O acto criativo
por Jorge C Ferreira
Trastes, trapos, papéis rasgados, papéis perdidos e uma vontade imensa de ser inteiro. Uma secretária voltada do avesso, o avesso da saia de uma santa e a pia de água benta vazia. O menino vai a baptizar. O padre, antes de ele entrar na igreja, pergunta em voz alta três vezes:
Renegas a Satanás?
Renegas a Satanás?
Renegas a Satanás?
Só depois a entrada no templo é permitida. Mesmo assim, recanto onde está a pia baptismal. Seguem-se as orações e os rituais. Chora a criança quando a água lhe cai na moleirinha. O padrinho continua de vela acesa na mão e com ar de parvo compenetrado. Limpam a cabeça à criança que não para de chorar.
Segue-se a comezaina. Embebedam-se uns tantos. Outros, nem por isso.
Os livros mal ordenados. O escritório numa desarrumação. Uma escrivaninha e a gaveta de segredo. Resmas de papel. Quem o escreveu já não entende o que está escrito. Um cadeirão para a leitura já velho e cansado. Um candeeiro vintage. No chão um monte de livros por conhecer. Gritam os livros. Chamam por atenção de leitores dedicados. As letras a engalfinharem-se e uma máquina de escrever muito antiga onde alguém tirou um curso de dactilografia.
A um canto, canetas de madeira, aparos e dois tinteiros, um de tinta azul e outro de tinta vermelha. Um mata-borrão. Lacre e um sinete. Uma faca de abrir cartas e papel e envelopes timbrados.
Há uma pessoa numa sombra enevoada a escrever sem parar. Escreve de pé e não pára. Uma quase incontinência. Os pés parecem fazer um bailado. Está virado para uma parede com a pintura deteriorada pelo fumo. Um cigarro arde num cinzeiro de pé alto. As mãos não param. Por vezes olha para o tecto, parece esperar que chovam ideias, e continua. O bailado é incrível. Aqueles pés que não param! Os sapatos bem engraxados. É belo assistir àquele acto criativo.
Quando se escreve, escreve-se com o corpo todo. É um papel, suado e cheio de letras que se juntaram, o resultado de tudo. Depois pode ser livro, lixo, raiva, ira, desolação, desventura, aventura, canção ou, pura e simplesmente, a foto de quem escreveu.
«Escreve-me o corpo todo» – dizia-lhe ela. «Faz de mim um livro para que todos me leiam», «Escreve-me toda com agulhas até ao ponto mais ínfimo de mim», «Faz de mim a tua obra-prima» e por aí continuava sem parar. Uma quase loucura que apetecia. O corpo exposto e pronto para o delírio. Havia um altar sem sacrário e umas vestes rasgadas. A opa de todos os sacrifícios. Uma vontade imensa de ser escrita e ser lida. Uma inquietação que não cansava. Havia também um menino que fora baptizado perante aquela ousadia.
As portas fecharam-se e tudo ficou entre eles. Uma obra em construção de que até agora não tivemos notícia. Ouvem-se barulhos estranhos naquele templo de criação. Vamos esperar pelo resultado. Há quem diga que vai haver milagre!
«Que coisa mais estranha escreveste hoje. Estás a mangar com o pessoal? Só tu…!»
Fala de Isaurinda.
«Apeteceu-me escrever uma coisa diferente. Tudo tem a ver com o acto criativo.»
Respondo.
«Olha, a mim não me convences com essa conversa. Põe-te mas é fino.»
De novo Isaurinda e vai, o dedo na cabeça a apelidar-me de doido.
Jorge C Ferreira Junho/2021(308)
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É sempre bela essa entrega de corpo inteiro.
Perder-se para se achar, a intensidade latente nas linhas da criação.
Tão bom o seu texto Jorge, grande abraço.
Obrigado Susana. Escrever é sempre ums entrega desmedida até ao esgotamento. As linhas de criação são múltiplas e sempre duras. Nada é fácil neste caminho. Abraço grande.
Que belo, este teu “acto criativo”, Jorge. Os teus belos textos são de uma enorme inspiração e um desafio constantes para quem te lê. Escrever assim, deve ser muito libertador, e é preciso voar. O ar está muito pesado para quem não tem asas, meu amigo.
Bem hajas. Um grande abraço meu.
Obrigado Manuela. Tu sabes voar e navegar. Aí vais Atlântico fora nessa maravilhosa ilha. Um abraço imenso.
De uma beleza ímpar!
Inigualável.
Rara.
Ela pedia-lhe que ele a escrevesse. Não parasse. Com uma caneta de aparo pontiagudo. Tinta de sangue. Suado. Profano.
Ele premia o bico no bico.
Do peito. Nas nádegas. No ventre. No joelho. Direito. Na vertente do pescoço. Na margens da língua. Molhada. Ritmada.
Desordenada.
Ele exausto.
Ela num êxtase…
Uma página. Toda ela indecifrável. Estendida.
Impregnada. Sulcada.
Semeada.
O sagrado templo. As preces. Rituais. Silêncios.
