O correr do tempo
por Jorge C Ferreira
Esta travessia que se vai tornando longa. Os dias que caminham nas páginas dos calendários. Calendários que não tenho em casa. Os meus relógios parados tremem por não dar horas. No entanto o tempo continua o seu caminho. A terra continua o seu caminho. As nuvens passam e deixam um sonho a voar em nós.
Gosto de ver a dança das nuvens. O seu deambular. Por vezes imagino-me seu companheiro. Quantas viagens inventadas. Quantos mundos por inventar. Uma doçura que embala. Algodão doce da minha antiga feira popular. As minhas lembranças de menino. O meu tempo de inocência. Ficar maravilhado com as luzes e as estrelas. A vontade imensa de querer aprender. Tudo antes da rebeldia que já espreitava, que iria chegar.
Este caminhar que, por vezes, já cansa. As pernas, os calcanhares e algumas dores. A medicação para manter e nunca para curar. As rotinas para a vida que apetecem quebrar. Um navio que passa e uma vontade imensa de navegar. Meu vício de estar sempre de partida. Minha vontade quebrada por estranhos acontecimentos. Minhas terras perdidas que não sei se vou mais encontrar.
Dizem-me as datas e os dias que passam enquanto escrevo ou leio. As letras inebriam-me. Gosto da magia de as juntar. Da maravilha de as ler, depois, encantadas. Há quem consiga ser artífice da escrita. Alquimista de um dicionário transformado. Seguir o caminho das sílabas que juntamos. O espanto da primeira vez que conseguimos ler! A admiração da escrita. O escrever diferente.
Continuo o meu caminho. É um caminho que faço como se andasse o dia todo no antigo eléctrico 24. O amarelo que nos levava do Carmo até à Praça do Chile. O eléctrico que passava no Largo do Leão. Largo onde resiste o edifício da minha escola primária. Uns prédios mais acima, já na Rua Visconde de Santarém, o lugar onde nasci. No Carmo a velhinha Veiga Beirão onde tirei o Curso Comercial. Uma carreira que embelezava os lugares por onde passava. Abrir a janela de guilhotina e apanhar o ar da minha amada cidade. Uma viagem pela vida. Uma viagem a ver passar vidas, atrás de cada vida uma história. Um sossego aconchegado.
Foi na Praça do Chile que aprendi a vir à pendura até ao Largo do Leão, e aprendi a descer em andamento se fosse necessário fugir do condutor. Até aprender a descer como os ardinas. Mais uma conquista. Mais um passo na vida.
Era um tempo em que tudo se sabia. Ainda existia o sentido de vizinhança. As portas sempre abertas naquele prédio de 5 andares com direito e esquerdo. Havia sempre o perigo de alguém dizer em casa os passos em falso que dávamos. Afinal não era mais que a nossa aprendizagem, o nosso espírito de aventura. Crescer com o tempo e aprender a novidade.
O brincar na rua. Os bonecos da bola. A bola de “cautchu” que saía sempre ao filho do dono da mercearia. Jogar à palmadinha na soleira da porta. As caricas, os berlindes e a proibição de jogar à bola na rua. Esse tempo de crescer até poder ir ver os filmes para maiores de doze. Dois filmes, seis escudos. Muito dinheiro e muitos tiros. Os índios e os cowboys. As paixões inesperadas e as melhores partes do filme cortadas pela censura. Esse tempo em que aspirávamos a ser mais velhos e o tempo parecia teimar em não passar.
«Que viagem fizeste! Gostei que me contasses essas coisas.»
Fala de Isaurinda.
«Percorrer os caminhos de um tempo. Um longo passeio de eléctrico pela vida.»
Respondo.
«Isso do desceres em andamento dos eléctricos e fugires ao condutor é que não gostei. Começaste cedo a ser malandro.»
De novo Isaurinda e vai, um sorriso na mão aberta.
Jorge C Ferreira Janeiro/2022(331)
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Companheiro das nuvens. Bonito!!!
Obrigado Isabel. O sonho de fazer caminho com elas. Beijinho.
É já muito tempo a olharmos para o futuro e não vermos formas distintas, apenas manchas.
