Este enfado
por Jorge C Ferreira
Andam os ponteiros parados do meu relógio muito antigo. Dois castiçais seguram velas cansadas de não arder. A “Soror Mariana” do Gil Teixeira Lopes, tem o mecanismo cerebral em pausa. Um penico de loiça muito antiga faz-me lembrar outro tempo. Um tempo em que, a mim, parecia parado. Tanto era o tempo que tinha para inventar coisas e fazer as chamadas travessuras.
Vêm-me à memória as miúdas bonitas que passavam à minha porta e as vampes, sedutoras criaturas que deviam usar Lux. Deixavam um rasto que nos punha desorientados. Um movimento ondulado. A costura nas meias de vidro. A saia travada. A rua era a nossa rua. Desde o Largo do Leão até à Duque D’Ávila.
A minha Lisboa tão antiga. A quinta em frente à minha casa onde brinquei a todas as coisas. As árvores e uma rua quase sem carros. Havia sempre onde estacionar. As placas eram um terreno que ocupávamos para vários jogos. Sempre que chego a Lisboa há algo que renasce em mim. Já lá não vou desde a Feira do Livro. Tantas saudades.
Sou um ser raro. Não tenho carta, nem carro. Neste estado de coisas não ando em transportes públicos. Sou como um pião com baraço posto que ninguém lança. Estou parado como este tempo. Já não viver em Lisboa traz à memória tudo o que desapareceu. É duro. Lembro-me daquele Agosto de chamas imparáveis. O dia de anos da minha querida Mãe. Memórias que ainda moram em mim.
Deste tempo só falo da ausência. De tudo o que sentimos falta. Dos rostos que tenho dificuldade em reconhecer. Do meu cabelo branco enorme a fazer concorrência ao que vai acontecendo. Aparo a barba em casa. Vou ao café de vez em quando. É só descer a rua. Uma rua estreita que, quando a descemos, sentimos alguma alegria. Um jardim enorme, à esquerda, rodeia uma casa antiga. Um muro que esconde muita beleza. Restos da terra que conheci e adoptei como minha.
Deste tempo falo do ar cansado das pessoas. Das máscaras mal colocadas. Das bichas para quase todas as lojas. Algumas pessoas, apreensivas, expressam medo enquanto rangem os dentes e torcem os dedos. Nem sempre a distância é levada à risca. Os estreitos passeios e a plantação de sinais e postes assim o obriga. Os carros continuam a poluir mais um pouco do ar puro que aqui resta.
Doem-me as pernas de andar pouco. A aplicação no telemóvel diz-me dos poucos passos que dou por dia, dos poucos metros, das poucas calorias queimadas. Isto de estar em casa dá vontade de comer. Estou mais gordo. Ainda me servem as calças, vá lá. Acho que vou passar a sair à noite, com uma gola de malha, um gorro, o casaco de inverno e dar algumas voltas ao quarteirão. Vou levar música e auscultadores, ou talvez não. Prefiro ouvir o silêncio nocturno. Está decidido: ouvir as vozes mudas da noite.
Quantos dias e noites nos faltam para sermos livres? Que coisa é esta que me apanhou com esta idade? Estão-me sempre a dizer que sou de risco. Há máscaras de borla na Junta de Freguesia. Juntaram a minha freguesia com outra. Perdi alguma identidade. Aqui estou solidário com todos.
«Tu e a tua Lisboa. Deixa-te estar aqui sossegado.»
Fala de Isaurinda,
«Sabes que sim. Mas tenho muitas saudades.»
Respondo.
«Temos de aguentar e resistir. Ter paciência.»
De novo Isaurinda e vai, uma certa tristeza na mão fechada.
Jorge C Ferreira Novembro/2020(277)
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Este tempo abruptamente interrompido deixa-nos prostrados de saudades e ausências, o caminho da ternura e dos afectos deixaram de ter número, as portas habitam nas mesmas ruas, somente o amanhecer é-nos permitido deambular meio desengonçados como se estivéssemos a dar os primeiros passos. Mudamos de direcção quando alguém se aproxima, tememos o medo, o tal bicho conseguiu partidarizar o país quando todos deveríamos remar na mesma direcção, é compreensível o desgaste, é medonho pensar na pandemia chamada pobreza, começa a faltar o raciocínio, não nos reconhecemos nos que falam em teorias de conspiração, confesso, tenho mais medo desses do que o próprio vírus, esses, são os mais contagiosos, digo eu que nada sei… Abraço meu amigo, toma todo o cuidado, diz quem o bicho apanhou que mete respeito…
Obrigado, querida Lília. Vamos acreditar. Vamos sonhar com um chá com livros. Para quando? Resistir. Abraço
Querido Jorge, entendo bem este enfado. Habituado a viajar pelo mundo inteiro, vês-te agora confinado a visitar a cidade que tanto amas e que te viu nascer. Mas é uma fase, Jorge, que apesar de todos andarmos cansados, vai passar, e vai chegar o dia que vens visitar a tua cidade, voltar a desbravar mundo e ir acertando os ponteiros do relógio. Até lá, vai nos encantando com as histórias que só tu sabes contar. Abraço.
