Crónica de Jorge C Ferreira
Esta Geração
Somos netos dos que se salvaram da pneumónica e da primeira guerra mundial. As trincheiras e a vida de ratos. A doença ingrata e fatal. A vida difícil. As revoltas da primeira república e Sidónio a quem chamaram de presidente rei. Os colchões de palha. Os divãs.
Somos filhos de outros tantos martírios. Trouxemos nos genes a guerra maior. As atrocidades. A destruição. Os racionamentos. As bichas para a fome. Dizem que somos filhos do baby-boom. Estou a falar da rapaziada da minha idade.
Nascemos num país cinzento. Numa ditadura, com polícia política, bufos e má gente. Um país onde a exploração do trabalho infantil era normal. Num país que começou a fugir para a cidade grande e os bairros de barracas começaram a crescer, a cercar o que já existia. A pobreza a galopar entre os que trabalhavam.
Acompanhámos ao longe os movimentos que foram mudando o Mundo. O movimento Hippie. Lembro-me de ir com o Abel à Rosicler mandar fazer umas calças à boca de sino. Os cabelos compridos e as flores. Assistimos à guerra do Vietname e à luta contra ela que nos empolgava. Depois mandaram a nossa gente para a guerra. Para lá do mar. Para um tempo desconhecido. Muitos dos que foram morreram ou ficaram estropiados. Outros voltaram, vivos, mas de tanto verem morrer e matar nunca mais foram os mesmos. Nunca mais olharam o mar do mesmo modo. Eram lágrimas das mulheres vestidas de negro que viam naquele azul imenso.
Arriscámos para sermos felizes. Para dizer, ver, ouvir e ler o que nos apetecia. Só queríamos a liberdade. Também por isso éramos perseguidos e castigados.
Até que, numa madrugada, apareceram uns chaimites nas ruas de Lisboa, alguém distribui flores aos soldados e a liberdade começou a florir. Foram cravos Senhor! Foram cravos!
Acabou a guerra. Voltaram os que estavam pelas chamadas “terras do além-mar”. Resolvemos o problema como ninguém esperava. Fomos construindo a Democracia até que a conseguimos consolidar.
Agora estamos aqui de novo, presos nas nossas casas. Por vezes apetece-me ir ouvir o rádio antigo, para debaixo da mesa de jantar holandesa. Duas coisas que conservei da minha velha casa. Duas memórias de um tempo que julgava ultrapassado. Ninguém nos sabe dizer quando podemos sair daqui. Ninguém arrisca uma data. Há dias que durmo muito e é sempre uma alegria quando acordo. Por vezes apetecia-me adormecer e que me acordassem, se fosse possível, quando tudo tivesse terminado.
Nunca pensei que isto ia acontecer. Vemo-nos por ecrãs e gastamos a vista com brilhos excessivos. Aqui continuamos confinados, sem data marcada. As coisas vão mudando, os mortos e os infectados aumentando e nós esperando neste tempo que nos rasga a vida.
Este tempo que não contamos, nem contávamos. Tudo começou de uma forma tão leve, tão pueril e depois isto. As falsas notícias que nos chegam pelas redes sociais. A necessidade de filtrar, cada vez mais, o que vemos, lemos e ouvimos. Vivemos entre nós, numa vida só quebrada pelo que vivemos ou viajamos a ler, a ver um filme, a pensar e a sonhar.
Não percamos o sonho. É necessário resistir. Podes chegar à janela e gritar. Um grito só para expulsar tudo o que tens acumulado e te perturba. Há janelas que cantam o sonho da Liberdade.
A Isaurinda está bem. Disse-me que estava com medo e tinha rezado por todos. Apesar de não ser crente, agradeci. Demos beijinhos e abraços virtuais.
Aqui estamos.
Jorge C Ferreira Abril/2020(246)
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.
Obrigado Regina. O que já vivemos. O que se arriscava e o que se perdia. A vida a descer planos muito inclinados. A liberdade. Até já, espero.
Somos a geração que atravessou as maiores mudanças.
“Make love,not war”!
Passámos do cinzento ao vermelho dos cravos.
Cantámos LIBERDADE!
Alguns sonhos pelo caminho mas, sempre com esperança no futuro, avançámos com a alegria da utopia que a revolução nos deixou.
Vivemos tanto mas não somos velhos Há muitos jovens mais velhos que nós.
Seremos idosos “gaiteiros”, talvez.
Faltava-nos esta, Amigo!
Mas ainda nos vamos safar. Porque sonhos é connosco.
Não te lembras que “o sonho comanda a vida”?
Então sabes também que “sempre que um homem sonha o mundo pula e avança”.
Por isso o mundo vai pular por cima disto tudo e vamos avançar para um mundo bem melhor que aquele em que temos vivido nos últimos anos.
E só depois, muito depois, poderemos partir com os sonhos cumpridos.
Até lá ainda temos muita vida pela frente porque a nossa geração não desiste de VIVER!
