Cartas
por Jorge C Ferreira
São memórias muito antigas a roerem-me o corpo. Coisas de antanho. Coisas escritas em papel de linhas. Cartas que iam chegando. Postais muito antigos. Os selos e o cuspo. Fluidos de gente transportada em envelopes. Por vezes descobríamos sentimentos. Alegrias e tragédias.
Uma vez falei com uma amiga para recomeçarmos a enviar cartas escritas à mão. Começarmos uma rede social à moda antiga. Tudo escrito à mão e entregue pelo carteiro. O cão a ladrar. As cartas proibidas que iam para a casa de uma amiga. Um tempo muito estranho. O namoro era coisa séria. Tudo era assinado. O lacre e o sinete. Os envelopes e as cartas personalizadas. A gramagem do papel. O colorido dos envelopes. A língua a deslizar pela cola do envelope.
A faca de abrir cartas. O tinteiro e o mata-borrão. As canetas de tinta permanente. A caneta que não se empresta a ninguém. A caneta que só está habituada à nossa mão. Quase como um fato feito por medida. A importância da cor da tinta. Os sentimentos a deslizarem em movimentos ritmados da mão que os traduz em letras. Uma quase alquimia. Um mistério a ser celebrado.
O leitor de cartas. Uma pessoa importante num país de analfabetos. Saber dar a entoação correcta. Levar as pessoas nesse balançar. O ouvinte sempre de lenço na mão. As notícias eram sempre de muito longe. Neste país tão pequeno onde tudo era longe. A tarefa do leitor não era fácil. As notícias tanto podiam ser felizes como trágicas. A felicidade e o sofrimento acabavam por ser mútuas. Uma união que se ia fortalecendo durante a leitura. Irmãos para a vida.
O escritor de cartas. O que não escrevia apenas o que lhe ditavam. O que via através dos olhos do remetente o que este lhe ditava. O que arriscava, muitas vezes, extravasar aquilo que na realidade pensava que o outro queria escrever. O que burilava as frases e aprimorava a letra. Constava que muita gente se apaixonou pelo escritor de cartas. Um homem estranho e que tinha jurado o celibato. Sempre que acabava uma carta beijava a cruz que trazia ao peito como que abençoando o já escrito.
Vamos ao que interessa. Criar a tal rede social de correio tradicional. Vamos a isso? Todos, ou quase todos, temos todo o material em casa. É só colocá-lo operacional. A Virgínia, minha editora, envia-me sempre os livros embrulhados em papel pardo. Um embrulho atado por um cordel de toda a vida e com aquele nó único que nos leva para outros tempos. Guardo sempre tudo. É como que uma visita ao passado, uma relíquia. Está no tempo de fazermos coisas que nos fiquem na memória e nos tragam memórias.
Depois há o decifrar a letra do outro. Descobrir, através da letra, o estado psicológico do escrevedor. Porque a escrita muda consoante o estado das pessoas. As mãos podem tremer, ou estar mais firmes, mais relaxadas ou mais tensas. Há cartas que irradiam alegria, outras tristezas. Tudo isto se pode detectar através da forma como a carta é escrita.
“Sabes que não sei ler nem escrever. Nunca farei parte desse grupo.»
Fala de Isaurinda.
«Há quarenta anos lembro-me de te quererem ensinar e tu recusares.»
Respondo.
«Pois, já estava velha para aprender. Mas as minhas filhas já estudaram. Tu sabes.»
De novo Isaurinda e vai, a mão a limpar uma lágrima.
Jorge C Ferreira Novembro/2020(275)
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Obrigado Idalina. Uma crónica com saudades do futuro. Uma carta nova, um postal. Quem sabe? Bonito o seu comentário. Abraço
Guardo memórias não escritas mas de vivências perenes como a grama; de muitas fiz histórias que publiquei com a recordação daqueles tempos, quando me sentia feliz com um papagaio de papel, fazendo-o pairar sob o azul do céu!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Guardar o sabor das cartas antigas. As coisas de um outro tempo. Abraço
Tão bonita esta crónica, Jorge. Sabes como aprecio a tua escrita e como me emocionas. Hoje, não foi exceção.
Cronologicamente, somos de gerações distintas, mas eu costumo dizer que vivo há muitos anos, não sei precisar, mas seguramente alguns antes da data do meu nascimento.
Por isso a magia que a tua escrita exerce sobre mim.
Ainda recebi algumas cartas, não muitas, mas as suficientes para sentir ,muito de perto a sensação que descreves. Algumas de um namorado e muitas da minha tia Rosa, uma irmã do meu pai. Tal como o meu pai, a minha tia, tinha o Dom da escrita. Escreveu praticamente até morrer. E escrevia tudo, porque tinha medo de perder a memória. (A falta que a minha tia Rosa me faz)- Tenho tudo guardado numa caixa. Assim, como as cartas que o meu pai escreveu para a minha mãe. Lindas!
