Crónica de Jorge C Ferreira
Murais
Gritam medos a horas tardias. As noites sobressaltadas onde não nos encontramos. As sombras da sombra da noite. Nem um holofote nos toca com o seu foco energizante. A força que se esvai entre penumbras. As estreitas vielas, os becos da saudade. A vontade de saltar um muro onde alguém pintou umas escadas para o céu. Os murais da liberdade. A criatividade à solta. Muitas vezes, feitos enquanto dormíamos. Tanta coisa perdida.
Descer até à praia. Procurar a claridade. Procurar um pouco de sol que nos invente de novo. A imprevisível criação. Um pensar que nos liberta a mente. Fantasmas que fogem da claridade que vamos engolindo. Há um horizonte que nunca iremos atingir. Saber que há coisas para além do nada. Um constante encontro com o que parecia impossível de acontecer. Uma gruta gigante que nos leva até um lugar diferente do que imaginávamos.
Viver o presente com a vontade de sermos nós. Encontrar as pessoas certas. As horas inesquecíveis. Conversar sobre tolices. Ter tempo para falar sobre o que alguns acham que não tem interesse. Sim, há quem ache que a vida é uma conversa de sisudos. Ter tempo para nos rirmos de nós. De rir com os outros. Soltar uma boa gargalhada. Desembrulhar a vontade de rir. Inventar a felicidade. Criar factos inverosímeis e levar todos a acreditar que são possíveis momentos felizes.
A esplanada da juventude. Muita coisa mudou. Muitos amigos e amigas já não estão cá, nunca mais deram notícia. A vista é a mesma. Um olhar que se perde, uma água que se bebe. Estar só com toda aquela imensidão. Uma rodela de limão que não se afoga. Vai sobreviver, mas vai acabar no lixo. As rochas e a erosão do mar. A ilusão de navegar presa em nós. A recordação de outros tempos e da selva subaquática daquelas águas. A subida até casa já é mais custosa, mas ainda se faz. A felicidade de um dia solar.
Todos os caminhos são conhecidos. São os cruzamentos de um caminhar com sentido. Esperar que a estrada não acabe e o caminho se desencante. Um canto da casa. Um canto de parte de uma vivência, de ser. A alegria de estar ali a tentar criar algo. O receio de não ser capaz. O texto a crescer connosco. Palavra a palavra o vamos construindo. O sentido que tudo preenche a vontade de contar. Será conto? Será crónica, será poema? Seja o que for será ilusão. A realidade sabe a outra coisa. Obriga a outros sacrifícios. Esperar que os outros saboreiam e lhes fique um sabor bom na boca. Esperar que o leiam.
A harmonia dos sentimentos que não nos cansam. As palavras de alguém que sabe encantar. Passagens que nos percorrem a memória. Uma loucura que procuramos evitar. O caminho a estreitar. Uma trapeira de onde salta um gato. Um largo onde os bombeiros desfilam. As sirenes das ambulâncias. Um café que sabe a mundo. Assim nos vamos desencontrando. A bebida negra que nos desperta os sentidos. Uma mulher negra que nos abraça e nos embala. Mãe negra.
«Gostei dessa da Mãe negra. O resto pareceu-me demasiado complicado.»
Fala de Isaurinda.
«Obrigado. Não escrevi nada de mais. Apenas vidas e sabores.»
Respondo.
«Tu tens sempre resposta para tudo! És esperto, mas não me enganas.»
De novo Isaurinda e vai, a dizer adeus.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2024(425)
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Excelente. Crónica com sabor a poesia.
Memórias que permanecem. Saudade de ter sonhos. Murais de liberdade.
ImpossiiA criatividade à solta no silêncio da noite. A conversa entre gargalhadas. Aventuras sonhadas. Sonhos certezas. O amanhecer da liberdade. Euforia. A irreverência da juventude, sem sombras nem dúvidas. Não há impossíveis.
Memórias cada vez mais vivas. A mesma esplanada. Tantos que partiram. Sonhos desfeitos.
Caminhar lento. Gargalhadas que se desfazem em sorrisos cautelosos. Certezas em dúvidas. Caminho incerto, desconhecido.
Fica o abraço. Mãe Negra.
Obrigada Amigo pela sensibilidade da sua escrita, pelo avivar de memórias, pela reflexão de vida.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Belíssimo o seu comentário. Uma escrita que nos embriaga. Fiquei muito feliz. A minha gratidão. Abraço
.
Fui ver às estatísticas a esperança de vida para gente da minha idade e do meu género. Coisa que nunca tinha feito. é que me querem fazer mais um implante para ficar com uma boca nova.Chegou altura de fazer contas. Onde é que eu queria ir outra vez? quantas vezes? Já fui ver o preço de Alcudia. Será que posso ir só? e se escorrego no duche? e se tropeço na escada? Já ninguém quer viajar de avião só para longas viagens. Andar a correr calçadas de um lado para o outro não tenho pernas. Só me apetece banhos quentes e climas tropicais mas aqui bem perto. O que eu queria era ainda fazer uma fogueira ànoite na praia, lembras-te e cantar aquelas velhas canções até adormecer e levar um saco cama. Mas já me doem as costas. E tu? não vais mais viajar de paquete? Não falas disso. Nunca fiz nenhuma, achas que era perigoso para mim?
