Cansaço
por Jorge C Ferreira
Não sei que vos diga. Estou cansado. Um cansaço que nos vai abraçando a todos. Uma falta de vida que nos empobrece. Os Amigos a quem vamos telefonando. Histórias que vamos inventando. Falta-nos o acontecimento que não vemos ao vivo. Estamos a perder anos que não sabemos contar.
Não sei que vos conte. Estou farto. Vejo imagens das cidades que amo. Tenho saudades das que tinha previsto visitar. O meu vício de conhecer outra gente, outros lugares. Somos dois. Deambulamos sem horários. Dormimos e não contamos o tempo. Quando olhamos para a data num calendário tudo custa mais. Contamos em meses, dias, horas e tudo se avoluma. Quantas pessoas deixámos de ver e não sabemos como estão.
Não sei que vos narre. Esta coragem para lutar contra o medo. Este medo que visto das mais variadas cores. A brincadeira de alguns dos meus dias. Vestir e despir o velho manequim negro que herdei da minha querida Mãe. Uns seios belíssimos, uma cintura perfeita. Ali faço e desfaço bonecos. Construo e desconstruo monstros e beldades. Lembro-me da minha Mãe a ajustar os tecidos. Lembro-me de toda a costura. Do corte perfeito. Das provas das senhoras que tentava espreitar. Lembro-me de me pagarem para tirar alinhavos. Mãe, lembro-me tanto de ti!
Vou-vos contar uma coisa. No dia 8 de Fevereiro a minha Avó sábia faria 118 anos. Morreu, agarrada à minha mão e à do meu filho com 96 anos. Tinha vencido a pneumónica, foi apanhada pelo tifo que a deixou com deficiência auditiva. Uma mulher analfabeta com um saber imenso. Uma mulher que sempre soube das suas capacidades. Foi, na verdade, a minha Mãe desde sempre, até nos tempos mais rebeldes da minha vida. Nos últimos anos falávamos uma vez por semana, pelo menos. Ia visitá-la e foi, apesar da sua surdez, a mulher que melhor me compreendeu e que mais me ensinou. Tudo o que era moderno aceitava com uma capacidade que me deixava espantado. Tanto saber acumulado e tanta coragem. Uma mulher de todos os tempos. Mesmo quando não saía de casa arranjava-se como se fosse sair. Nunca a encontrei em pijama, camisa de noite ou roupão. Minha querida Avó, amo-te tanto! Todos os dias vives comigo.
O que eu me cansei no que vos fui contando. Vem-me tanta coisa à memória. Anos e anos de vida sem liberdade. Tempos difíceis. Tempos que cansavam e revoltavam o espírito e o corpo. As prisões cheias de quem lutava pela liberdade. Os esbirros da polícia política que entravam de madrugada pela casa das pessoas. A tortura. Os tribunais plenários. Juízes sem vergonha.
Desculpem, mas tenho de acabar. Neste tempo sem censura, sem lápis azuis. Escrevo o que me apetece e sobre o que quero. Estou sujeito a processos se alguém se sentir ofendido. Mas sempre me ensinaram a não ofender ninguém. Sou mais de me afastar e não incomodar.
Tenho falado com mais amigos dos tempos antigos. Nem tudo é mau. Somos os mesmos. Apesar das vidas diferentes. Abraço-vos a todos.
«Hoje gosto do que escreveste. Bonito.»
Fala de Isaurinda.
«Obrigado, minha querida. Fico contente.»
Respondo.
«Sim, mas não te babes.»
De novo Isaurinda e vai, um sorriso doce na mão.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2021(288)
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Jorge, obrigada por este texto maravilhoso.
“Estou cansado”, dizes tu. Estamos todos, meu amigo. Cansados de assistir a este tempo de escuridão, um tempo parado, entristecido. Cansados de assistir à vida a passar em vez de a viver plenamente. Cansados de imaginar o futuro como quem observa um dia de grande tempestade que o vento vem e leva tanto do que somos consigo…
Que lindas memórias tens das mulheres da tua vida. Que maravilha partilhares connosco! Obrigada por tudo o que escreves.
Um grande abraço e que a brisa do nosso mar nunca nos falte e traga momentos felizes para todos.
Obrigado Manuela, minha Amiga. Que bom ter-te neste espaço que é de todos. É tão bom ler as tuas palavras. Fui um sortudo com as mulheres da minha vida. Abraço enorme.
Há sempre uma imagem perene nas nossas vidas: e Mãe, Senhora do Amparo, da virtude e do alento!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Sempre meu Amigo. Imagens que se prepetuam. Uma presença constante. Abraço forte.
Escrita nostálgica, de dias que parecem não ser vividos…
Um abraço, amigo.
Obrigado Sofia, minha Amiga. Estes tempos que nos cansam. Vidas adiadas. Abraço enorme.
Que bom é ler-te o que te vai na alma, a sorte que temos de esta ainda nos habitar nestes nossos corpos ainda com todas as memórias para serem contadas e lembradas…
Feliz é aquele que guarda momentos felizes de todos os que deixaram lembranças memoráveis, que riqueza guardas meu amigo… Nunca conheci avós, sei, por isso, que nunca poderei contar recordações, memórias que nunca guardarei no coração, falta-me tanto que deixo-me levar pela tua escrita, penso (…) Um dia, alguém se lembrará da minha existência. Não me alongo muito mais, até, porque fechada nada sei… Apenas sinto, e, o que sinto, é uma nostalgia que me assusta. Fica bem, vamos esperar ouvindo o cântico do tempo a passar (…) Abraço!