Sei de casos iguais aos da Isaurinda. E também sei que é em ti que ela confia, para quan do for necessário alguém escrever ou ler por ela.
Quem sabe um dia, escrevo-te uma carta.
Por hoje, recebe o meu abraço muito terno.
Cristina
Obrigado Cristina. Bonita esta carta que escrevesta. Tens maus vida que a que viveste. És generosa. Espero a tua carta. Abraço Grande.
Como foi bom ler esta crónica. Levou -me numa longa viagem de saudades.
Tantas cartas que escrevi.Tantas que recebi. A hora da chegada do correio, vivida com ansiedade. Guiné estava tão longe. Tanta coisa para contar.
As cartas às amigas, aos pais, que tinha deixado,para trabalhar em Lisboa. Mais tarde as cartas para as amigas que ali tinha deixado.
Tudo tão perto e tão longe. As palavras não se esgotavam.
Foi bom recordar esses tempos tão distantes.
Obrigada, meu amigo, por tão bela memória.
” Espero que fique bem, de saúde “…
Um grande abraço.
Obrigado Eulália. As cartas que encurtavam distâncias. A espera. O abraço. Tudo tão intenso. Vamo-nos cuidar. Grande abraço
Saudades que apetecem viver com carinho. Um momento tão nosso. As cartas depois de lidas várias vezes relidas entre linhas. A interpretação da letra era um fascínio que mantenho até hoje. Cartas de amor, os sentimentos expostos a falta do olhar. As cartas da minha Avó. Vivia nos EUA, na California. Apenas aprendeu a escrever o nome. As cartas que nos chegavam eram ditadas por ela e escritas por uma senhora Mexicana, amiga da mulher do meu bisavó. Cartas enormes de letra enorme, quase desenhada. Dentro das cartas sempre enviava dólares que faziam a alegria dos filhos. Apesar de ser muita pequena guardo o efeito daquelas cartas. Tenho a sensação que escrevi uma carta à minha querida Avó. A magia da escrita em papel. Obrigada Jorge por esta crónica. Em jeito de carta, espero por ti para a semana à mesma hora. Até lá um grande abraço meu Amigo.
Obrigado Regina. Cartas doces, cartas vindas do outro lado do mundo. Os escritos indecifráveis. Ler e reler tudo numa noite sem tempo. Abraço
Meu querido Jorge, meu amigo/ irmão. Só mesmo tu se lembraria de uma crónica sobre as saudosas cartas escritas à mão. Nem sei se escrevi muitas cartas, mas posso recordar as para os meus pais, quando fiquei a acabar de estudar, quando eles e irmãs voltaram para Angola. Quando fui lá, em férias grandes, as que escrevia para o Joaquim com quem namorava e estava em Coimbra. Também a família e amigas que foram para fora da minha Cidade. Só tu meu querido Jorge te lembrarias deste doce lembrar. Diz bem com o que tu ÉS. Não posso deixar de felicitar a Mena Geraldes pela carta que te escreveu. Lembrança criativa e bela. Se agora eu começasse a falar das cartas e postais que, mesmo assim, escrevi , só pararia tarde. Que BELA crónica, meu querido Amigo/ Irmão. És um Homem de coração Grande, com uma sensibilidade invulgar. Fico a aguardar o ” movimento ” a criar. Beijinhos gratos e ternos da tua Amiga/ Irmã Ivone
Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Que bom teres gostado desta crónica cheia de saudades do futuro. Um grande abraço
Obrigado Regina. Cartas doces, cartas vindas do outro lado do mundo. Os escritos indecifráveis. Ler e reler tudo numa noite sem tempo. Abraço
Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Que bom teres gostado desta crónica. Que bom teres revivido coisas de outros tempos. Esta é uma crónica com saudades do futuro. Abraço enorme
Jorge…
Amei.
Há quanto tempo não escrevemos cartas?
Havia todo um ritual. A carta recebida. O coração descompassado. O remetente. A tinta. A maior parte das vezes, a esferográfica. A pressa no abrir. A folha de papel. Tão branca…Atravessada por pontes,entre-margens.
A leitura, rápida. Um deslizar de olhos. O voltar atrás. O chegar à última linha. Na despedida.
O suspiro.
O encantamento.
A breve ilusão.
A palavra “amor”…
Recebi cartas de amor. E até, recordo bem, um quase pedido de casamento. Com muitos “ses”… Sorri. Levo a vida a sorrir. E então, nessa época, ainda sorria mais.
Agora, nem tanto.
Acho que deve ser porque não recebo “cartas de amor”…
Não simpatizo com telegramas. Gosto de cartas longas, poéticas, sussurradas, convidativas e cuidadas. Com letra legível.
Os meus “miúdos” costumavam dizer que eu tinha letra da primária.Acho que era um elogio…
“Meu querido Jorge.
Espero encontrar-te de boa saúde. Bem como à tua família.
