Crónica de Jorge C Ferreira | Linhas e linhas
Aventuras inacabadas. Linhas desviadas. Um caminho inesperado. Ler as linhas cruzadas nas palmas das mãos. Adivinhações, feitiços e muita gente que não entra na roda. Ouvia falar de fogueiras nocturnas e rezas especiais que nunca experimentei. Voar, até agora, só de avião, avioneta, helicóptero.
Não sei quem já deixou que lhe lessem as palmas das mãos. Que lhe dissessem onde o traço das linhas o levavam. Lembro-me de ser miúdo e de uma cigana, vestida de negro ter-me querido fazer tal exercício. Não me lembro como tudo acabou.
Quando me falam em linhas, lembro-me sempre de comboios. Das linhas férreas destroçadas, neste país alcatroado de autoestradas paralelas. Eu sei quanto tempo se levava para chegar a certos lugares. Esse interior que continua a ficar cada vez mais deserto.
Lembro-me de quem levava farnel para as viagens. Quer fossem de comboio ou de automóvel. Comida em tachos embrulhados com jornais e metidos em cestos de verga. Os garrafões de cinco litros de tinto. Os copos de metal que saiam de uma caixa e se iam desenrolando em aros que se encaixavam até ao fim. Povo pobre. Povo dos pastéis de bacalhau e do arroz de tomate.
Hoje, algumas linhas servem para os turistas verem algumas das nossas maravilhas naturais e beberem do nosso melhor vinho em copos enormes que nunca se enchem. Copos de pé alto. O luxo para bilhetes de luxo. As quintas onde crescem as uvas que são a matéria, de que, depois de uma espécie de alquimia, brota o sagrado líquido.
Hoje, somos o mesmo país, mas a armar ao fino. Os restaurantes com estrelas Michelin, os bares com gins feitos de milhares de coisas. Os antigos mercados cheios de restaurantes. Somos um país submetidos às grandes superfícies que sugam tudo o que podem e nos vão enganando com milhares de falsas promoções.
Os sem-abrigo sabem o horário em que os hipermercados deitam fora o que sobrou e levam o que podem aproveitar para matar a malvada.
Apanho o comboio para casa. Cada vez menos comboios e mais espaçados, logo, cada vez mais cheios. Comboios carregados de estrangeiros. Uma linha onde é imperioso viajar. Muitas vezes, à beira-mar. Quando se abrem as portas algum cheiro a mar vai desanuviando o ambiente. Entretanto, na autoestrada, nas horas de ponta, há bicha. Paga-se portagem para andar num pára-arranca.
Somos um povo pacífico, vamos pagando e calando. Quem não se cala, paga de outra maneira. Entretanto, os nababos vão enchendo os bolsos e passeando impunemente o fruto do seu roubo. Automóveis de luxo com chauffeur, jactos privados e lugar marcado nos restaurantes de luxo.
Eu continuo a gostar de pastéis de bacalhau e arroz de tomate. Só o tinto deixei de beber. Sempre que posso viajo de comboio. Uma forma suave de chegar a um lugar ambicionado.
Quanto à cigana, nunca mais me cruzei com ela. Não me lembro de alguém me ter lido alguma vez o futuro. Coisa que, para mim, cheira aos horóscopos dos jornais e aos signos.
«Hoje descarrilaste. Comboios, Ciganas de ler a sina. Não sei onde foste parar. Que viagem.»
Fala de Isaurinda.
«Não gostaste da viagem? Não gostas de andar de comboio?»
Respondo.
«Gosto. Mas prefiro os pastéis de bacalhau com arroz de tomate.»
De novo Isaurinda, e vai, a soltar gargalhadas.
Jorge C Ferreira Novembro/2023(414)
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Meu querido amigo. Li e reli, talvez por ter voltado ao teu convívio. Fiz a ” viagem ” contigo e gostei. Li o teu pensamento sobre a realidade da VIDA de algumas das gentes que somos. Talvez aqui volte. Beijinhos ternos .
Obrigado Ivone, minha Amiga/Ivone. Tão bom te-te aqui de novva. Uma alegria. A minha imensa estima e gratidão. Abraço forte.
Acordaste as minhas lembranças. Linhas, tantas linhas. Um passado que só existe nas nossas memórias. As linhas da vida que vamos percorrendo e lembrando e vivendo cada momento de forma diferente
Beijinho
Obrigado Eulália. Que feliz fico por as minhas linhas lhe ticarem. Tão belo o seu comentário. A minha gratidão. Abraço grande
Belíssima crónica de memórias.