Obrigado Cecília. Conhecer e viver com Avós é uma dádiva. São um conforto extra. Contam-nos as estórias mais antigas. Dão-nos outra dimensão. Um suporte inestimável. Grato por tudo o que escreveste. Sabe bem ler-te. Abraço grande
Lindo. O cansaço que vivemos. O tempo que nos foge. Os afectos perdidos no tempo.
As memórias que se avivam em cada dia que passa.
As saudades da minha avó, dos meus pais, meus heróis.
Este tempo diferente de tudo, que nos corrói.
Falar com filhos e netos por vídeo chamada sabe a pouco, mas conforta.
Tanta beleza e sensibilidade em tudo o que escreve, meu amigo.
Obrigada.
Um grande abraço.
Obrigado Eulália. Belas as suas palavras. Agora restamos nós. É nosso o tal lugar na mesa. As saudades são para a vida. Grato. Abraço imenso.
Que história de vida linda, nos conta. A família. O nosso começar. O que nos ensinaram. O que retemos e nos fica na memória, para sempre.
“ Mãe lembro-me tanto de ti !
Tanta ternura, amor para sempre.
Inesquecível, o manequim que ainda hoje utiliza, para ver se o tempo passa. Que belo corpo ! Tudo lhe fica bem, se lhe soubermos moldar o tecido.
A avó, tanta sabedoria tem uma avó ! Adorei o carinho e a ternura, a sensibilidade, sempre presente em si, querido poeta, de alma cheia de avó. “ Todos os dias vives comigo.” Impossível esquecer uma avó.
Ao lê-lo, não sabe o que tem despertado em mim. Tantas saudades. Também me apetece falar de tempos antigos. Por isso me soube tão bem, ler esta encantadora crónica. Eu tal como, Isaurinda gostámos muito do que escreveu. Abraço enorme.
Obrigado Maria Luiza minha Amiga. Que bonito o seu comentário. Somos Avós e os nossos netos são a nossa alegria. Uma preocupação constante. Dar-lhes mundo. Mostrar o avesso da vida. O resto é brincadeira. Muito grato. Abraço imenso.
Sei de um homem que escrevinha o que a vida lhe ofereceu. Uma vida longa que não cabe em muitas mãos cheias de dedos.
Sei de um homem que usa cansaço nas palavras. Um cansaço tricotado pela monotonia dos dias, pela frustração que aprisiona, por um medo que se cola aos corpos e tinge de cores sombrias o pensamento.
Sei de um homem que esbanja ternura quando diz o nome da Mãe e da sábia Avó que o deixou mais só, quando partiu, aos 96 anos de idade. Uma Avó analfabeta com um imenso saber da escola da vida… Uma senhora que tudo compreendia e tanto lhe ensinou.
Sei de um homem que diz de um tempo em que não se podia dizer.
Um homem coragem, desassombro e tenacidade.
Sei de um homem que escreve com mãos de marinheiro, de viajante do vento, de guerreiro sem armadura pois a sua arma é a palavra.
Sei de um homem… a quem chamam de poeta, mestre, escrevinhador.
Apelido-o de sobrevivente com espírito de ave e com um coração capaz acarinhar memórias e dizer o nome do amor como se fosse a coisa mais natural do mundo…
Mena minha amiga que coisa bela escreveste. A minha Avó tinha a vida toda na mente e no corpo. Do que aprendemos na escola a gente esquece. Tu sabes que somos tudo o que apreendemos. Somos a vida. Tanto gostei do que disseste. Abraço imenso
Mais uma bela crónica sobre a vida adiada. Recuperável? O desespero da não finitude destes tempos. A derradeira acomodação. Até quando? Por favor,até quando? Aguentaremos? Com a morte ao nosso lado e talvez,a qualquer dia,no nosso seio.
Obrigado Isabel. Verfadetemos irrecuperáveis. Tempos que vão marcar. Coragem minha Amiga. Vamos resistir. Abraço enorme
“Este medo que visto das mais variadas cores” – Quanta beleza nas tuas palavras, querido mestre.
O manequim.
A mãe.
A avó sábia.
A rebeldia de outrora. Ter quem nos compreende e nos ensine – Um privilégio. Sentia igual com a minha mãe. Também ela “uma mulher de todos os tempos”. Raramente a via sem o seu baton vermelho . Um dos seus aliados – Sei-o hoje. Com ela aprendi o valor da Liberdade e o saber Ser livre sem ofender ninguém. Quando o receio, também me afasto. Somos parecidos nisso, também.
Curiosamente (ou talvez não) , também tenho falado com as amizades mais antigas. E com elas memórias também. Do bom e do menos bom. São delas também que somos feitos. É nelas também que projetamos o futuro.
Jorge, ao longo da crónica ias nos dizendo não saber o que nos dizer. A verdade, é que nos dizes sempre muito. Deste teu modo doce e único, vais-nos alertando para a vida. Para o “cansaço” que nela existe, mas acima de tudo, para a sua Beleza. Na forma mais pura e delicada. Sublime, sempre, querido mestre.
Abraço
Obrigado Cristina, minha Amiga. Que bom o que dizes. O batom vermelho da tua Mãe e a ânsia de liberdade. Coisas que se conquistam antes do tempo. Tão grato. Abraço imenso.