Venho escrever-te algumas linhas para te dizer o quanto aprecio a delicadeza das” imagens” que me envias. A subtileza e a poesia dos termos que empregas, a imaginação que prolifera nas tuas descrições e os recursos estilísticos que usas amiúde. Ainda esse partilhar de vivências, a inquietude de um ser numa constante busca e, finalmente, a ousadia e a verticalidade do teu pensamento. Sem filtros. Preto no branco.
Mas do que eu mais gosto é seres despojado. Sem vaidade. Sem falsos pudores.
Sempre disposto a uma palavra amiga e de encorajamento aos teus companheiros de “letras e afins”.
Foi bom ter-te conhecido. O mantermos uma amizade pura e virtual. Este orgulho de me sentires como tua amiga.
Muito tenho aprendido contigo. Crescido. Sou uma tua discípula. Já tu és o meu mentor.
Ao teu lado tenho percorrido caminhos imaginários, estórias e efabulações, peregrinações por misteriosas paragens e viagens por terra e mar…
O nosso mar.
Espero que me respondas em breve. Na volta do correio.
Deixo-te o meu mais carinhoso abraço e cumprimentos para a restante família.
Mena. “
Obrigado Mena. Tão belo obque escreveste. Depois uma carta sem tempo. Uma carta eterno. Soube tão bem. Não sei como te agradecer. Um beijo.
Guardo muitas cartas, telegramas e postais.
E recolho cada vez mais memórias de família e informação genealógica.
Como se prolongasse, de certa forma, as vidas dos que já foram.
Ainda hoje me lembrei de perguntar se certa antepassada sabia ler. (Eram muitos os que não sabiam!)
Que não; não sabia. Mas ninguém a enganava nas contas!
Coisas que enchem o espaço, mas de que não consigo separar-me.
Boa semana, amigo!
Obrigado Sofia, minha Amiga. A que te sabem essas coisas que vais lendo. Que diferente são dos mails de hoje. Abraço grande
Amigo Jorge,
Quantas vezes já falámos dessa ‘rede social’ de “papel e tinta, caneta e mata-borrão”?
Ainda tentei começar e enviei a alguns amigos postais durante as férias de sítios onde agora é difícil voltar.
Tenho também gosto em desembrulhar os livros envoltos em papel kraft e atados com cordel encerado. Recebo da Virgínia, da Eufeme e de alguns autores tão saudosistas como eu… e tu.
Está na altura de recomeçarmos esse bom hábito de selar as cartas tendo em conta a espera, os dias e o prazer de cheirar o papel.
Belo texto!
Grande beijinho.
Lília
Obrigado Lília. Que bom o que escreveste. Sim já falmos sobre isto. Um dia recebi um postal de longe, trazia cheiros e sabores. Foi lindo. Vamos escrever uns aos outros. Abraço enorme
Querido Amigo
Hoje segunda feira que desde há muito espero para puder ler as tuas crónicas, confesso que depois da poesia adoro prosa poética e crónicas. Recorto da Visão todas as crónicas, fiz um dossier com todas elas. Gosto de escrever desde criança, desde essa altura as minhas redações tinham casa e tecto, enchia o caderno de linhas mais da conta, a professora Margarida quase sempre riscava o que estava a mais, não sabia da minha ânsia de contar o que inventava. Nunca ninguém entendeu que era naquelas linhas que eu contruía sonhos. Muitas vezes olhava distraída pela janela, todos os que passavam tinham uma vida que eu lhes dava, mal sabiam eles… Hoje, continuo a escrever nos meus cadernos de linhas, já são muitos. De criança a adolescente, de mulher tudo ali contado com mil e umas histórias que ouso inventar, outras tantas verdadeiras que só as linhas dos meus cadernos como confessionário guardam. Que crónica a tua, que lembrança boa, era bom mesmo que conseguíssemos o clube dos que ainda escrevem cartas, ir aos correios… sonhar não custa. Fica bem, escreve as tuas crónicas de que tanto gostamos. Ah, já me esquecia, escrevi tantas cartas em nome da senhora minha mãe que não sabia nem ler nem escrever e começavam assim : Desejo que estejam bem, nós por cá vamos como deus quer. Hoje mando vinte escudos dinheiro que poupei para pagar os lençóis brancos bordados para o enxoval da minha filha. Para uma próxima traga-me aquela colcha branca bordada, como habitual e prometido pagarei aos poucos (..) O estranho de tudo é que eu apenas tinha doze aninhos… Abraço meu amigo,até à próxima crónica,ficarei a pensar o que irás escrever…
Obrigado Cecília. Que bonito o que escreveste. Tão bom. Vamos ver o que acontece. Abraço Grande
Uma crónica de saudade. As cartas!
Cartas de amor( ainda que ridículas), de amizade…um hábito que se perdeu.
Também li algumas e escrevi as que me ditaram.
Escrevi muitas.
No Natal, adorava escrever os postais de boas festas que eu escolhia tendo em atenção o destinatário.
Grata por trazer esta ” alembradura”!