Da parvoíce à Liberdade
por Jorge C Ferreira
Há um tempo em que nos perdemos um pouco. Pensamos menos. Ficamos vaidosos, ficamos convencidos que somos donos do mundo, imortais. Acho que, quase todos, passámos por isto. Um caminhar desequilibrado. Um caminhar sempre sobre um fio muito estreito. Muita parvoíce.
Um tempo em que passeávamos com as namoradas e tínhamos um cuidado desmesurado pela roupa que vestíamos. Roupa em que gastávamos demasiado. Os tecidos comprados a metro. As camisas justas ao corpo, com pinças e colarinhos grandes. Tudo feito à medida ali na Rua Damasceno Monteiro pelas mãos de ouro da D. Fernanda. Senhora sempre atenta às nossas medidas. «O menino engordou, o menino emagreceu.» O dia de ir buscar a nova camisa era quase uma festa. As cores apelativas. O corpo a sentir-se confortável.
Era tempo de descer a rua do Sol à Graça e ir ao Sr. Ferreira, alfaiate de mão cheia e uma paciência incrível para aturar as nossas loucuras. Os tecidos que levávamos. Os fatos cintados e de bandas largas. As rachas. Os ombros altos. A primeira, a segunda prova, finalmente o fato. Fatos de cores estranhas. Algumas arrojadas. Lembro-me de ter um azul-bebé. Ir com aqueles fatos trabalhar era estar sujeito a algumas bocas. Mas as modas iam pegando. Estar na vanguarda tem sempre custos para que devemos estar preparados.
A propósito. Lembro-me de um dia ter comprado numa loja que importava coisas de Londres, aquilo a que os espanhóis chamam de “mariconera”. Quando cheguei ao Banco com aquilo na mão, o mínimo que fui apelidado foi de maricas. Pouco depois fui para a tropa e, quando regressei ao trabalho, só via “mariconeras” de muito mau gosto que enxameavam as secretárias dos meus antigos críticos. Eu que, nesse tempo, já usava uma mala ao ombro, não pude deixar de dar boas gargalhadas ao ver tal espectáculo.
Aquilo parecia um Banco de “maricones”. O gozo que me deu.
Lembro-me de ir à Rosicler com um amigo mandar fazer umas calças à boca de sino. A mesma cor, o mesmo feitio. Uma irmandade. Os sapatos de plataforma, que nos faziam mais altos, tapados pelas calças. Assim ganhávamos mais centímetros de altura. Ficávamos mais elegantes.
Depois foi o tempo dos “Lotus”. Sapatos que comprávamos numa Sapataria que ainda existe na Rua Augusta. Lembro-me de ter uns castanhos e brancos que me obrigavam a ir às Andorinhas engraxar mais que uma vez por semana.
Era também o tempo de os homens irem lavar e pentear o cabelo ao barbeiro. Eu ia sempre ao mesmo, e à mesma hora, durante a hora de almoço. Lembro-me que foi nesse barbeiro que fui cortar o cabelo antes de ir para a tropa, para grande desgosto meu.
Quando regressei da tropa vinha diferente. As noites já tinham passado a fazer parte da minha vida. As conversas entretanto tidas, nas messes de oficiais e sargentos, já soavam a novas aventuras. Nos cafés faziam-se e desfaziam-se revoluções. As músicas cantadas pela madrugada fora. Começou a procura dos livros proibidos. Lembro-me de levar para o quartel o “Le Chant Du Fantoche Lusitanien”, e de o livro ter passado de mão em mão até ficar quase gasto. Ainda hoje o tenho.
Foi o tempo das lutas sindicais. Das greves de meia hora e das manifestações proibidas. Foi o tempo de ser preso. Um tempo de todas as conspirações e, Abril já tão perto.
Quando me deram um cravo, chorei.
«Olha que grande caminho tu fizeste. Da parvoíce até à Liberdade.»
Fala de Isaurinda.
«Liberdade que ainda está viva. Acho que temos que queimar muitas etapas até estarmos prontos para arriscar.»