Obrigado Maria. Somos tudo isso. A soma das lágrimas e dos risos. Belo o que escreveste. Ainda nos vamos voltar a encontrar, espero. Viva a utopia
Tudo tão repetitivo…canso-me,afasto-me para não ter de contar tudo como uma vez…
Não sou de tempo algum,o que sei contaram-me,toda a minha história é recente,é de livros,é recontada por escritores que estiverem e presenciaram guerras e mortes,calamidades de outros tempos contadas pelos avós. E agora,vejo num tempo onde sou personagem,tenho medos e receios,procuro-os combater com o isolamento,de uma solidão quase agradável tornei-me solitária o que me desgasta emocionalmente. Nem imagino como outros no seu tempo sofreram ou tiveram coragem de sobreviver,o facto é que por eles sabemos tudo. Talvez tenha em mãos o papel principal para um dia puder contar como foi. A distância não é grande,estamos tão perto,até um dia destes. Abraço meu amigo!
Obrigado Cecília. Vamos ser diferentes. Vamos acreditar numa mudança. Sozinhos também somos sonho. Até qualquer dia, espero. Abraço
Não tive avós, mas soube, já depois de me tornar órfã de pais, dum primo da minha avó que combateu na I Guerra Mundial. As pesquisas genealógicas permitiram-me descobri-lo, sem que soubesse, sequer, de que tio ou tia dessa avó seria esse filho combatente, de nome Augusto.
O meu pai saiu à rua quando do 25 de Abril. A minha mãe censurou a sua atitude, “onde já se viu, com uma filha bebé!… E se a coisa dá para o torto?”
O meu irmão, com uma considerável diferença de idade de mim, não chegou a ir à guerra.
O 11 de Setembro foi do outro lado do Atlântico, mas sofri de perto outros horrores: a doença a consumir-me os mais queridos, debilitando e aniquilando ao longo de anos. O desemprego. A perda dum filho em vida.
Este é mais um embate. Que nos prende a todos. Não há prazo nem promessas de salvação.
Não sou de orações; falta-me esse tipo de fé.
Por vezes a esperança vai dar uma volta. Depois regressa.
Como a Isaurinda.
Um abraço.
Obrigado Sofia. Tanto que já viveste. Nós vivemos a nossa vida, as vidas que nos contam, as que lemps e até as que inventamos. Grato pelo teu comentário. Abraço.
Querido amigo, pode não parecer, mas acredita que não espreitei, ontem, a tua crónica, porque com tudo o que se passa e o aniversário da minha irmã que fiz questão de que viesse cá almoçar, ontem foi Domingo. Seria hoje, e foi hoje até à bocado a 2ª feira. Não estou a tentar desculpar a minha ausência. Acontece e preocupa-me, ter perdido, de vez em quando, o dia da semana em que estou.. Quando acordo tenho de pensar para acertar.
A tua crónica de ontem foi belíssima . Eu, mais velha do que tu, lembro todos os momentos de que falas e tenho-os bem presentes na lembrança.
Também a pandemia de que falas, perturbou a minha vida. Mais pela minha neta, filho e companheiros. Pelo marido e por mim, depois. Somos ambos, octogenários e, ambos temos doenças cronicas. Meu querido Jorge, tal como dizes, quando acabará esta pandemia ? Não perco o sono e o sonho. Virei cantar à janela, às 15 horas do dia 25 a canção ” GRÂNDOLA “., uma vez que não poderá fazer-se no Ateneu de Coimbra, às 0 horas a ” Queima do Fascismo “, como se fez desde o dia dos cravos vermelhos. Dá um abraço( virtual) à Isaurinda. Beijinhos grandes para ti e obrigada pelas palavras que ” contas ” e nos deixam com as que dessas, adivinhamos.
Obrigado Ivone. Minha Amiga/Irmã. Os teus comentários dizem tudo. Não te esqueças que ainfa temos Avenidas à nossa espera. Também espero cantar a Grândola. Até já. Abraço.
O que dizer das mudanças, os contrastes de décadas criando modas, estilos não muito diferentes do que hão-ser no próximo futuro. Continuará a haver guerras entre surdos; a supremacia do senhor dinheiro sobre o pobre senhor — capital humano.
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Vamos acreditar que alguma coisa vai mudar. A crise vai ser grande, mais uma. Abraço
Excelente crónica.
Sou neta de quem morreu da pneumonica, depois de combater em França. Acompanhei todos os movimentos próprios da nossa geração. Vivi a guerra de Além Mar, como noiva.
Vivi o sonho de Liberdade com toda a força da idade.
Meu amigo, também nunca pensei, viver num isolamento obrigatório, com tanta notícia contraditória. Nada pode superar a dor de quem parte e de quem fica sem um adeus.
É difícil viver estes dias afastado de amigos, filhos, netos.
Até quando?
Cuide-se bem.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Temos de saber resistir. A isso fomos habituados. Espero que nos abraçaremos todos num fia solar. Força, minha amiga. Abraço
As vidas que contas. Somos a sobrevivência de tantas mortes, do país cinzento. O rádio sinónimo de informação verdadeira. Fomos a esperança. A loucura da liberdade. Até das calças te lembras até então não permitidas. Nem todos fomos personagens até chegarmos aqui. Esta “coisa” concebida e que não se vê. Tubos e apitos. Escolher quem poderá continuar. Alguém irá contar a verdade quem sabe um dia. Argumentos para filmes iniciaram. Cansa muito. Como dizes não percamos o sono. A energia é necessária para resistir. O abraço Amigo de sempre. Obrigado Jorge.
Obrigado Regina. O que já vivemos. O que se arriscava e o que se perdia. A vida a descer planos muito inclinados. A liberdade. Até já, espero.