Crónica de Jorge C Ferreira | Feliz 2021

Feliz 2021
por Jorge C Ferreira

 

Quando estou a escrever este texto ainda o calendário não enterrou este ano malvado. Um ano em que carregámos o mundo às costas. Lembrei-me de outros flagelos por os quais os meus Avós passaram. Nunca contaram muito sobre isso. A comunicação era outra. O meu Avô tinha 18 anos e a minha Avó 16, quando tudo começou.

A mim tocou acontecer-me aos 71 anos e à Isabel aos 68. Este risco de ser grupo de risco. Este tempo tão fora do tempo. Quando era pequeno havia o costume enviar, janela fora, na noite de fim de ano, tudo o que eram trastes velhos. Não seria este um ano bom para reeditar tal práctica? Tanto traste, tanto receio, tantos rolos de papel higiénico, tanto desinfectante, tanta máscara!

Vem aí 2021, que virá com ele? Por quanto tempo mais não nos vamos poder abraçar, beijar? Por quanto tempo mais vamos andar mascarados e de gel no bolso? Depois o ano novo chega com o frio e com a chuva. Temos de esperar três meses para ver chegar a Primavera. Talvez aí eu seja vacinado. Talvez sim, talvez não. E depois da vacina? E depois de quase tudo, o que nos resta?

O que nos resta é tentar sobreviver.

Penso que ainda não é neste ano que vai entrar que a crise sanitária será debelada. Depois teremos a crise económica, os vícios instalados, a tentativa de modelar o nosso modo de vida. As mudanças inevitáveis. E nós, seres humanos como sairemos disto? E a sociedade como um todo? Por muito vai passar quem conseguir resistir. Muitas novas coisas, muitas novas vidas. Muita vida ainda vai cair. Mesmo depois da Primavera. Quando o Outono chegar e as folhas começarem a cair.

Estou sempre à espera que aconteça o melhor. Tenho saudades de tanta coisa. De tanto que não fiz. De ver o tempo a passar sem tempo para mim. Podem não acreditar, mas até do martírio dos aeroportos tenho saudades. Fazem-me falta as minhas outras cidades, as minhas outras ruas, os meus queridos amigos de outras paragens. Falo com eles pelos meios audiovisuais, eu sei, mas não é a mesma coisa. Os cheiros, os paladares, o ar, já viram onde esta doença dictatorial nos quer levar. Depois, tanto podemos comer um cozido à portuguesa numa travessa, como numa pílula. Para onde caminhamos?

Deixei de estar com o meu neto três dias por semana. Ele também cresceu sem eu dar por isso. Tudo isto são coisas que não iremos recuperar. Os livros são apresentados em videoconferência e vendidos essencialmente on-line. Será que vamos dar a volta a isto. As Livrarias independentes quem as ajuda? Têm de ser os leitores. Procuremos perto de nós. Tenho saudades de comprar a manteiga a peso. Estou farto de embalagens supersofisticadas. Quero as maçãs com lagarta. A fruta feia e não encerada. Quero o pão feito no forno a lenha. Quero o simples na vida.

Apetece-me correr os mares e saber que nunca chegarei ao horizonte. Quero voltar a ver as pessoas que ainda vivem de maneira diferente da nossa. Quero ir ao outro lado do Mundo. O Mundo longínquo que, de repente, se faz perto. Tenho saudades de tanta coisa.

«Eu tenho fé que as coisas vão ficar melhores.»

Fala de Isaurinda.

«Que bom dizeres isso. Tu costumas saber o que dizes. Vamos ver se acertas.»

«Acho que vou acertar mais uma vez.»

De novo Isaurinda e vai, com a mão persignando-se e rezando ao seu Deus.

Jorge C Ferreira Janeiro/2021(283)

 

Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Feliz 2021”

  1. Cecília Vicente

    Que estranho mundo este, todos a vivermos a vida do avesso; tenho a certeza que jamais os afectos serão os mesmos, a geração dos afectos a mais fragilizada, a mais confinada, a mais tudo que não devia acontecer porque já antes, muito antes tiveram a sua aflição, a sua dose de luta à sobrevivência… Quando um jovem se junta a um aglomerado de milhares de outros porque está depressivo e a sentir que está a passar ao lado da juventude quer dizer que viveu o lado positivo e confortável da vida. Basta ler a história do mundo, nada foi facilitado aos avós, aos pais de uma geração da década de 18 a 45. Ainda hoje persiste os genocídios, as guerras, os que fogem à procura de uma vida melhor e acabam num qualquer lugar amontoados sem esperança… Somos egoístas, característica do ser humano que prefere festas a cuidar dos que lhe deram tudo. Meu amigo, que a nossa paciência seja coroada pela persistência com que aguardamos tempos melhores para os nossos, esses, sim, irão ter um mundo cada vez mais combativo e egoísta. Não sendo pessimista, tento olhar para um horizonte matizado a arco íris… Continuo a sonhar, continuo a olhar para longe… Meu amigo, desejo-te tudo de bom. Aqui deixo-te aquele abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Mais uma vez somos postos à prova. Desta vez resta-nos resistir. Depois da crise sanitária se resistirmos vamos ter de lutar. Um grande abraço

  2. Isabel Torres

    Bela crónica! A beleza das palavras e a crueza da realidade. A vida adiada ainda por muito tempo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Sim, minha Amiga. Temo que ainda vamos ter muito tempo esta vida e o pior ainda não passou. Há muita falta de coragem.