Li e reli. Viajei no tempo. Tanta viagem de combóio. Estação do Rossio. Linha do Oeste
Viagem de horas e horas para ir á terra. Parar em todas as estações e apeadeiros. Viagem interminável.
Carruagens cheias, conversas cruzadas. Tempo distante.
A nossa geração parece ter passado por muitos séculos.
Os piqueniques á boa maneira portuguesa.
A cigana a ler a palma da mão. Linhas que previam o futuro.
Momentos de riso entre o grupo.
Ninguém sonhava com redes sociais.
Permanece a memória entre linhas cruzadas e paralelas.
Obrigada, Amigo, por esta viagem maravilhosa.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Que bom ter-lhe lembrado tudo o que nos fala nesse seu comentário. Que bem escreveu. A minha gratidão. Abraço grande
Linhas e linhas… há todas essas e outras tantas onde a meu pensamento me levou depois de ler a tua crónica. Das que referes surge-me, inevitavelmente, na memória, as linhas de comboio entre Algés/Oeiras e Oeiras/Algés e as centenas de vezes em que andei no comboio nas viagens que fiz diariamente a caminho do Liceu de Oeiras e depois de regresso a casa. Linhas paralelas que nos levam à ilusão que se tocam naquele ponto de fuga onde, por vezes, quis chegar.
Linhas paralelas. Linhas concorrentes. Linhas coincidentes… Linhas nos rostos de quem tanto viveu debaixo de sol e nem pastéis de bacalhau pôde comer.
O arroz de tomate feito pela minha avó e o gosto especial que deixava em tudo o que fazia. As mãos engelhadas. O cheiro a ternura.
Um abraço e obrigada pelas memórias por onde me perdi depois de te ler.
Obrigado Maria. É uma felicidade saber que te lembrei tudo o que nos dizes, neu teu trrno comentário. A minha imensa gratidão. Abraço forte
Escreves o torto em linhas direitas.
és o guia que nos leva por entre as linhas que se nos deparam.
quantas delas, as da vida?
tortuosas e duvidosas.
enganadoras e traiçoeiras
cruzadas e assimétricas
sem volta?
já me leram as linhas da mão.
as mulheres de longos vestidos negros e pele macilenta. o discurso
é sempre o mesmo. a menina tem muitas invejas…
e eu sigo o meu caminho sem olhar para trás. não vá transformar-me em sal.
até aprecio linhas.
aquelas onde escrevo os recados para quem se dê ao trabalho de me ler.
as das linhas férreas. adoro andar de comboio e ver as paisagens a correr ao meu lado.
as de coser. embora não tenha grande jeito. é mais pelas cores.
prefiro cozer histórias em lume
brando e contá-las aos miúdos
com sorrisos que nos inebriam
enfim, o resto já tu disseste.
o mundo jamais foi justo. há sempre quem encha os bolsos ilicitamente.
quem estenda a mão aos passantes.
linhas mal esboçadas…
por isso, fico-me por umas pataniscas de bacalhau com arroz
de feijão. nisso sou especialista.
és convidado ao repasto?
quanto à tua crónica, só tu para me levares, a esta hora da madrugada, até à linha do horizonte que avisto da minha janela…
querido escrevinhador, como me apraz chamar-te. abraço em linha recta! 🤍
Obrigado Mena. Sempre belíssimos os poemas com que comentas as minhas crónicas. É tão reconfortante recebê-los. A minha enorme gratidão. Abraço grande
Obrigado Mena. Sempre belos os poemas com que comentas as minhas crónicas. É uma alegria recebê-los e lê-los. A minha eterna gratidão. Abraço enorme.