Paramentos. A cruz.
Um só acto criativo.
O teu.
Obrigado Mena. É tão belo o que escreveste. És muito generosa. Só me resta dizer-te da minha gratidão. Abraço grande, grande.
Desabafos ocasionais para ter a mente ocupada: parece-me que assim seja; falar para si próprio é saudável e faz despertar o discurso.
Também acontece comigo!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Há dias em que acordamos com a cabeça cheia de palavras. Dar-lhes sentido é um trabalho a fazer. Precusamos yanto de falar connosco. Abraço
Bela crónica! Narrativas paralelas ao sabor da imaginação. Parágrafos cruzados dec sentires viscerais sobre “momentos”. Como sempre a beleza das palavras.
Obrigado Isabel. Um jogo em que nos vamos arriscando. Palavras e ocasiões únicas. Escrever com tudo. Abraço
O acto criativo.
Mais criativo é impossível, inimaginável.
A facilidade de encontrar as palavras certas e delicadas e construir um texto, ao sabor da sua imaginação. É única. Um enorme criativo … sua Arte. Um sem fim de histórias e de palavras.
Que privilégio lê-lo todos os dias, querido escritor.
Sou grata. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza, minha generosa Amiga. Que bom ter aqui os seus comentários. A arte é sua. Estou tão grato, Abraço imenso
Sinto que acompanhei várias vidas do poeta escritor.
A entrega total ao acto criativo.
Memórias que vão renascendo, entre livros e folhas de papel soltas.
Momentos de revolta. Momentos de raiva. Momentos de amor. Momentos de felicidade.
Memórias guardadas na velha secretaria, que a sensibilidade do poeta faz chegar até nós, entre realidade e ficção, de uma forma única.
Sinto- me grata e privilegiada por ser uma das suas leitoras diárias.
Um grande abraço.
Obrigado Eulália. Todos nós,temos várias vidas. Dias diferentes. Inúteis diferenças. Somo uma mrscla de saberes. Vivemos desamparados. Abraço grande
“Quando se escreve, escreve-se com o corpo todo”
O que eu senti nesta crónica, foi a entrega total e absoluta de um Ser que tem o mundo inteiro dentro de Si. Vidas, Sonhos, Ilusões. O Sagrado e o Profano. “Tudo tem a ver com o acto criativo”, diz o autor. “Põe-te mas é fino”, diz a sua Isaurinda. Difícil para o criador…
Abraço, querido mago das palavras
Obrigado Cristina. Por vezes escrevemos até ao esgotamento. Até não nos encontrarmos. Uma volúpia, uma torrente. Escrevemos até palavras esquecidas. Abraço grande
Há que renegar a Satanás, ao Demónio, porque todos nascem com o ” pecado original” que só o Baptismo apagará, diz-se. E de este início escreveste uma estória. E é assim que a tua criatividade não pára e que te lemos, sempre, com prazer. Escrevinhador nasceste, escritor te tornaste. Gostei deste registo. Semana a semana te aguardamos para novas escritas. O ontem, o hoje e o que virá em novos tempos vividos. A tua escrita é sobre a VIDA. Fantasia? Ficção ? E o que é a VIDA sem os condimentos.? Continua a escrever, Amigo. Beijinhos.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Como tu me conheces bem. Uma mescla de vidas e de acontecimentos e as palavras que não se esgotam. Tão grato pela tua presença. Abraço imenso.
Mais um conto fabuloso, de sentires e momentos onde rasgas criatividade imensa.
Que bom sentir o apelo da leitura, no comentário sem fim, na reprimenda em sorriso, no dedilhar de ideias em vivências que encontras e desabafas maravilhosamente.
Abraço grande amigo!
Obrigado José Luís, Poeta. A escrita por vezes comanda as nossas mãos. Coisas insólitas que acontecem. Vidas que se cruzam connosco. Abraço grande
Gostei especialmente desta crónica que deu uma prosa que gostei muito. Uma aventura e tanto, o homem que escrevia, o baptismo, um relato minucioso que levou-me a pensar num heterónimo de Pessoa, o escrivão. Um quase capitulo de suspense, só faltou um assassinato…
Obrigada sempre meu muito amigo. Abraço!
Obrigado Cecília. Tão bom estares aqui, esoaço que é de todos e que tu enriqueces. Pessoa está sempre presente no acto criativo. Abraço forte
Hahahaha …
O batismo a seguir ao milagre e o pecado original.
Cescem histórias dentro de histórias que reclamam do papel, da escrita, da velocidade.
As mirabolices de mentes férteis e o tempo de viver.
Tudo para memória futura. Falarão de ti e do dedo da Isaurinda …
Acrescentarão pontos aos contos … Histórias sem fim.
Abraço a desejar boa semana.
Obrigado Isabel. Que bom estares aqui de novo. Pensa numa cebola. Vai-a descascando, (não chores), continua. Assim se controem histórias a partir de histórias. Abraço enorme
Olha que bonito o que me dizes …
Obrigada
Obrigado Bonita. Beijinhos.
Olá bonita. Beijinhos.