Crónica de Jorge C Ferreira | Confusão

“Confusão”
por Jorge C Ferreira

 

Adensa-se a discussão. As teorias da conspiração pululam. Os populistas também. A insegurança de alguns governantes e a loucura de outros, faz-nos pensar e repensar. Falam dos velhos, das pessoas da minha idade, como se a nossa morte fosse uma coisa normal. Aparecem coisas estranhas e modernices mal pensadas. O modo de transmitir às pessoas nem sempre é o melhor. Estamos numa encruzilhada tramada. Continuam os números e os gráficos. A calamidade de novo.

Aparecem manifestações a propósito de tudo e de nada. Posições contraditórias juntam vozes. Acontecem coisas que não entendemos. Começaram de novo as filas para as vacinas. Agora vem aí a gripe. Vai começar o tempo daqueles pijamas muitos bonitos com capuz e orelhas. Já fui buscar a minha manta que me deram antes de chegar ao Cabo Horn. Tenho de começar a tirar das caixas os gorros e os cachecóis.

O Ronaldo deu positivo. A fortaleza. O atleta completo. O exemplo de desportista. O melhor do mundo. Não está imune ao bicho. Quantos não terão dito: «estou tramado, agora vamos todos de enfiada.» Quantos se meteram outra vez em casa e nem vão já beber um cafezinho à rua? As cabeças a piorarem. Os psiquiatras e os psicólogos em teletrabalho. Os telemóveis a contarem os passos feitos em casa. Por vezes é já a casa que anda à roda. Mesmo assim ganhámos à Suécia.

Ir ao médico tem uma encenação intimidante. Desinfectamos mais uma vez as mãos. Medem-nos a temperatura, uma pistola apontada à cabeça. A máscara sempre posta e assim falamos uns com os outros. Temos de ter paciência. Tem de ser. Para nosso bem e bem dos outros.

Quando vou à minha esplanada, o empregado antes de me sentar desinfecta a mesa e cadeira e, por arrasto, a mim também. Outra vez o desinfectante. O café escaldado e o pastel de nata com canela. Perante todos estes cuidados, tão necessários, vem-me à memória a estória daquele empregado da cova funda do galego que tinha um panarício no dedo grande da mão e aproveitava para escaldar o dedo dentro da sopa, quase a ferver, quando levava a malga ao cliente. Outros tempos. Já deve haver poucas covas fundas e já não há serradura no chão dos estabelecimentos. Já não há escarradores nos Hospitais Civis.

Agora a ASAE controla tudo. Vem tudo muito brilhante e muito bem acomodado. As etiquetas com toda a informação que só se lê com lupa. Muita gente trabalha com luvas. Uma higienização que nos pode ser prejudicial. Já há roupa de marca para os lulus das senhoras cheias de anúncios a marcas que os passeiam em carrinhos de bebés pela rua. Também há muita porcaria de cão nas ruas.

Isto até estava tudo a correr bem. Só não sabíamos quando ia começar a correr mal. Até que apareceu o bicho e foi a sorte para o Iran Costa, esse novo profeta: “É o bicho, é o bicho, vou-te devorar.” Aí está ele de novo a bombar.

Agora é só para vos desejar sorte e pedir para que se cuidem muito e cuidem dos outros. Saúde. Abraços virtuais.

«Tu, tanto te dá para estar na fossa como para gozar com o parceiro.»

Fala da Isaurinda.

«Sabes que, por vezes, é necessário desanuviar o ambiente.»

Respondo.

«Já tens idade para ter juízo.»

De novo Isaurinda e vai, o dedo indicador na testa.

Jorge C Ferreira Outubro/2020(273)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Partilhe o Artigo

Leia também

19 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Confusão”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado Lília. Que bom que te descontraí um pouco. A ansiedade é tramada. Nós sabemos. Vamos escrever mais um Poema? Tão bom estares aqui neste espaço que quero de todos. Obrigado.

    1. Lília Tavares

      Estou aqui e tu sabes, amigo querido.
      Privilégio ler-te e mais ainda, ter-te como amigo.
      “Vamos escrever mais um Poema?”
      Beijinho.
      LT

  2. Eulália Pereira Coutinho

    Crónica excelente.
    A realidade em que vivemos, descrita de forma eximia.
    A tempestade que surgiu no meio da bonança. Os comandantes a perderem o rumo. Atinge todos, sem excepção.
    Tive que sorrir. É verdade que precisamos desanuviar.
    Há momentos em que temos que esquecer a idade, a falta de saúde, as notícias contraditórias, as manifestações incompreensíveis, os loucos.
    Obrigada, meu amigo, por fazer parte destes momentos.
    Cuide-se bem.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Desanuviar. Mas a coisa está a feia. Temos de nos cuidar. Grato. Abraço

  3. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Nesta selva civilizada em que vivemos, os mais fortes são os mais expostos ao bicho que, julgando-se imunes não souberam evitar a provocação. Bolas!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Precisamos de ter coragem. Ninguém está a salvo. É sempre um prazer tê-lo neste espaço. Abraço

  4. Cecília Vicente

    Que tempos estes, eu que de certa forma pensava que não levaria tempo nem estória pra contar quando chegar, se chegar aquele lugar onde os contadores de estórias de vida passam o tempo á espera de algo…e perdem não se sabe como a memória, acontece este bicho papão que parece gostar dos mais velhos, dos experientes, dos vividos, dos que sabem da vida…
    E assim vamos nós mascarados e distanciados, sem afectos por que tornaram-se perigosos. Tenho pra mim que haverá uma geração que dará pelo nome da geração do desapego. O norte e o sul, contagem diária, gel e máscaras, breve chega o Natal, será que ainda poderá haver sonhos na consoada? Abraço meu amigo vamos que vamos…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. A falta que nos fazem os afectos. Estes acontecimentos são para outras estórias. Coisas nunca vividas. Tanto que já vimos. Grato pela tua presença. Abraço