Tanto que o nosso país tem, tanto que não lhe pertence. Somos muito para os outros quando nada temos para muito dos nossos, já dizia alguém : Santos ao pé da porta não fazem milagres. É uma verdade absoluta, quem acreditamos deixa embrulhados por excesso de incógnicas, será verdade, será? E por aí vamos mesmo de comboio que de resto um transporte mais permeável ao bolso de todos, não fosse as horas de ponta tudo seria melhor neste reino à beira mar…
Lembro da minha mãe fazer o dito arroz de tomate onde para arrefecer de imediato embrulhava o tacho em jornais, acompanhava com carapauzinhos fritos. Não era apreciadora, melhor, tinha vergonha quando íamos para a praia a senhora minha mãe dáva-nos o almoço que eu rejeitava pelo receio do olhar dos outros… coisas de pré adolescente que não entendia aquele aparato para de resto estar à sombra esperando a hora de almoço, no final o regresso a casa apenas com o brinde de ter molhado os pés não fosse eu e o meu irmão morrermos afogados por molhar os pés ou de indigestão que nas contas pelos dedos seriam quatro horas para voltar a molhar os pés…Tenho saudades daquele arroz, tinha um sabor especial, tão especial que nunca o consegui reproduzir em paladar nem aroma… Acredito que qualquer das estrelas Michelan não saiba fazer aquele arroz. Linhas da palma da mão, não acredito, somente sobra-me o espanto: Uma vez uma cigana vestida de preto, com a pele queimada de tanto caminhar pela areia da praia insistiu em ler a minha mão, recusei, pela insistência da mulher velha que aparentava ter cerca de muitos e muitos anos estendi-lhe a mão, como a segurou, assim a largou, assustada disse-me que eu era filha da lua, nunca vi alguém tão perturbado como aquela velha alma; ainda vi na praia uma outra vez… nunca mais tentou sequer olhar na direcção onde me encontrava. São assim as partilhas das nossas vivências… Obrigada Jorge. Abraço!
Obrigado Cecília. Maravilhoso o teu comentário. É tão reconforyante a qurm escreve receber pérolas destas. A minha gratidão. Abraço enorme.
A crónica que, já, esperamos. De certa forma, prevemos o enfoque, o seu conteúdo, mais ou menos, velado, ao acompanhar o autor. Nunca a forma. Sempre surpreendente. Atento. às vezes lâmina às vezes doce. Uma lucidez própria. Uma alma de poeta errante com a , ainda(desejo que para sempre) ingenuidade infantil que permite a indagação sã e autêntica. O contínuo espanto face ao já consideramos óbvio (alguns por suspensão do pensamento, cansaço ou impossibilidade mental). Recusar o hábito. A permanente estranheza a permitir um texto onde múltiplas “linhas” se cruzam. Entrelaçam-se. Desviam-se. Fogem num horizonte que alcançamos na imaginação.
O olhar crítico sobre os fenómenos (numa primeira classificação sociais) expresso num texto de associações criativas e percorrer, com a óptima e rica bengala, das memórias e vivências pessoais, a partir do seu “ponto” ético e sócio-político, a proliferação (e metamorfose) de diversas linhas.
O autor, num escrito de desilusão, impele-nos a um pensar sobre o país. O seu passado e o seu presente. Numa “viagem” pelas linhas de uma identidade nacional que foi traçando o seu rumo e trajecto, lê-se, à margem de valores e princípios, para si, universais. O sonho era outro. A luta era outra. A futurologia enganosa não caberia numa realidade que ambiciona justa. Igualitária até. Dizê-lo, afirmar o humano, em si, continua uma missão de vida. A linha do seu percurso.
Obrigado Isabel. Brilhante e sábio o seu comentário. Uma erudição digna de ser apontada. É tão bom ler estes textos. A minha imensa gratidão Abraço enorme.
O antes e o depois!
Mas que felizardos somos em assistir a tudo isto embora se ache que os benefícios da civilização não compensem os prejuízos que ela acarreta.
A pressa de chegar é apenas olhar em frente para se cumprir a meta. Felizardos são aqueles que para chegarem ao mesmo sítio , viviam o percurso . Vivemos o antes e o depois e a comparação deixa- nos saudosos . De quê?
Vamos fazer uma lista?
Eu ainda gosto dos pastéis de bacalhau e do arroz de tomate….
Abraço grande
Obrigado Lénea. Que bonito comentário. Sabe, hoube um dia que deixei de correr para apanhar o combolo, (tinha outro daí a 15 minutos), senti uma liberdade imensa. Vamos viver o tempo que temos. A minha gratidão e estima. Abraço enorme.
É sempre com prazer que o leio. Hoje avivou a minha memória, lembrei tempos tão antigos, mas tão saborosos. O tempo em que viajava de combóio, para ir visitar os meus avós maternos, que viviam em Mangualde. Tantas horas, para lá chegar! Os meus pais faziam sempre questão, de viajar de dia, para nos habituar, (eu e minha irmã) a amar as belas paisagens que a natureza nos oferecia. E como tão bem diz, meu amigo, fomos perdendo esse privilégio, as autoestradas encurtaram distância, mas perdemos a beleza das paisagens. Novos tempos, como tão bem descreve vão acontecendo, nem sempre da melhor forma.
O luxo é demasiado. O requinte é mais importante e não é dispendioso. Usem-no.
Talvez assim, se evite que os mais desvalidos, não tenham de procurar comida, nos caixotes dos supermercados. Obrigada, por levantar sempre a sua voz, a favor dos que tanto precisam.
