Crónica de Jorge C Ferreira
Eles Comem Tudo” (Roubado ao ZECA)
Gostos esquecidos, gostos perdidos. As antigas cozinhas e as velhas frigideiras. Os molhos espessos que eram montra das tabernas antigas. Não havia ASAE, os polícias iam comer uma sande de iscas e um copo de três ao balcão da tasca. Todos os dias passava por aquele sítio para apanhar, primeiro o autocarro nº 7 para Alvalade, para a Eugénio dos Santos, depois o carro operário até à baixa, para subir depois até à Veiga Beirão. A partir de 8 de Outubro de 1964 com quinze anos, foi o trabalho e também o mesmo caminho, rumo à baixa, à Rua dos Sapateiros.
Comecei a fazer estes caminhos sozinho com nove anos. Muitas vezes, à vinda, vínhamos a pé e em bando e assim guardávamos o dinheiro do bilhete para gastar em outras coisas. Era o tempo em que um tostão era um tostão. Morava um ditador no Palácio de S. Bento e a PIDE tinha sede num sinistro prédio, na Rua António Maria Cardoso, onde agora existe um condomínio de luxo. Há quem acredite ser impossível que, por vezes, não se ouçam os gritos dos que ali foram torturados e a agonia dos que ali pereceram. São paredes salpicadas de sangue e de vergonha. Coisas que fazem parte da triste história deste país e que muitos ignoram e outros parecem querer esquecer.
A baixa era um Mundo. Ali tinham sede todos os Bancos. Os cafés fervilhavam de conspirações. Tudo escrito em papéis que se rasgavam ao fim da noite. Os bufos moravam perto de nós, frequentavam os mesmos cafés e vendiam informações para juntar mais algum à miséria do ordenado que tinham. Assim vendiam a honra. Nós já os conhecíamos à légua. Mas era necessário ter cuidado, porque eles nasciam como cogumelos e tentavam integrar-se nos grupos, nas organizações, fazerem-se passar por nossos amigos.
Quando havia reuniões na sala cinzenta do Sindicato dos Bancários sabíamos que eles estavam lá. Tinham que se identificar à entrada. Começámos a perder o medo. A falar dos problemas que nos afectavam, das injustiças, da falta de liberdade. Tínhamos uma das primeiras direcções independentes no sindicato. Um movimento que alastrou e se tornou preocupante para o regime. As manifestações, que eram proibidas, começaram a acontecer. A polícia aparecia, o Capitão Maltez tornou-se conhecido. Os cães-polícia e os polícias-cães mostravam a sua raiva. Os jactos de tinta azul marcavam as pessoas.
De quatro em quatro anos organizava-se um simulacro de eleições livres que de livres não tinham nada. Apesar de sabermos isso, lá íamos aos comícios que deixavam que fossem realizados, havia polícias no palco para vigiarem o que se dizia e tentar calar as vozes mais inconvenientes. Eles tinham medo da verdade e alergia à liberdade. Acho que tinham medo deles próprios. A chamada “Primavera Marcelista” cedo se viu que não ia a lado nenhum, mais uma farsa.
Foi muito tempo até o tempo ter sentido. Agora é necessário defender a liberdade e os nossos direitos que nos tentam esbulhar a cada momento. Os direitos adquiridos são, para os senhores sem cara, letra morta. O trabalho torna-se cada vez mais precário. Vamos lutar pelas manhãs claras.
“Tu, não desistes e olha que tens razão. Anda para aí gente perigosa à solta.”
Fala da Isaurinda.
“Sim, minha Amiga, Gente sem um pingo de ética, nem vergonha. Vira-casacas, pilha-galinhas e chefes emproados. Temos de os derrotar.”
Respondo.
“Sim, mas cuidado com essa gente. É gente com má cara.”
De novo Isaurinda, e vai, de punho erguido.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2025(465)
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Olá Jorge!
Gostei muito de ler a crónica de hoje.
Nunca é demais lembrar esses tempos, tendo como mais valia uma testemunha viva e participante, como o Jorge.
Não podemos dar nada por garantido. Aprendemos isso.
Continuemos a defender a paz e a liberdade na medida das nossas forças.
Sempre!
Abraço
Texto brilhante num recordar que me tocou bem fundo face a “simultâneos” dos nossos caminhos … onde me lembro de ser chamado à PIDE na António Maria Cardoso, para responder a algumas “dúvidas” da viagem de finalistas que ia “gozar”… tudo por causa das suspeitas relacionadas com o meu pai … um bravo político contra o regime!
Hoje, temos a liberdade de dizer, escrever ou reflectir em voz alta os nossos sentires, mas olhando bem … não deixa de ser preocupante quando já pisam o palco da política pensamentos de outros tempos.
Bravo pelo teu “grito” … repartido com a frontalidade sincera de Isaurinda!
Grande abraço, amigo que muito estimo!