Respondo.
«E viva a Liberdade!»
De novo Isaurinda e vai, o braço direito a acabar num punho erguido.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2022(336)
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O antes e o depois de … Nada é igual, tudo se transforma. Um ciclo de vida para toda uma vida real e irreal que leva a comparações com a actualidade. Jamais será igual, existe toda uma despreocupação leviana, procura-se, procuram igualar o tempo, mas, jamais os meninos(as) de hoje serão tão arrojados, ou então são de uma outra forma. Sem a garra do perigo que antes fazia crescer a adrenalina,se bem que eu não tenha tido vasta experiência do que era clandestino, vivi esse tempo no após, tempos mais leves, mais propícios a querer outras loucuras que nada identificava o antes…
Adoro a Isaurinda e a sua perpiscaz inteligência. Abraço meu amigo!
Obrigado Cecília. Que bom tê-la de volta a este seu espaço. Todos percorremos caminhos diferentes. O que a vida nos proporciona e exige. Muita gratidão. Abraço
Viagens no tempo…
Também gosto.
As minhas têm sido outras.
Beijinhos.
Obrigado Sofia. Todos vivemos o nosso tempo. Todos aprendemos com todos. Que atinjas os teus objectivos. Beijinhos
Excelente. Que belo regresso ao passado.
Acompanhei-o nesta viagem no tempo à idade da parvoíce. Fui ao baú das recordações e as fotografias da época fizeram-me rir. Os rapazes com calças á boca de sino, cabelos compridos. As raparigas de mini saia. Tudo confeccionado por alfaiates e modistas.
Tempos tão distantes e tão presentes.
Depois a Liberdade. Os plenários. As contestações.
As reivindicações.
Hoje teme-se pelo amanhã.
Liberdade sempre.
Gratidão amigo, por tão belas memórias.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Foram os tempos que percorremos. Foi um tempo de descoberta. A Liberdade foi o bem que nos chegou numa madrugada anunciada. Tudo faz parte da nossa vida. A Liberdade ê para defwnder sempre. Abraço
Excelente crónica como tu tão bem sabes escrever. Viagem ao passado das parvoíces e à/da liberdade.
Vi-te e revi esse tempo já tão distante mas presente dentro de mim. Esfumado, como se de um ‘filme’ se tratasse.
Tempo das ‘ loucuras’ que nos fizeram crescer e amadurecer
Grata, deixo um abraço de coração
Obrigado Em. Os tempos de loucura e paixão e depois, a Liberdade nosso Amor maior. Assim crescemos e fomos aprendendo. Abraço enorme
Obrigado Em. Esses tempos de lohcura e paixão e depois do risco, a Liberdade nosdo Amor maior. Gratidão. Abraço
Querido Jorge, li com cuidado e interesse. Ao ler-te, mais uma vez tive a sensação de te estar a ver em tudo o que ias contando. Um ” filme ” que me recordou uma época. Éramos três irmãs, mas tínhamos primas e primos, muitas/os colegas e amigas/os, quase sempre filhas/os e amigos dos Pais e da vizinhança. De facto havia a ” parvoíce ” da moda. Quase todos gostávamos de a seguir, quando já tínhamos idades para o fazer. O meu Pai gostava que andássemos vestidas de ” igual “, o que muitas fotografias mostram. As nossas Famílias ( materna e paterna) eram de classe média, mas onde havia muita preocupação cultural. Eram gente do ” reviralho ” e estávamos muito educados para o cuidado de não repetirmos fora da família o que ouvíamos em família. Referi aqui estes factos, porque ainda hoje entendo o valor da LIBERDADE, como sabes. Em Coimbra nasci, cresci, estudei, trabalhei, casei e fui mãe . Gostei da tua ” Crónica ” que me empurrou para trás tantos anos. Mas a tua VIDA é muito mais rica do que a minha. Creio que temos pontos em comum, da ” parvoíce” à LIBERDADE. Já falámos sobre isso numa oportunidade em que vieste aqui apresentar um Livro. Como amigos/irmãos no FB, continuámos a conhecermo-nos melhor, ainda . A VIDA roda em permanência e acredito que, ou isto ” vai ou racha.”. Lá iremos, então, descer novamente a Avenida, não por ” parvoíces “, mas pela LIBERDADE, SEMPRE.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Tu és sábia. Ainda tenho muito a aprender contigo. Tenho tantas saudades desse dia em Coimbra. Sinto que cada vez estamos mais perto de darmos o braço e descermos a Avenida. Abraço grande
O cronista continua num registo autobiográfico que comove e desvela momentos da sua vida adolescente marcada pela ausência de liberdade e a forma como fez (fizeram) face a estes tempos. Desdes as coisas fúteis às essenciais. O autor denota,humildemente,como se comportou relativamente a essa época e como ela representa registo visceral da sua singularidade. Há dor. Interrupção da vida,pela guerra, mas também orgulho,atrevo-me a dizer,pelo desbravar de caminhos difíceis e “marginais”.