Então diz-me o que me aconselhas para este verão? umas férias divertidas e adequadas ào meu perfil?
Fico à espero.
Beijo.
Obrigado Fernanda. Sempre a tua bela escrita. Desde 2019(a malvada pandemia), toda a vida mudou. Pedes conselhos. Andar de barco, só te vai fazer bem. Experimenta um Lisboa a Lisboa, evitas os aviões e os aeroportos. Grato. Abraço grande.
Já o li e saboreei, um doce sabor ficou na minha boca. Que excelência de caminhada, pela vida.
Uma análise profunda, no seu jeito único de dizer.
Eu acho que a sua escrita, ruma sempre à poesia!
O que li é de uma delicadeza impressionante. A verdade pura, na presença da sua memória.
“ Lembrar os murais da liberdade feitos enquanto dormíamos.” Foi bom mas quase tudo a perder-se. Quero continuar a acreditar.
Que a sua alegria de escrever, se mantenha em si meu amigo, para nosso consolo. Vou guardar esta Crónica, na minha caixinha de memórias. É bom recordar. Grata meu poeta. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Que maravilha ler o seu comentário. Minha Amiga tão delicadamente generosa. É muito bom ler o que aqui escreve. A minha gratidão. Abraço
Um mundo de estórias, uma vida de histórias longas quanto o tempo de vida que contam anos de passado como agora moram na memória das horas que passam lentamente ou vertiginosamente, há dias e tempos que passam a instantes na memória que se escreve enquanto a lucidez é viver todos os dias a todas as horas que é estar entre a dualidade do passado e o futuro que é hoje escrito com mil noites e mil claridades. Abraço meu amigo!
Obrigado Cecília. Muito bom, sucinto e assertivo o teu comentário. É deveras gratificante receber e ler estes teus textos. Muita gratidão. Abraço
desembrulhar a vontade de rir, Jorge?
sim, desatá-la.
tirar-lhe todos os nós
desafogá-la dos medos e das penumbras.
experimentar os seus sabores e vidas.
sem conta nem medida.
permitir que atravesse todas as pontes
que não se iniba nos sinais de “proibido”
que se deixe enlaçar de pernas e braços
propor-lhe um pacto
uma aliança
um tratado.
foi esta vontade de rir que me seduziu.
tu andas numa inquietude, nas alças
dos moinhos de vento, nas correntes dos mares bravios, em despedidas e saudades que te movimentam.
és como uma cascata ou um rio que desagua no salgado mar.
como um bando de aves que rasgam o azul.
um pianista sem pauta.
o artista que usa as unhas, os pós de argila e os filamentos de ouro para
urdir mensagens em cavernas
és o solista de uma opereta.
o personagem principal de um longuíssimo enredo dividido em vários intervalos.
és o alpinista que atinge o pico da montanha. o conquistador do quase
inalcançável.
a chuva que se desprende e invade
todos os passeios, ruelas e campos verdejantes
todos os celeiros .
e és o sol maior que se agita. fermente
a cassiopeia. luzidia.
tudo para dizer que nada te trava.
nessa libertação que é a escrita.
ainda bem que assim és.
vamos desembrulhar a vontade de rir, Jorge?
Obrigado Mena. Sempre um Poema que encanta em cada encantamento teu. Já não sei que te dizer. Acrescentar é estragar. A minha gratidão. Abraço
Amei a tua linda crónica Poeta Jorge C Ferreira!
As tuas palavras que nos sabem encantar! Obrigada!
Obrigado Claudina. E eu amei o teu comentário. Tanto que gosto da tua presença. Muito grato. Abraço
O tempo brinca connosco parecendo um jogo de cabra-cega. Nunca o descobrimos, faltamos a encontros porque o tempo não o permitiu. Não dispomos de tempo para ler, nem para descansar e de repente vemos que ele foi todo ocupado pelo trabalho. E quando já não trabalhamos descobrimos que ele não foi amigo. Não nos deixou estreitar os laços de que precisávamos
Mas também há alguns laços criados na juventude e que com o tempo se perdem.
Conseguiremos alguma vez encontrar esse tempo e ter uma conversa séria com ele?
Obrigado Lénea. Que bom o teu discorrer sobre o tempo. O tempo é tramado, um tirano. Qie bom estares aqui. A minha gratidão. Abraço
Rendida à beleza e entrelaçado das palavras.
Conto? Crónica? A mim, deixou-me o sabor a POESIA.
À medida que ia lendo, imaginei uma toalha ou uma colcha a serem cosidas e bordadas com linhas muito finas de todas as cores do arco-íris. Não “à beira-mar estendidas”, antes num mural de Abril, à vista de todos que passam. Há quem lá volte para apreciar a obra com mais detalhes.
Aquele abraço, Jorge!
Obrigado Fernanda. Que interessante o seu comentário. A sua generosidade é grande. A alegria que senti em ler o seu comentário também. A minha gratidão. Abraço