Crónica de Jorge C Ferreira
Estórias da História
Dúvidas, obstáculos, ruas sem saída, saídas sem becos, correrias sem fim e o sem fim das grandes avenidas. Desconhecemos os caminhos proibidos, os pecados sem remissão, as falsas confissões, as falsas absolvições. Uma terra sem santos nem pecadores. Um rio de todas as travessias. Os difíceis modos de chegar à outra margem. As perigosas areias movediças.
Um monte com uma estátua sagrada para quem acredita no ser. Uns rezam, outros tiram fotografias. Há quem suba ao monte e aos pés da estátua, se ajoelhe e chore, outros continuam a tirar fotos, só para imortalizar o momento de estar estado ali, nem uma pinga de fé. E é quando volta as costas à figura e põe os olhos no que está à sua frente que duas lágrimas lhe rolam pela face. É imensa a beleza que se vislumbra. É algo que nos inunda corpo e alma. As pernas tremem. É obrigatório sentar-se e deixar o seu olhar afundar-se até ao vazio, ao branco ao nada onde tudo transparece.
Ela não era ela. Ele pensava que sim. Assim aconteceu um clique difícil de ser imperceptível a toda a gente. Os seus olhos brilhavam de um modo que iluminava o lugar. O bar transformou-se num local de paixão que foi alastrando. A música tornou-se mais romântica e havia quem começasse a abandonar o bar de mão nada. Ela, que não era ela, e muitos não sabiam, era sempre a última a sair.
Quando ela que não era ela saiu, ele estava à sua espera. Quando se olharam de novo o brilho foi ainda mais intenso. Ele agarrou-lhe na mão e beijou-a. Foi então, antes que as coisas fossem mais além, que ela se sentiu na obrigação de lhe dizer que, ela era ele. Os olhos dele apagaram-se, lentamente largou-lhe a mão e partiu.
No dia seguinte, quando ela que não era ela foi abrir a porta ao primeiro toque, foram os olhos dele que viu. De novo tudo se iluminou. Deram um beijo e foram sentar-se no sofá de veludo vermelho. A noite iria terminar de modo diferente.
Assim se foram conhecendo, assim se foram reinventando, assim se foram mostrando à sociedade. Assim se tornaram inseparáveis, amigos, amantes. Assim foram aceites, numa sociedade em mudança. Assim ajudaram a mudar a sociedade. Assim foram pioneiros de novas vidas, sem nunca fazerem alarde do seu relacionamento. Apenas um grupo restrito conhecia a sua intensa ligação.
De estória em estória, nos vamos desconhecendo. São saltos sem sentido e encontros desencontrados. Fragmentos a que assistimos ou que inventámos. Por vezes quase saltos no vazio. Não as podemos guardar só para nós, temos a obrigação de as divulgar. Episódios de vidas. Vidas especiais. Vidas cansadas e descansadas. Episódios e inquietações que podiam ser nossas.
«Tu e as tuas estórias e as tuas invenções. Já não sei o que te diga!»
Fala de Isaurinda.
«Tu e as tuas embirrações com as minhas estórias e invenções. Sabes que gosto destes jogos.»
Respondo.
«Pois, nunca sei quando é verdade ou invenção. Percebes?»
De novo Isaurinda, e vai, um ar zangado.
Jorge C Ferreira Outubro/2024(453)
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