecer (…) que lugar este, que mundo este, somos tão pequenos para derrotar gigantes. Que mundo cheio de maldades e intempéries socias e desumanas estamos inseridos. Tão grandes somos , como tão pequenos e egoistas somos perande a calamidade do que está acontecer. Depois de nós, que sobra, senão palavras e pensamentos de desconforto, somos tão poucos, somos feitos de dor e queremos o impensável, a salvação dos que insistem em apagar a história da humanidade, por isso, nada de novo, tudo se repete (…) de muitos dias, hoje frequento o vazio dos meus pensamentos, voltei à infância, ouvir, ver para tentar entender os grandes… Abraço meu querido amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Brilhante o teu comentário. Procurar fazer o bem e fazer bem. Estamos numa encruzilhada de difícil previsibilidade. Cada vez aprecio mais o silêncio. A miha gratidão pela tua importante presença. Abraço grande

  8. Filomena Geraldes

    Esta tua crónica remete-nos para os desequilíbrios ecológicos.
    O homem tem vindo a revelar-se um ser que esgota os recursos naturais do que poderia ser um paraíso na terra.
    Insatisfeito, egóico e voraz, o homem polui, explora, devasta e destrói.
    Extremina espécies.
    Continua a fazer um uso exacerbado de energias poluentes.
    Lamenta-se o mundo.
    Inunda-se, desmorona-se, liquefaz-se
    atinge temperaturas avassaladoras e
    o mar devora a terra.
    Impiedosamente.
    Escasseia o bem maior. A água.
    O lixo não é reciclado. Não se reutiliza.
    A produção é excessiva.
    A desflorestação alastra.
    Ainda há quem cuide. Quem se importe.
    Quem se manifeste e opine.
    Haja quem aja.
    Quem pense nas gerações vindouras!
    No nosso tempo..
    Ah, no nosso tempo, a comida ainda tinha sabor, a água era límpida e o ar ainda era respirável.
    No nosso tempo as estações do ano
    não andavam perdidas no tempo…
    O pouco que fiz foi nas aulas. Os garotos chegavam a perguntar-me se
    estávamos numa aula de Português ou numa de Ciências da Natureza.
    Eu respondia-lhes que estávamos a aprender a ser gente.
    Respeitadora. Coerente. Cívica. Cautelosa com o ambiente que nos rodeava.
    Tentando encontrar estratégias para dar respostas ao absurdo deste “mundo virado do avesso”.
    Escrevi peças escolares onde abordava temas relacionados com
    a preservação do meio ambiente.
    Cuidar. Preservar. Actuar.
    Este ano chegámos a realizar um concurso baseado na leitura de um livro juvenil “Carta aos líderes do mundo“ em que sensibilizámos para a urgência de tomar previdências
    para alterar o estado do planeta azul.
    Os nossos alunos escreveram para altos dignatários do nosso governo
    e obtivemos respostas.
    Será que ainda vamos a tempo?
    Esta questão fica no ar. Como ficam todas as outras que aqui levantaste.
    Espero que muitos leiam a tua crónica, Jorge.
    Como gostaria de ainda poder ACREDITAR!
    Abraço grato.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Disseste tudo e de uma forma assertiva. Escreveste brilhante como sempre. E as guerras! Essa triste marca que nos destroça. Só me resta dizer que escreveste bem. A minha gratidão. Abraço grande

  9. Isabel Soares

    Uma crónica sobre o negrume do planeta e a futilidade de alguns comportamentos do homem que cruzam com aquele. Um texto difícil de lágrimas e com lágrimas o sinto, mas as palavras escassas e que não possuo para o expressar limitam a minha escrita.
    Texto de sensibilidade e atenção de um autor que grita o que o corrói numa mestria discreta e sábia. A sua experiência de resistente ter-lhe-á dado esta permanente e tenaz capacidade de dizer o indizível crendo numa mudança de paradigma?!
    Uma crónica marcada pelo pensar de tristes realidades factuais. O terror a sair da ficção. Aquele sempre visto sobre o humano, na sua particularidade e universalidade.
    São palavras vómito as que lemos e delas retemos uma indisposição visceral própria de quem continua a travar batalhas sempre com as regras éticas que constituem a sua essência.
    Um escrito de um romântico concreto. Desespero e incredulidade , mas também esperança (?!) numa alteração substancial que coloque os homens ao nível da humanidade.
    Um olhar sobre os acontecimentos de um choro gritante.
    Também uma reflexão feita dasdores alheias tornadas próprias. A impossibilidade de existir num espaço de horrores, mas a sua inevitabilidade, com o preço necessário a pagar quando assim se assimila e antecipa um futuro(?) Possível. O homem carrasco de si mesmo.
    Um texto de vanguarda. Que sejamos capazes de inverter o rumo e assumir a humanidade, como se subentende deppalavras escritas sob o verso da racionalidade.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Fabuloso o que escreveu. Um comentário que demonstra toda a sua generosidade, pelo pobre cronista. É uma alegria ter aqui os seus comentários. Não vamos desistir minha Amiga. Vamos contrariar os que se julgam DDT. A minha imensa gratidão. Abraço forte

  10. Claudina Silva

    Parabéns querido Poeta Jorge C Ferreira pela maravilhosa crónica ! Que grito de revolta pela destruição do nosso planeta! Vamos acreditar que ainda vamos a tempo de travar todo este consumismo. Obrigada! Amei.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina. É sempre bom estares aqui presente. Sim, vamos acreditar que vamos mudar isto. Muito grato. Abraço grande

  11. Clara

    Que crónica maravilhosa para o mundo ler e meditar.
    Tudo do avesso…no colapso das leis universais, que não são respeitadas.
    Como vi…cada notícia de miséria e destruição…dum planeta que o homem não sabe preservar.
    Sempre a ganância à frente da paz e da justiça e igualdade e fraternidade.
    Escravos e senhores. Terra e mar. Ricos e pobres. Férias e guerras que não acabam nunca.
    Senti cada uma das dores que partilhou. Sinto-as todos os dias que páro para pensar e vejo o nosso Apocalipse.

    Abraço amigo querido Jorge.
    O grito está dado… que o mundo nos ouça e faça stop em tanta destruição.

    M. Clara

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Clara. Que belo comentário. Não vou acrescentar mais nada. Escreveu tão bem o que nos preocupa. A sua presença é sempre muito importante. A minha gratidão. Abraço grande.

  12. Fernanda Luís

    Amigo Jorge
    Parabéns pela crónica de hoje.
    Excelente forma de descrever os dramas e tragédias dos nossos dias, destes tempos que estamos a viver.
    A mim também me falta o ar.
    A sobrevivência das espécies nunca esteve tão ameaçada.
    Sem qualquer superstição ou crença religiosa, penso que o homem já não vai a tempo de reverter os danos que tem causado ao “Planeta Azul” (para mim cinzento), ou seja, contra si mesmo.
    Não pelas mesmas razões dos nossos bisavós, creio que o mundo está a atingir os seus limites.
    Ganância, imperdoável ganância.
    Abraço, “té já”.

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