  5. Cristina Ferreira

    O humor inteligente e sensível a que já nos habituaste. Sei da tua lucidez e sei o que sentes. Tal como tu, também sou dos afetos, do toque. Vivemos tempos estranhos, mas só nos resta ter muita paciência e continuar a acreditar tomando as devidas precauções.
    Deixo um abraço (por hora virtual) de muita saudade.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Vou acreditar em ti e esperar por esse dia. Cuidados tenho. Gosto de te ver aqui. Abraço

  6. Mena Geraldes

    Gostaria de poder dizer-te que,desta vez, te enganaste.
    Escreveste alucinações… despropósitos….
    vertigens…
    loucuras…
    intimidações…
    Gostaria de poder dizer-te que as tuas palavras não têm sentido e que vives outras realidades.
    Gostaria de me abraçar a ti, como outrora, quando os amigos se abraçavam e trocavam carinho.
    Gostaria de poder caber nas mãos ternas dos meus amores e dizer-lhes que tudo isto é um pesadelo e que, não tarda, vamos acordar.
    Gostaria de poder dizer…
    Mas não posso!
    Mentiria.
    Mentiria.
    Mentiria.
    Porque tens toda a razão!
    Teorias da conspiração…
    Encruzilhadas…
    Mentes perturbadas…
    Pandemias…
    Máscaras e encenações…
    Calamidade e mortes…
    Irresponsabilidades…

    A tua lucidez é real.
    A tua inconformidade é tenaz.
    A tua escrita incómoda mas frontal.
    A tua objetividade é mordaz.
    Gostaria de poder dizer-te que…
    Não digo mais!
    Não! Não! Não!
    Basta!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. É sempre tão gratificante ler os teus comentários. São textos brilhantes que nos ofereces. És generosa. Que bom seres minha leitora. Abraço

  7. ivone Teles

    Querido amigo/ irmão. Gostei do que comentaste e de como o fizeste. Estamos a viver tempos difíceis, uma ” Confusão ” como a titulaste. Os dados da pandemia repetidos até à exaustão, assustam. É necessário termos cuidados. Disso não duvido. Aqui em casa somos dois idosos octogenários e com patologias próprias da idade e da vida.. As máscaras, cumprem as suas funções de mascarar. Cruzamo-nos , cumprimentamo-nos uns aos outros e nem sabemos quem são. Eu, que sou de abraços, beijos, só dou os virtuais. Mas não é a mesma coisa. As saudades são imensas. Entretanto, morrem-nos alguns amigos, sem, ou com esta pandemia São tempos perturbados e perturbadores. A saúde mental das pessoas sofre com as medidas necessárias. Somos gregários, por natureza e solitários, por necessidade. Mas não deixemos de conviver, por nós e pelos outros. Vamos, com responsabilidade, viver e ajudar os outros a viver. Meu querido amigo, tranquiliza a Isaurinda. E, nós, vamo-nos encontrando por aqui e imaginamo-nos a tomar um café, prometido e sem vírus. Beijinhos ternos desta tua amiga.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. És a minha generosa Amiga/Irmã. Escreves comentários divinos a que nada há a acrescentar. É tão bom estares neste espaço. Abraço

  8. Regina Conde

    As regras de bom senso apenas me incomodam. Permitem-me sair de casa, sentir o que me rodeia. Ver e estar com amigos. Sei que não será por muito tempo. Estará a chegar um tempo difícil. Diz quem sabe e quase não dorme, que as vacinas vão acontecer. Nesses eu acredito. Não vejo noticiários, medo do medo assim se deveriam chamar. Vibram de emoção ao mostrarem os dados. Mudo de canal. Jorge, gosto da tua crónica de humor inteligente e ironia apetecível nesta altura é importante. Um abraço enorme. Vai acontecer!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Saber-te aqui é muito bom. Sim. Estamos a caminhar não sei para onde. Vamos resistir. Abraço

  9. Branca Maria Ruas

    É cada vez mais importante encontrarmos o ponto de equilíbrio.
    Segurança e precaução mas sem deixarmos que a vida nos passe ao lado.
    O medo paralisa. A ansiedade sufoca.
    As teorias da conspiração assustam-me. Esta pandemia tem mostrado um lado muito obscuro da humanidade. Acredito na ciência e no trabalho da comunidade médica e científica. Mas ainda vai levar tempo… Até lá precisamos ter muita paciência, muitos cuidados mas não nos isolarmos. Não podemos suspender as nossas vidas. O excesso de protecção pode levar muita gente à depressão.
    Haja equilíbrio!
    E obrigada por mais uma crónica tão oportuna.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. A tua presença aqui está também um pouco no texto. A tua ajuda é preciosa. Tudo o que dizes faz sentido. Temos de nos cuidar. Grato por tudo. Abraço

  10. Lília Tavares

    Querido amigo Jorge, sabes, penso que a ansiedade diminui as nossas defesas.
    O teu texto fez-me bem, sorri e pareceu-me ver a Isaurinda divertida e’desaurida’ com os teus pensamentos.
    Que cada dia que passa seja menos um que nos separe de um sonho adiado.
    Beijo.
    L.

Comments are closed.