Como contraponto a essas imagens semi-impressionistas, semi-impressionantes de dias que não sabemos, revisitamos o passado, acarinhando as memórias de dias normais, dias sem história. Que constituíram a nossa história.
Beijinhos.
Obrigado Sofia. Que tempo este. Sabes, somos também essas memórias. Moram em nós. Coragem.
Beijinhos
Que deliciosa Crónica.
Também com Isaurinda, gostei tanto que me contasse essas coisas. As suas “Lembranças de menino.” Já diziam, quanta era a sua vontade de aprender. Saber juntar as sílabas. E ler.
É quase um milagre, ler pela primeira vez.
O seu alfabeto foi especial. Estava encontrado o caminho da escrita e da leitura. Com que nos encanta, querido escritor, senhor de palavras só suas. Palavras de ternura, doces e gentis, que nos fazem olhar o céu e decifrar as nuvens.
Outras de grande reflexão, meditar é preciso e nem sempre nos lembramos disso.
Outras que nos lembram, os perigos do mundo. Que precisamos estar atentos, para defender o próximo.
É maravilhoso viver, sem esquecer o passado, ás vezes ele é a força que ajuda os dias de muitos.
Obrigada, por este delicioso texto, de um a doce ternura.
Um filme, que consigo visualizar ao pormenor. E vejo um menino traquina, a saltar de um eléctrico em andamento. Não, para não pagar o bilhete, mas sim para mostrar que era capaz, de concretizar, uma aventura.
Tudo acaba. Já não vimos “bandos de pardais à solta”. Nem eléctricos, para andar à pendura..
Que história tão bonita, que adorei e que me soube tão bem ler. Também vivi esse tempo.
Grata sempre, querido escritor. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Tão belo o seu comentário. Uma outra vida que não esquecemos. A descoberta e a aventura. Tudo vive em nós. A sua presença aqui é uma bênção. Abraço imenso.
A professora de Língua Portuguesa, pediu para trabalho de casa uma página de diário.
Coisas de miúdas, mas lá tem de ser e eu vou contar como foi o meu dia. À minha maneira.
” Ena pá, hoje foi mesmo porreiro! Aprendi a vir à pendura, no eléctrico. Já consigo descer, em movimento, como os ardinas.
Então, e sentir aquele ventinho a bater na cara? Que sensação de liberdade! Cá está outra coisa que me entusiasma. Sermos livres !
As nuvens a dançar, lá em cima, a convidarem-nos para lhes fazer companhia.Devem ser umas viagens empolgantes… O que eu adorava viajar. Vaguear pelo mundo. Estar sempre de partida. Isso e a escrita. Juntar as letras. Usá-las a meu gosto. Descobrir nelas feitiços e encantamentos. Ser o alquimista de um novo dicionário. Contar diferente. Quem sabe, um dia, mais tarde…
Ah, mas não foi só isto. Ainda deu para ir para a rua jogar à palmadinha, às caricas e ao guelas que nisso sou um barra!
Agora ando a ver se junto uns escudos para ir com os amigos, cá do sítio, ver umas cowboyadas.
Foi assim o meu dia, professora.
Sim, sou eu, aquele que está sentado na fila de trás, a quem a senhora costuma dizer, sorrindo:
– Rapaz, vê lá se estás mais atento. Às vezes até parece que andas com a cabeça na lua.Ou será nas estrelas??? ”
Jorge
Obrigado Mena. Tão lindo o teu comentário. As várias escolas da nossa vida. O aprender, o querer saber. Ser livre. Estares neste espaço com as tuas palavras é tão gratificante. Abraço enorme
Belíssima esta crónica. Os dias lentos acompanham os passos pesados. Teimam em lembrar que os anos passam depressa quando a saúde não ajuda.
Deixei-me levar numa viagem no tempo.
Uma infância vivida numa pequena vila, onde se vivia de porta aberta. Todos se conheciam. Todos os caminhos se faziam a pé. A rua era o parque de diversões. A imaginação não tinha limites.
O recreio da escola enchia-se de batas brancas. Os jogos tradicionais.
Vivências tão diferentes, mas felizes. A idade da
inocência em que o perigo era desconhecido.
Infância feliz a minha, sobretudo com muito amor da família.