Nem sabe, querido escritor como sou grata por poder comer, o belo do arroz de tomate com pastéis de bacalhau. Gosto tanto!
Assim como gosto do tanto, do que tão bem diz nesta sua Crónica. Linhas e linhas, sem fim.
Adorei meu escritor. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. É sempre ansioso que espero os seus generodos e belos comentários, minha terna Amiga. É tão reconfortante para mim. A minha imensa gratidão. Abraço enorme
Estimado amigo.
Após leitura, sentei-me num reflectir de tantos passos semelhantes, que por aqui recordaste. Diria, outros tempos de ontem, numa análise de tempos de hoje.
Tocou-me o “episódio” da cigana. Tinha quinze anos, e num passeio amoroso no jardim da Estrela, ouvi o inédito … de suspeitar, que iria ser mobilizado, para a Guerra dita Colonial.
Perguntei … para onde? Respondeu sem respirar – Guiné!
E, de facto assim sucedeu.
Episódios do nosso livro, que vivemos em cada voltar de página do nosso olhar, como descreves maravilhosamente.
Em cada artigo, leio-te … ansiosamente, e fico a questionar, qual será o próximo tema.
De repente lembro-me – A cigana vai esclarecer!
Grande abraço de estima e admiração!
Obrigado José Luis. Meu caro poeta. Essa cigana, nunca mais a viste? Eu exigia uma nova leitura. Ou começava a planear a deserção. Pagaste alguma coisa? Belo comentário. A minha gratidão e estima. Abraço grande.
Olá Jorge!
Li a crónica de hoje com um misto de tristeza e de alegria.
Digamos que soube a arroz de tomate agridoce🙂.
Estes últimos dias têm sido delirantes, de grande alvoroço. Por isso, tento tirar partido de tudo que me possa fazer rir ou sorrir. Ufa!
Linhas!!! Linhas vermelhas também, Linhas assimétricas, sei lá!
Gostei da crónica. Concordo com tudo, tudinho. A nossa geração tem muito de comum, quer tenhamos vivido a primeira infância em ambiente rural ou urbano.
Ps: eu também gosto de pasteis de bacalhau com arroz de tomate. Quantos farnéis!
Abraço
Obrigado Fernanda. Belo comentário. Esses segundos sentidos. Essas linhas vermelhas. Essas linhas que inventamos. Temos de arranjar um grupo dos amantes dos pastéis de bacalhau com arroz de tomate. A minha enorme gratidão. Abraço grande
Crónica de Jorge C Ferreira de 13-11-2023 “Linhas e linhas”
Esta crónica traz-me uma enorme saudade dos passeios aos domingo, por estadas secundárias donde se vIslumbravam belas paisagens, estradas que serpenteavam como linhas por montes e vales… Saudades do almoço piquenique debaixo de um pinheiro e de colher amoras maduras nos silvados… Saudades das idas de comboio ao Porto e dos filetes de polvo do Aleixo, em Campanhã….
Tanta coisa me vem à memória ao ler a sua crónica. Até as leituras na palma das mãos, que eu gostava tanto de fazer, mas que nunca mais fiz depois de ter visto um acontecimento funesto numa mão e de ele ter acontecido alguns dias depois. O que era uma brincadeira para mim, tornou-se sério e tenebroso. Linhas na mão que marcam, que nos definem, que acertam em tanta coisa… Agora até faço um esforço para não olhar!
Bonita crónica que transmite os maus momentos porque estamos a passar! Será que está escrito na linha do tempo que tínhamos de viver estas tormentas? Não sei por onde nos levam estas linhas….Vamos aguardar e ter esperança!
Obrigado Claudina. Somos nós que escrevemos as nossas linhas. Por vezes ficamos incrédulos perante certos acontecimentos. Que bem escrevemos. É tão bom estares aqui. A minha imensa gratidão. Abraço grande
Obrigado Claudina. Somos nós que escrevemos as nossas linhas. Por vezes ficamos incrédulos perante certos acontecimentos. Que bem escrevemos. É tão bom estares aqui. A minha imensa gratidão. Abraço grande
Obrigado Margsrida. O que me foi lembrar, os filetes de polvo com arroz do mesmo no Aleixo. Houve uma altura em qur estive num projecto no Porto e ia à segunda e regressava à sexta. O Aleixo fazia parte dessa chegada a Campanhã. Também não esqueço a Abadia e o Antunes. Compreendo o que disse sobre a leitura das mãos, acho que queria saber mais. Intrigante e saboriso comentário. A minhs gratidão. Abraço enorme