Obrigado Regina. Que bem me faz o teo optimismo. Tão bom correr mundo. Abraço
Desculpa. Obrigado Cristtina. O comentário é teu. Abraço.
Desculpa, muito obrigado Cristina. O comentário é teu. Abraço enorme
Muito obrigado Cristina. Desculpa. A respoata é toda para ti. Abraço enorme
Mergulhar em todos os tempos e sorver os sabores que a memória nos traz, desde os paladares de infância, com várias cores (meia-dúzia $50); os pirolitos com berlinde no gargalo (nem mais do que água com açúcar e limão e um pouco de gás).
Este confinamento a que somos obrigados a viver, faz-nos reviver eras tão distantes como as nossas idades.
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Este tempo de pensar o tempo. Um pirolito. Reviver. Abraço
Jorge.
Mergulhar no passado. Que emoção! É um mergulho desejado, um chamado longínquo, uma transbordante vontade de ir até ao fundo, onde se alojam as raízes mornas de um tempo sem retorno.
Que ímpeto! Que limpeza d’alma! Que voz essa que nos chama sem que lhe consigamos resistir…
Como te entendo, Amigo meu, como sou tua irmã neste sonho que é vogar em águas brandas, tépidas e aprazíveis…
As infâncias, os colos protetores das mães, as presenças sóbrias das figuras paternais, as brincadeiras, as gargalhadas dobradas e a despreocupação natural nessas tenras idades. Depois, uma espécie de dor. Pois crescer dói. Uma certa crueza ao tornarmo-nos adolescentes. O oscilar entre a rebeldia e o sentido do dever cumprido. O chegarmos à idade adulta e os sonhos a moldarem-nos a mente. Sempre os sonhos. O amor encontrado. As obrigações de família.
E a vida numa corrida vertiginosa.
Contigo mergulhei no passado. Que um dia, foi o meu. Na saudade. No mergulho do qual não me apetece emergir.
Tudo mudou! A cidade. Nós. Os outros. Os locais onde outrora. deambulámos. Fomos felizes.
Restaram as conquistas, os júbilos, os insucessos, os medos, as perdas, os sonhos adiados e a ternura que nunca deixámos de partilhar pois somos feitos dessa amálgama de sentimentos que fomos construíndo e que faz parte do nosso retrato. Cru. Com rugas. Com tempo.
Agora, este enfado. Este triste fado? Este ar pesaroso de quem passa e não nos reconhece. As rotinas, a clausura, o não sair de um espaço confinado, as máscaras que nos protegem e aos outros…
O perguntarmo-nos a razão pela qual temos de passar por este inevitável sossego. “Resistir. Ter paciência”.
Que é feito dos sonhos, Jorge?
Abraço. Longo.
PS. Quando saíres, à noite, leva a lua contigo.
Obrigado Mena. Sempre textos lindos os qu trazes a este espaço. É tão bom ler o que escreves. Nem acrescento mais nada. Abraço
Está maravilhosa crónica levou -me a viajar no tempo.
Tempo distante, numa aldeia, onde brincávamos sem preocupações nem horas. A imaginação fazia das coisas mais simples, as maiores brincadeiras.Depois da primária, a aventura de ir diáriamente para o saudoso Externato D. FuasRoupinho. Ensino rigoroso. Belas recordações.
Mai tarde outra aventura. Iniciar o minha actividade profissional na Rua da Madalena, em Lisboa.
Início anos 70, tempos de agitação.
Tantas memórias. Desculpe -me o devaneio.
Tantos anos passaram. Hoje sou pessoa de risco, pela idade e pela doença. Valorizo o momento presente, mas não posso deixar de me interrogar quando chegará a liberdade. Quando poderemos sentir o afecto, o abraço, sem máscaras nem receios.
Que saudades.