Ao ler esta crónica chorei. A realidade relatada é tão diferente da minha. (Como eu desejei ter calças à boca de sino,a ignorância sobre a existência de livros, o isolamento social…). Este autor,como outros homens,possibilitaram,lutando,de uma forma que só posso imaginar, mas não conhecer,a continuação para dos meus estudos para o ensino superior ( com bolsa, claro).
Há também, nesta crónica, um registo muito singular dos modos como escolhia viver e “apresentar–se” à sociedade. E como bem diz: vanguardista. E como tão bem descreve,esta atitude acarreta riscos e, acrescento,provavelmente,feridas de difícil cicatrização, ou não (aguardo a resposta do autor).
Uma crónica comovente e expressiva de um “mundo”para mim inexistente, nesse tempo, pela infância e outros factores socioculturais.
Uma fase da nossa história que é relatada de forma exímia na “figura” do próprio .
Mais uma vez, uma crónica nua,excelentemente descrevendo um tempo social e simultaneamente um tempo pessoal. Este sempre na linha da liberdade, contra um sistema difícil de combater,imagino,na altura.
O meu obrigada.
Obrigado Isabel. O seu comentário é de uma riqueza enorme. A vida faz-se caminhando. Correr riscos faz parte da aventura de viver. Há coisas que se pagam. Temos de assumir e lutar contra todas as descriminações. Assim não há marcas. São afirmações que, por vezes, fazem tremer os falsos puritanos. Grato. Abraço
´Tudo é consolador quando andamos na moda: ninguém critica nem repara. Parece que todos obedecemos a uma ordem vinda sem sabermos de onde.
Coisas estranhas como as camisas cor-de-rosa para homens: acabaram-se os preconceitos; a afirmação prevalece.
Um abraço, Jorge.
Obrigado António. Ter a coragen de enfrentar os retrógados. Os que em tudo viam motivo de crítica. Afinal eram os seus medos de perderem o poder. A modernidade areja as mentes. A Liberdade deve ser a nossa paixão. Grande abraço
Grato pelas tuas memórias, que se enquadram muito nas minhas, nesses tempos onde um simples corte de cabelo era dia de festa.
De todos os momentos por aqui bem traçados, destaco o meu continuar a ir à mesma “barbeira” há 40 anos.
Por entre a história de viver um Abril na Guiné, ou ser chamado à PIDE, para me interrogarem da razão da minha ida a Espanha, na festa de finalistas , porque alguém da minha família era do PCP.
Hoje os mares acalmaram, mas continuo a reler memórias do que fui, comparando com o que sou.
Grato amigo pelo teu contributo num texto fabuloso, que me tocou muito a propósito.
Obrigado José Luís. O teu Abril tão diferente. Essa outra experiência intensa. Abrir um microfone às vozes da Liberdade. Sabes qur eles não perdoavam. Não passavam de uns cobardes acantonados na António Maria Cardoso. Foi a vida que nos tocou vencer. Viva a Liberdade. Abraço
Eram outros tempos…
Outras modas…
Outros trajares…
Era o fato cintado de ombros largos, as cores arrojadas, calças à boca de sino, sapatos de plataforma e as bolsas à tiracolo.
