Crónica de Jorge C Ferreira
Inquietação
Essa arma que ergues. Essa canção que cantas. Cantas, cantas e não cansas. A cantiga na ponta da arma. Baioneta. A busca da mudança. A vida a castigar os corpos e a arte de saber ultrapassar o próprio viver. A vidinha. A triste sina. Não, não há destino. Somos nós que o construímos. Somos a força que, muitas vezes, não sabemos que temos.
Os poemas que tantos escreveram. As vozes do desalinho. Uma escrita comprometida. O velho das botas. As gemadas da D. Maria. E uma tia encalhada a rezar o terço. O contraste das vidas por mudar. Porque faltava mudar o País. O País pequeno e triste. Um cinzento que cansava. O bilhete do carro operário. O cotim e a lancheira. O riscado dos marçanos. As crianças que carregavam a vida dos outros. Os falsos mapas. Uma geografia mentirosa. A foto do ditador e um crucifixo. A bufa e os hinos. O chefe de “esquina”. A fanfarra e o desfile da vergonha.
Que bom que continues a cantar, a verter canções. Tudo sem medo. Um esgar ameaçador e corajoso. Os poemas, as músicas, os arranjos. A tua voz e a voz de outros. A música ofício e arte. O azul dos fatos macacos a desfilar de punho erguido. A esperança que teimamos em manter. Não me vão matar a utopia. Estou farto de gente acomodada nos muros por derrubar.
O trabalho. Os sindicatos do regime. Tomar os sindicatos por dentro. Arriscar a pele. Os bufos a escutarem. Os bufos no meio de nós. A falta que uma canção fazia para afastar os medos. Uma canção das tuas. Uma daquelas de arrasar. As verdades todas despidas em versos para cantar. As prisões. A repressão. A vontade de contrariar a crescer em nós. Arriscar mais. Saber os limites e não os respeitar. Afinal só queríamos ser tratados como pessoas inteiras, com direitos e deveres. Só nos davam os deveres. Era muito trabalho mal pago.
O cantor cantava. Estava fora do País. Chegava o seu trabalho nas vozes de outros. Paris a segunda cidade portuguesa. Os “bidonville”. A lama e a saudade. As fábricas e a construção. O dinheiro para a família. Os bancos a caçarem os francos suados. As transferências. A casa na terra. Tanta gente. Tanto sonho. O cantor nunca se calou.
Apareceram cravos nos canos das espingardas. O vendedor de novas ilusões. O homem que aparecia na televisão para conversar sozinho. Esse homem, que alguns acreditaram ser possível trazer uma Primavera ao País, a render-se. Outro tempo ia começar. Outra vida. Outras canções. O nosso cantor regressou. Veio fazer novas canções. Veio intervir em novas lutas.
Nunca o cantor se cansou. Nós nunca nos iremos cansar dele. Continuaremos a cantar as suas canções. Seremos a voz que a canção necessita. Seremos coro e orquestra. Tocaremos bombos e agitaremos plateias. Assim o viveremos.
José Mário Branco, a verticalidade e a insubmissão.
«Bonita homenagem ao cantor. Gostei muito.»
Fala de Isaurinda.
«Vamos continuar a ouvi-lo. Estará sempre connosco.»
Respondo.
«Estará, numa falta que me dói.»
De novo Isaurinda e vai, uma mão inquieta.
Jorge C Ferreira Novembro/2019(227)
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.
Obrigado Maria. Inquietação, inquietação! Temos de assim ser. Abraço
Obrigado Eulália. Sempre. A cantiga é uma arma. Abraço
As vidas que fomos obrigados a viver; o duvidar da própria sombra que mesmo de noite nos acompanhava.
Um abraço, Jorge!
Obrigado, António. E veio aquela madrugada! O que andámos para aqui chegar. Abraço
ADOREI! Obrigada Jorge. Hoje, logo de manhã ouvi “Eu vim de longe, eu vou para longe”! José Mário será eterno! Vou partilhar a sua magnífica Crónica/Homenagem, Um beijinho
Obrigado Manuela, ter sempre a ideia que temos um caminho a fazer. Somos andarilhos. Abraço
Belíssima homenagem a José Mário Branco.
Ficará connosco para sempre.
Obrigada, Jorge!
Obrigado Maria Rosa. Sim, ficará. Vamos continuar a ouvi-lo. Abraço
Excelente e sentida homenagem a um homem inquieto que nunca se calou nem se cansou. Que tudo o que nos deixou nos sirva de exemplo. Que o mundo se encha de gente inquieta porque não é quem se acomoda que faz história ou muda o rumo da história. Sem inquietação não existe Liberdade!
Obrigado Maria. Inquietação, inquietação! Temos de assim ser. Abraço
Belíssima crónica. Belíssima homenagem. Muito obrigada.
Obrigado Cristina. Todas as homenagens são poucas. Abraço
As palavras certas, numa data em que já pretendem calar a ” inquietação ” de tantos que um, corajoso, escreveu em canção. E também são as canções que ajudam as Revoluções, porque irmanam quem as entende e as transforma em práticas de luta justa e fraterna contra os que abafavam a Liberdade..
Gostei muito querido amigo.. Pena a morte ir levando os melhores. Mas ainda há muitos para acompanharmos em cantigas e lutas.
A recordação de ABRIL que não deixas que se perca. Tem razão a Isaurinda. A falta de alguns fazem doer. Mas juntos gritaremos ” não passarão ” e continuaremos a cantar as canções que amamos, dos que amamos.
25 de Abril, SEMPRE. Cantado e Livres daremos as mãos para seguirmos
Obrigado Ivone. Cá estamos, ainda inquietos. Assim iremos continuar para honrar os que vão caindo. Abraço
Homenagem sentida a um homem que sabia do país, lá longe e que nunca desistiu. Um homem que sabia abraçar. De nós não sai nunca. Abraço Jorge.
Obrigado Regina. O que um abraço nos pode dizer, nos pode marcar. Abraço.
Às vezes penso que gostaria de ter estado presente onde todos estiveram. Só ler não me basta,aprendi muito pouco,talvez por estar numa redoma onde a idade começava a tomar consciência,segredos que eu nunca escutei. Talvez eu nem tenha dado conta que o mundo ficava a 300 km de distância. Que bom é continuar a ler-te meu amigo.Aquele abraço!
Obrigado Cecília. Ler é também sentir, ouvir, pensar. Estamos sempre a tempo. Abraço
A melhor homenagem a José Mário Branco.
Tambem concordo que estará sempre connosco.
Obrigada.
Um abraço.