Obrigada meu amigo.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Rua da Madalena, a baixa. Em 1971 estava a trabalhar nessa rua no Banco da Agricultura. Que giro. As greves de meia hora. É bom tê-la aqui. Abraço
Fiel e bonito texto da crueldade de um quotidiano que se arrasta e arrasta… Até quando? “Ausência”. Sim. Muitas ausências, “cansaço” e “bichas” (finalmente que encontro quem continua a dizer bichas e não filas)
Obrigado Isabel. Até quando, minha amiga. Tanto o que nos falta. Sempre bichas. Abraço
Meu querido Amigo, meu Irmão, como me dói o teu, o nosso desalento. Mas que coisa ruim havia de acontecer. Como te entendo. Sou mais velha, mas que saudades dos tempos em que na rua, eu, irmãs e amigos brincávamos, conversávamos, corríamos e éramos felizes. A rua que eu descia para ir para a Escola, depois para o Liceu e todos se conheciam, cara aberta à brisa. Agora cumprimento pessoas que não sei quem são, porque andamos todos de cara tapada. Eu tenho medo. Só penso na neta e filho e as suas outras famílias. Para quando vamos deixar de estar confinados? Quando poderemos abraçar e beijar os amigos? Mais virão novos tempos. Sempre me falaste em ESPERANÇA e procuro seguir o teu sentir. Esta guerra que nos atacou vai passar. Vamos vencer, tem de ser. Sem tiros, sem bazucas, mas com a nossa determinação e cuidados.. Beijinhos à Isaurinda. Quero que TODOS os que amas fiquem bem. Beijinhos ternos da tua Amiga/Irmã. Ivone
Meu querido Amigo, meu Irmão, como me dói o teu, o nosso desalento. Mas que coisa ruim havia de acontecer. Como te entendo. Sou mais velha, mas que saudades dos tempos em que na rua, eu, irmãs e amigos brincávamos, conversávamos, corríamos e éramos felizes. A rua que eu descia para ir para a Escola, depois para o Liceu e todos se conheciam, cara aberta à brisa. Agora cumprimento pessoas que não sei quem são, porque andamos todos de cara tapada. Eu tenho medo. Só penso na neta e filho e as suas outras famílias. Para quando vamos deixar de estar confinados? Quando poderemos abraçar e beijar os amigos? Mais virão novos tempos. Sempre me falaste em ESPERANÇA e procuro seguir o teu sentir. Esta guerra que nos atacou vai passar. Vamos vencer, tem de ser. Sem tiros, sem bazucas, mas com a nossa determinação e cuidados.. Beijinhos à Isaurinda. Quero que TODOS os que amas fiquem bem. Beijinhos ternos da tua Amiga/Irmã.
Obrigado Ivone, minha amiga/irmã. Que tempo este. Vou-te sempre dar esperança. Lembra-te daquela avenida. Grato por tudo minha querida. Abraço
A pergunta que milhões de pessoas fazem. Quando tempo ainda teremos que viver assim? Faltam-me as expressões. Dói-me o corpo por saber de quem passa muito mal. As vacinas vão acontecer, uma esperança que nos faz bem. Os teus passos vão aumentar. A beleza da noite que desejas percorrer. Espera um pouco mais. Deixo-te um abraço de saudades. Até para a semana Jorge.
Obrigado Regina. As vacinas que não chegam. Se chegarem onde vão chegar? A beleza das noites sonhadas. Até já. Abraço
Não sei quantos dias nos faltam para sermos livres mas já há uma luzinha ao fundo do túnel. Não sabemos é que distância ainda temos de percorrer para lá chegar. Mas já ilumina um pouco mais o caminho…
Acho que te vai fazer bem sair à noite. Mas não te esqueças da máscara e vai agasalhado!
Tenho esperança que, antes do próximo verão, nos possamos abraçar todos de novo.
Até lá temos que ser pacientes, criativos e gratos.
De risco ou não, ainda nos vamos conseguindo aguentar…
Um abraço solidário de quem, tal como tu, anseia a liberdade e o regresso à normalidade das nossas vidas. Sim, porque isto que vivemos não é normal e nem sequer consigo admitir que seja “a nova normalidade”!
Beijinho grande e coragem, Amigo!
Obrigado Maria . Tantas saudades de um abraço teu. Gosto que vejas essa luz. Fico contente. Resistir. Abraço
Querido amigo, de facto “quantos dias nos faltam para sermos livres?”.
Não me permito entrar em desespero, gosto de estar e trabalhar em casa e há algum tempo que deixei de viver para coisas que não me fazem falta.
As máscaras fizeram ‘unir’ todos os povos em todos os continentes. Tiram-nos a expressão, dificultam a interacção, procuram fazer de nós seres ‘aparentemente iguais’ de um momento para o outro.
Antigamente punham máscaras para assaltar. Agora poem-se máscaras para esperar, desesperar, como se perdêssemos a nossa identidade.
Valham-nos os queridos que nos ligam a uma ‘outra terra’ chamada AMIZADE.
Beijinho.
LT