Depois. Depois. Foi o outro lado do espelho.
O despertar para uma realidade de sabor amargo e perverso. Doía.
E assim nasceram os encontros clandestinos, livros proibidos e canções de intervenção.
Greves e manifestações.
Perseguições. Prisões.
A luta não foi estancada. Os clamores multiplicaram-se. Os elos fortalaceram-se.
A união fez a força. A liberdade era um canto uníssono. A uma só voz!
Todo o processo revolucionário terminou num abril, cravos espalhados por uma nova cidade. Desencarcerada! Alforriada! Liberta!
Uma crónica excepcional com a assinatura de escrevinhador que hoje aqui deixou um cravo.
Vermelho!
Obrigado Mena. Tão belo o que escreveste. Tão visceral. Fomos e carregámos toda a esperança do Mundo. O mundo foi mudando connosco e nós fizemos por o mudar. Os cravos continuam connosco. Somos de Abril. Abraço grande
Já li e reli esta belíssima Crónica. Está maravilhosa.
Nada de parvoíce, é o acordar de mais uma memória consoladora.
Tudo igual, era assim como descreve.
Como a D. Fernanda gostaria de saber que se lembra dela, com tanto carinho. Engraçado, ter vindo tantas vezes à rua onde ainda moro. Sabe que ao lembrar todas estas coisas, eu associo tantas outras que lembro com muita saudade.
Sabe que me encanta a verdade que põe na sua escrita, acho maravilhoso os termos delicados que usa, no seu sem fim de palavras. Foram tempos lindos. Havia a preocupação de cuidar da nossa imagem.
Muito vaidoso … sim senhor. Melhor assim.
Um mau momento, cortar o cabelo. Que violência a tropa. E para quê.
Felizmente chegaram os cravos, que trouxeram a liberdade.
Foi um prazer ler tão belo texto. Levou-me longe, já é tanta à distância e eu quase não dei por isso.
Adoro ler memórias e as suas, são sempre imperdíveis, querido escritor. Grata sempre.
Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Andar na sua rua e não a encontrar! Não me perdoo. A D. Fernanda também eu gostava que soubesse que era lembrada. Foi um caminho. Os seus riscos, loucura e paixão. Até que chegou o bem supremo, a Liberdade. Abraço grande
Gargalhadas imensas por causa das “mariconeras”.
De facto, há um tempo para tudo e o tal caminho que percorremos.
Lembro-me de que os bancários com frequência faziam as tais pequenas greves e manifestações na Rua Augusta, as quais eram dispersadas com gás lacrimogénio. Várias vezes o senti.
Viva o Amor e a Liberdade.
Saudades de um cravo vermelho.
Abraço grande
Obrigado Maria Rosa. Toda uma vida. A aprendizagem e a luta. A luta pela Liberdade e os seus custos. Os cravos vermelhos vivem connosco, um para si. Abraço grande
Como sempre que bela descrição, daquilo que passamos! A moda de que gostávamos, ( andávamos todos iguais!) de exibir..
E depois a guerra revolucionária… e finalmente a Liberdade… os cravos vermelhos…e quantas lágrimas de felicidade! Abraço Jorge. Gosto sempre de o ler.
Obrigado Maria Matos. Sim, minha Amiga, tudo isso. No fim a rebeldia almejava a Liberdade. Os cravos foram a alegria da nossa vida. Grato. Abraço Amigo
Da parvoíce à liberdade – um caminho a percorrer. Uma permanente aprendizagem. Das doces descobertas às amargas desilusões. Um tempo para tudo. Onde o saber o que é ser livre faz de nós maiores.
Chorar pelo belo. Amar a liberdade.
Um abraço especial à Isaurinda ❤️
Obrigado Cristina. Quanto caminho, quanta aventura, quaato risco. Querer sempre ir mais além. A Liberdade que não chegava. Os cravos da Alegria. A isaurinda agradece e retribui. Abraço grande