Crónica de Jorge C Ferreira
Esquinas
Espera a vida numa esquina em que se esperam todos os milagres e pecados, todos os encantos e desencantos. Uma esquina onde vive algum mistério, algo por desvendar. As pernas estão cansadas. Teme o aparecimento de varizes precoces. Por vezes descalça um sapato por minutos e descansa o pé. As unhas pintadas de um vermelho que cativa. Os sapatos de salto alto. Um corpo que cresce.
«Belo pé!» – Diz um fetichista daquela parte do corpo humano. Um voyeur que espreita da janela de um quarto andar, as cortinas semi-cerradas e uns binóculos de ir à ópera.
Passam carros que não param. A demorada espera. As agruras, a tormenta, o desespero. A vida que se põe em causa. Uma casa que é um quarto alugado. O corpo que é uma casa de aluguer. A vida que nunca se aluga. O tempo inútil de ser esquina. Um cartaz amarelado de um filme de cowboys no edifício do antigo cinema do bairro que, agora, já não faz o deleite dos espectadores naquele escuro que apetecia.
Fazem-se contas à vida. Vida feita de contas de subtrair. A dificuldade em sobreviver. Uma sopa e uma sande de panado. Um bocado de pão que cai ao chão e se beija antes de colocar no lixo. Pão beijado é pão abençoado. Ela acredita que ao beijar o pão está a beijar um pedaço do corpo do Senhor. Os seus olhos riem de lágrimas sentidas.
Há muito tempo que em tudo o que lhe acontece de forma inesperada vê um sinal divino. Espera que algo mude a sua vida. Espera pelo toque de Midas. Espera um sinal. Espera que alguém lhe chame meu amor. Espera um beijo com sabor a verdade única.
Começa a cair a noite. As pernas cada vez mais cansadas. Começa a andar no passeio de um lado para o outro. Faz a caminhada que toda a gente aconselha. As barrigas das pernas começam a endurecer. Anda bem no cimo daqueles saltos altos, ajeita o lenço do pescoço.
Uma vez alguém a tinha ouvido dizer: «Gostava de morrer como Isadora Duncan.»
Lembra-se do filho que ninguém perfilhou e que vive com os seus pais no lado de lá do rio. Todas as semanas envia dinheiro para ajudar. Quer que o seu filho estude, que seja alguém, mas, acima de tudo, que seja um homem bom.
Pára um carro de alta cilindrada. A janela abre-se. Combinam-se coisas que ficam entre os dois. Quando se entra assim num carro, entra-se numa viagem com fim desconhecido. Uma espécie de roleta russa. Um jogo assassino. O fumo e o fogo. No carro, uma temperatura agradável. Nos punhos da camisa de quem guia o carro, uns botões de punho de rubis. O carro desaparece na esquina seguinte. «Que o Senhor a proteja» diz uma companheira de outra esquina. O Voyeur cerra completamente as cortinas e vai para a cama. Deve ter sonhado com os pés daquela mulher.
No dia seguinte nem sombra da rapariga. Dois dias depois aparecem cartazes colados na parede da esquina. Nos cartazes a sua foto e desapareceu, procura-se, eu sei lá. A busca continua. As companheiras das outras esquinas vão rezar o terço, todos os dias, à Igreja do Bairro. Acendem velas por ela.
«Agora deu-te para o crime e as noites negras?»
Fala da Isaurinda.
«Sabes que há vidas assim. Porque não falar nelas?»
Respondo.
«Gosto mais que fales de coisas menos tristes.»
De novo Isaurinda, e vai, um semblante triste.
Jorge C Ferreira Abril/2024(433)
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Traço entre o escuro e brilhante de uma realidade perturbadora e inquieta de calendários incertos.
Preocupações de momentos do ontem … talvez do hoje, onde o mar das interrogações é sempre agitado e indefinido, como a vida em cada acordar por entre paredes caras, mas muito degradadas.
Gritos e “clausulados” opacos no testemunho que recordamos com coragem, apesar de “gritos” em rodapé de Isaurinda.
Ler-te é um mapa que agarro e codifico em cada parágrafo respiratório.
Abraço muito grato, estimado amigo!!!
Obrigado José Luis, meu Amigo. Poeta. É sempre uma alegria ler os teus comentários. Sempre argutos, assertivos. A minha gratidão. Abraço grande
Vi o filme ” A profissão mais antiga do mundo”que me ocorreu de imediato . Podemos substituir aquele adjetivo por ” difícil” ” perigosa” e todos estão igualmente bem adaptados . Um recurso a que muitas mulheres se vêem obrigadas a recorrer quando nada mais lhe resta do que colocar a vida em cima de uma corda que se tenta atravessar.
Desespero e uma enorme angústia . Ainda assim , há as mais protegidas , as que se oferecem nos lupanares de diversão .
Vidas que por vezes não se escolhem . Uma roleta a destinar a sorte.
Obrigado Lénea. É sempre reconfortante ler os teus comentários. Vais ao fundo das coisas. Uma visão importante. A minha gratidão. Abraço grande
Grata me sinto eu , ou nos sentimos nós por termos o privou-se ler as tuas crónicas que nos acrescentam sempre .
Beijinho , meu amigo
Muito obrigado
Crónica realista. Vidas difíceis, ao contrário do que se diz. Esquinas de espera e desilusão. Corpos cansados, vidas sem esperança.
Assim é a prostituição.
Tantos passam e ignoram.
Passam os anos e tudo continua igual ou pior. Vidas difíceis.
Obrigada Amigo por estar sempre desse lado.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Que comentário importante. Nú e crú. Sim, tudo continua como diz. A minha imensa gratidão. Abraço forte.
Um tema muito triste, mas infelizmente “há vidas assim.” Sempre sensível a sua escrita. Sem uma palavra, que afronte a dignidade desta mulher.
Tão triste, tal forma de suprir as faltas e as aflições que a vida dá. Dói-me o coração.
Quem sabe se esse sinal divino, que ela pressentiu, a conduza a um caminho de amor e saber como é bom um beijo de verdade.
É sempre de encanto a sua escrita, querido escritor. Palavras sempre inteligentes e doces, mesmo as que descrevem, este texto tão amargo.
A minha gratidão meu amigo. Abraço grande.
Obrigado Maria Luiza. Que maravilhoso comentário. A vida que acontece. As vidas difíceis. É tão bom ler o que escreve. Obrigado pela sua generosidade. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.
É uma crónica triste e real. Quantas vidas sofridas acabam cruelmente. A impunidade que prevalece. Abraço Amigo.
Obrigado Regina. Que bom estares neste nosso espaço. Espaço aberto a todas as opiniões. A minha eterna gratidão. Abraço grande.