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Uma crónica real, com a qual me identifico . A idade faz de nós pessoas de risco. A luz ao fundo do túnel está mesmo longe.
    Que saudade do abraço, meu amigo.
    Que saudade de ver crescer os netos.
    A roda das preocupações. Os pais preocupam-se com os filhos. Os filhos preocupam-se com os pais. Os encontros virtuais sabem a pouco.
    Vamos ter esperança em melhores dias. Tenho a certeza que fará muitas viagens. O mundo longínquo vai estar perto.
    Obrigada por estar desse lado.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Não ainda não vemos luz nenhuma. Só vemos as coisas a piorarem. Tanta falta dos beijos e dos abraços. Dos netos. De toda a gente. Abraço Grande.

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Sempre palavras de verdade. Uma crónica real. As saudades são tantas. E somos tantos a ter saudades. O tempo a passar. E eu acredito que tudo vai ficar melhor.Acredito em si meu amigo. E na fé de Isaurinda. Obrigada sempre, querido amigo, que consiga ver mais Mundo como tanto deseja. Vamos continuar a resistir. Feliz 2021. Abraço enorme.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luisa. Sim, vamos acreditar. Mas ainfa temos de esperar muito tempo. Tantas saudades de beijar e abraçar os amigos. Abraço enorme

      1. Maria Luiza Caetano Caetano

        É verdade, Jorge meu amigo! Não está fácil. As saudades de abraçar são tantas. Uma neta com quatro anos e eu sem lhe tocar. E assim passou, quase um ano. Quero acreditar. Mas vai ser duro. Gostei das suas palavras. Abraço enorme.

        1. Jorge C Ferreira

          Sim Luiza, minha Amiga. Vamos acreditar. No entanto com os pés no chão. Abraço grande

  5. Mena Geraldes

    Meu amigo.
    Vais correr mundo. Vais navegar por esses mares onde habitam sereias. E outros seres do imaginário.
    Vais visitar ilhas onde crescem montanhas até ao pico, cidades com os arranha-nuvens, aldeias escondidas no meio do nada e quem sabe, florestas de um verde tão verde que só apetece mergulhar nele. Com ou sem lobos.
    Vais tornar a comer maçãs com bicho, alfaces com lagartas e vais poder degustar uma refeição na companhia de quem se ama. Sem medos. Sem filas. Sem dúvidas.
    Vais ter a felicidade de tornar a abraçar o teu neto e contar-lhe as estórias que ele gosta tanto de ouvir.
    Vais voltar a escrever sobre as fantasias, os faz-de-conta, os sentimentos e as emoções que ainda fazem vibrar esse intenso coração.
    Vais continuar a dar-nos momentos deliciosos de leitura de viagens onde não precisamos de embarcações onde tudo pode acontecer nem de gigantescos pássaros de passageiros que se movem no ar. Nem mesmo de locomotivas com muita terra…pouca terra…
    Contigo, o impossível torna-se possível.
    Vais dar-nos a mão, como é teu costume, e levar-nos a passear pelo teu riquíssimo mundo interior!
    E olha que eu não costumo enganar-me. Dizem as minhas amigas que eu tenhos dons divinatórios…
    Por isso, meu querido poeta e amigo, tens um futuro que ainda agora começou. Hoje mesmo!
    Nesta tua crónica.
    Bj de alfazema, meu cronista, contador de estórias e outros amores partilhados… 💗

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Quem sou eu para te desmentir? Depois também quero acreditar que é verdade. Mas o dia a dia incomoda-me muito. Alguma falta de coragem para tomar medidas necessárias. Espero que os teus dons se afirmem reais. Abraço enorme

  6. ivone Teles

    Meu querido, estás como a maioria das pessoas, entre a Esperança e a dúvida.
    Como a Cristina e a Isaurinda eu deixo-te um abraço dos meus, mas virtuais. Contagiaste-me com a Esperança em publicações anteriores, na tua página, e eu estou a acompanhar–te, e à Isabel, e ao teu Neto e aos teus amigos. Tu não mentes: ” Isto vai MELHORAR “.
    Beijinhos para Vós.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Ainda vamos ter de resistir algum, (mais que o que queríamos), o meu Abraço sem tempo.

  7. !

    Uma crónica de saudade.
    Saudade, a palavra do ano!
    Apesar de hoje estar mais sensível às palavras, também acredito que os” dias bons” vão voltar.
    Tenho saudades dos afetos, das pessoas.
    Um abraço, meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado !. Que pena não saber o nome. A Saudade tão nossa. Os afectos e a ternura com que afagamos a vida. Que tempo este! Abraço

      1. Idalina Pereira

        Não percebi que não estava identificado.
        Um abraço, amigo

      2. Jorge C Ferreira

        Obrigado Idalina, minha Amiga agora com nome. Abraço.

  8. Cristina Ferreira

    Uma crónica lúcida que traduz o que sentimos.
    Porém, eu estou com a Isaurinda e convido todos a estarem também. Vamos ter Fé que as coisas vão ficar melhores.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. A esperança. Vai demorar ainda muito. As coisas estão a piorar. Abraços grandes

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