Foi bom este regresso ao passado, neste tempo em que tantas nuvens ofuscam o universo.
Obrigada Amigo
Grande abraço
Obrigado Eulália. Tão bela a sua leitura. Um tempo que nos trouxe até aqui. A este outro tempo, a este novo espaço. O mistério da aprendizagem. As aventuras sem tempo. Agora os passos pesados. Uma luz que teima em nos mostrar o caminho. Abraço grande
Uma bela crónica sobre a nostalgia do tempo passado. Inscrita visceralmente num presente que se quer conciliar com o seu berço. Memórias de um tempo social outro e de uma infância que teimava em descobri-lo para melhor nele se integrar,sem deixar de marcar a diferença. A luta interna contra um tempo madrastro,que passa e tece teias de esquecimento. É necessário desvendá-las introspectivamente. Não as abandonar sob pena de uma parte da identidade desaparecer. O tempo histórico e o tempo individual. Os sentimentos em porvir. Uma bela narrativa.
Obrigado Isabel. Todos os tempos vividos nos trazem ensinamentos. Muita história dentro das estórias. Um tempo doce e amargo. Também o tempo de uma certa inocência. Depois juntar as letras até sentir as emoções. A vida. Abraço enorme.
Gostei muito de te acompanhar nesta viagem por memórias de tempos longínquos percorridos na nossa querida e linda cidade.
Como diz a Isaurinda foi um belo “passeio de eléctrico pela vida”.
Obrigado Maria. Minha cúmplice nesta aventura de aqui estar neste espaço. Os elécticos são uma memória que me enche a vida. Eram viagens de ver a vida. Grato por estares aqui. Beijinhos
Olhares de pasados, onde a juventude “reguila” exibia saltos em andamento numa fuga ao pagamento. Saudades, hoje meditações dos tempos da força natural, com medicação para manter , nunca para curar, nos calendários velozes e assustadores.
Palavras cojugadas em frases simples mas sólidas nos “dizeres” do momento, e pontuadas em respirações felizes de escrever diários sólidos de tempos que passam, sem olhar aos ponteiros mediadores dos tempos sazonais.
Intensos traços, que apelam a leituras com anseio.
Obrigado José Luís. Obrigado Poeta. Uma viagem por um tempo que passou por nós. As preocupações que vão mudando. A alegria de aprender que devemos manter sempre. Uma história que atravessámos. Grato pela tua presença. Abraço imenso
Querido Jorge, tanta ternura nas tuas palavras. Palavras de uma vida bem vivida, uma vida cheia e ainda com tanto para viver e para nos contar. Abraço
Obrigado Cristina. A ternura de uma vida de aprender. Nunca sabemos atê quando. Há curvas muito apertadas. Um abraço enorme
Bonita viagem. Agora vais sentado no eléctrico. Imensos passageiros te acompanham, as memórias vividas de menino e quase adolescente. O algodão doce que encantava e coloria. A pressa de ser gente grande. Adoro andar de eléctrico, aguçaste a minha vontade de o fazer. Deste vida à tua vida, enquanto o navio aguarda no cais. Abraço grande meu Amigo.
Obrigado Regina. Tanta história de encantar. Quando acaba a idade da inocência? Vamos viver a vida. Vamos viver-nos. Gosto muito de te ver aqui. Abraço grande
Por vezes quando leio as tuas crónicas visualizo-te concentradíssimo no labirinto das tuas recordações e, até rires para ti próprio com as múltiplas memórias fotográficas que tão bem escreves elevando-me a imaginar toda a infância, adolescência, mesmo até cresceres a fazeres-te homem. Num conjunto dá uma excelente bibliografia do antes e depois com um meio ainda para completar essa vida de tanto e muito por contar ainda.
Por mim, espero muito mais, encantam-me as descrições tão ao pormenor que quase consigo estar a caminhar pelos mesmos lugares (…) Obrigada, meu sempre amigo. Abraço grande!
Obrigado Cecília. Que bom estares de novo por aqui. Esta é a minha maneira de paratilhar convosco uma vida que não é só minha. É nossa. Ê ums cotrifa cada vez mais lenta. Tem vários semblantes. As euforias e as agonias. Um abraço imenso