Crónica de Jorge C Ferreira | Ghettos

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“Ghettos”

 

Tanto vazio no espaço da lenda maior. Tanta coisa que faz falta para decidir o destino. Tanto o que acontece e mata a ideia da vida já escrita. O desejo intenso de procurar o que nos alivia as dores. Tanto comprimido vendido que não serve para nada. Pague uma embalagem e receba duas. Mais uma imagem da nossa senhora de lado algum! Mais duas mil velas e um andor.

O caminho da desgraça. O negro caminho. Nem uma luz, nem uma flor, nem uma gota de água. A sede de tudo. A agonia. O fim anunciado. Nem uma nesga de sol. Apenas a noite destapada num mundo sem futuro. As salgadas agonias. As lágrimas escondidas. Um mar que fica muito longe. Uma viagem para o desconhecido.

Os tijolos destapados. Viver perto da morte e sobreviver. Os caminhos tramados. As rasteiras da vida. Uma lanterna e uma negra orgulhosa da sua cultura. A vida sem condições. O trabalhar para nada ter. Os ghettos. O faz de conta que está tudo bem. O açúcar e a canela. Um “bairro” de inventar problemas. A vida depois da morte. O inferno ali tão perto. A desgraça a chegar. A porta aberta. O perigo sempre à espreita. Uma cama para muitos. As frestas do frio. As mãos gretadas. O lume de chão.

Apanhar os primeiros transportes. Ir para a cidade limpa. Para a terra dos senhores. Ir limpar a vida dos outros. Casas, casas. Casas de outra gente. Casas que ficam a brilhar ainda mais. Limpar as empresas onde se fala que alguns escuros negócios acontecem. Tudo fica limpo menos o tal dinheiro, por muito lavado que seja. Trapos sujos. A creolina está fora de moda. A lixívia está proibida. As infecções proliferam. Mais uma bactéria, mais uma morte. Sair e voltar a casa sempre pela noite. Os miúdos na rua. Na terra e nas poças de água suja jogam-se futuros.

A cidade grande está a ficar cercada de histórias tristes e mal viver. A degradação vai-se instalando e vai avançando. Está prestes a chegar perto dos bem instalados. Um caldo perigoso. A polícia dos cassetetes, dos escudos e dos capacetes apresentam o seu poder. Há cães ainda guardados nos quartéis. Tudo isto desnecessário. Tudo errado. É necessário seguir outros caminhos.

Lembro-me das barracas. Da estrada até Algés. Das mulheres, ali ao Jamor, a catarem os piolhos das crianças à porta das “casas” de madeira e folhas de zinco. Lembro-me dos esgotos a céu aberto. Lembro-me do cheiro do rio. Lembro-me da tristeza e da falta de vergonha. Para onde estamos a caminhar de novo? Estas cíclicas desgraças. A crise que come a crise. As crises de rabo na boca.

Tanto destino por traçar. Tanta balela para contar. Tanta casa para construir. Tanta vigarice por destruir. O vazio que cresce na terra do tudo. Os despejos de mais alguns para a miséria. Tantos milhões a correrem para ilhas esquecidas. Tanta falta na mesa dos meninos que escrevem contas de diminuir num caderno quadriculado. O ordenado que não chega. A fome que aperta. Os que não têm qualquer abrigo. A desgraça a descer mais fundo.

Para onde vamos? Quando nos vão impingir nova crise?

«Tu não sabes a dor que me dá ver tudo isso!»

Fala de Isaurinda.

«É uma dor que partilhamos. Uma grande dor.»

Tens razão. Hoje não discuto contigo.»

De novo Isaurinda e vai, a vida na mão.

Jorge C Ferreira Janeiro/2019(194)

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10 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Ghettos”

  1. Madalena Pereira

    Uma grande dor, é verdade, meu amigo! Devíamos poder mudar o rumo das coisas e num passe de mágica termos um Portugal diferente com gente feliz (sem lágrimas)! Obrigada, querido Jorge por este texto magnífico! Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado. Madalena. Temos de dar voz à revolta. Abraço

  2. Regina

    Crónica corajosa “Ghettos”. Tantas diferenças económicas e sociais. A morte mais atenta, corpo e mente desatentos. Crianças que sobrevivem e chegam a adultos. Partilhemos “até amanhã”. Abraço imenso Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. As diferenças. As vidas cansadas. A dor. Abraço

  3. Teles Ivone Teles

    Mesmo que queiramos esquecer, não conseguimos. Se sairmos de casa encontram–se ao virar da esquina. Se lermos os jornais, eles estão por lá. Se ouvimos notícias via rádio ou TV, também são as primeiras que surgem. São os que não podem chegar atrasados. Dormem sem sossego para levantar e partir. É na cidade grande e limpa(?) que vão dar o corpo ao trabalho. Outros vão tentar voltar a trabalhar. Aos 50 anos é-se velho para voltar a ter emprego e novo para a parca reforma de anos de trabalho.
    É uma vida não vivida, mas de morte à espreita. Uns vivem em condomínios fechados e outros em ghettos. É a vida ao contrário. Num dos lados os funerais são de luxo; no outro lado choram-se os mortos e os desaparecidos e os funerais são ” um luxo “. Ninguém os pode pagar e nem se sabe quem, ou o quê, enterrar. Vai-se desaparecendo nos dois lados por razões diferentes.
    Quando virá outra crise, perguntas, mas a resposta está a ser negociada. Nem a Isaurinda se zanga. Ela sabe que tens razão.Todos partilham inquietações. ” É uma dor que partilhamos. Uma grande dor” ( J.C.F.) E assim nos despedimos com um ” até àmanhã “, que se torna a única coisa que partilhamos.
    Beijinhos querido Jorge, meu amigo/ irmão. Até amanhã-

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Que bem falas. Tudo o que nos incomoda e nos faz correr. Abraço

  4. Sofia Barros

    Também me lembro de algumas destas cenas.
    Pena as histórias serem cada vez mais de entristecer…
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. Claro que te lembras. És uma pessoa atenta à vida. Abraço

  5. Célia M Cavaco

    A vida como um slogan ” Viver custa,viver é uma montanha,aproveite a boleia,segure-se pra não cair” Mais do mesmo no rectângulo iluminado,tudo do avesso,o fogo de uns,lágrimas de outros… É a vida num slogan” Viver! agarra-te à sobrevivência,que a morte é logo ali…!
    Abraço,meu amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Viver com a morte no corpo. Um enorme cansaço. Abraço

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