Cá continuamos
A minha rua deserta. Homens de fatos brancos, máscaras e viseira vão desinfectando alguns bairros. Passam os homens do lixo à hora marcada. Apetece-me sair e ir abraçá-los. Não posso, não devo. Já não vejo uma vizinha que trabalha num hospital há muito tempo. Já não me lembro há quanto tempo estou neste espaço. Já não olho muito lá para fora. Não vale a pena. O vazio cansa, faz mal. É um silêncio perturbador que nos invade. Até os gatos andam como que anestesiados.
De vez em quando vou apanhar sol. Os braços, a cara, a enfrentarem o astro rei. Apanhar vitamina D. Subitamente passa na rua das traseiras um carro da polícia com altifalantes no máximo a dizer às pessoas para ficarem em casa. Há quem teime em sair. Esquisita esta gente. Continuo a apanhar os meus vinte minutos de sol. Nos dias de chuva a tristeza é maior. Tudo fica mais sombrio. Também nós escurecemos por dentro. Até o sol nos faz negaças. Pois, eu sei, “abril águas mil”, mas custa, pronto.
Estamos a aprender coisas que muitos nos tinham já avisado. A importância de um SNS forte e bem apetrechado. Dar valor aos profissionais de saúde e reconhecer isso com novos meios, com a reestruturação dos serviços e reconhecer o seu valor de todas as formas que se impõem. Ter a noção que fazer da saúde um negócio não dá bons resultados.
Investir na educação. Ensinar a solidariedade e acabar com a competitividade selvagem. Aproveitar o melhor de cada um. Apreender que não é só uma boa nota a uma determinada disciplina que pode determinar a entrada em determinado curso. Há valores que nunca se devem perder. Lembro-me da palavra de honra ser um selo de contrato e um aperto de mão um negócio indestrutível. Dar outra prioridade à investigação de uma forma estruturada. Sabemos que temos bons investigadores. Vimos a sua capacidade em dar algumas respostas em poucos dias. Talvez aprendamos que temos de ter resposta nacional para determinados produtos essenciais. Pelo menos aprendemos que temos capacidade e tecnologia para isso. Não acreditemos em falsas solidariedades. A política geoestratégica está a ficar uma política do faroeste. Assistem-se a assaltos e desvios de carregamentos de material clínico. Isto apesar dos Saloons terem fechado. Só falta o tiroteio na rua. A globalização tornou-se uma má notícia. A Europa vai mostrando a sua fraqueza.
Talvez a hierarquia dos valores se modifique. Talvez sejamos capazes de aprender o valor da leitura e da escrita. Talvez algumas coisas se alterem. Mas talvez seja ainda cedo para falar do futuro próximo. Ainda não sabemos quantas voltas ao mundo este vírus vai dar. Não sabemos quantas investidas vai fazer. A cura e a vacina parecem ser uma miragem.
Sabemos pouco sobre a nossa sorte. Uma montanha russa dentro do nosso cérebro. Alguma gente incapaz que teima em não sair de cena. Ainda há quem traga para a discussão o supérfluo. Não os aturemos. É tempo de reclamar contra essas futilidades. Resistir.
A Isaurinda continua bem. Tem-se cuidado. Sabe que já não dá para regressar ao Fogo. Está sempre a dizer para me cuidar e fazer isto e aquilo. Digo-lhe sempre que sim e deixo o resto da conversa para a Isabel.
Abraços.
Jorge C Ferreira Abril/2020(247)
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Jorge C Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Parece que está tudo dito mas ainda falta muito para chegarmos à exaustão.
Há uma narrativa implícita para contar, proximamente será feito o balanço da tragédia; depois vem a crise de novas ideias, os atropelos do chega-à-frente com planos para o futuro que nunca teremos, um hipotético mundo novo que sempre viveu na mente de quem sente que o Sonho Comanda a Vida.
Não digo muito, mas é o que sinto!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Sim, meu amigo, vamos ter de estar atentos à crise que aí vem e a tudo o que vai aparecer. Mas primeiro Resistir. Abraço
Hoje podia chamar-lhe “Crónica de um confinamento”.
E há confinamentos que são mesmo isolamento.
Mas sabes, não me sinto só.
Tenho é muitas saudades de dar um abraço à minha filha e de ver o Mar.
Mas espero poder vê-lo daqui a algum tempo e, até lá, resistir, como dizes.
Fico contente por saber que a Isaurinda está bem.
Tal como ela, temos todos de nos cuidar.
E esperemos que Abril nos traga muitos dias de Sol.
Obrigado Maria. Os filhos, no meu caso o neto. Tanta coisa que nos faz falta. Temos de ser fortes. Grande abraço.
Como nos vamos ver livres disto? Perdemos muito. Temos que pensar no que ganhamos. Há quem escreva diários. O SNS feito de profissionais exemplares, de rostos marcados lutam no mínimo doze horas. Aproveitemos os momentos que vamos descobrindo. Os teus vinte minutos de sol dão prazer. O 25 de Abril será diferente, mas juntos pelos afectos, como aqui todas as semanas vamos conseguir não ensandecer. A Isaurinda é tão linda. Abraço grande, amigo Jorge.
Obrigado Regina. Sim, temos de ver o algo positivo que depende do fim disto. Vamos acreditat que vamos mudar para melhor. Abraço
Querido Jorge, pelo título desta crónica, já se calcula que abordarias este período da vida, perturbada por uma “nanoorganismo” que caiu sobre o mundo. . E contas tão bem o que pensas sobre as consequências nefastas sobre as pessoas, e como sentes essas consequências que eu e muitos outros subscreveriam o teu texto. Repetiríamos o que escreves, mas não há tua maneira, sempre mágica, que mais depressa chega ao nosso entendimento. Tens razão querido amigo, talvez ,ou com certeza, o mundo vai mudar. Há muito ainda para aprendermos, para lermos, para SERMOS. Obrigada querido Jorge. Beijinhos e este teu texto é para reflectirmos e voltarmos a pensar. Obrigada. Amigo.
Obrigado ivone, minha querida amiga/irmã. Sempre tão generosa. Um brilhante comentário como sempre. Abraço
Como é bom lê-lo meu amigo. A humanidade, a verdade , em casa frase. A emoção que transmite desta forma única.
Obrigada por resistir.
Um abraço
Obrigado Eulália. Tão bom o que diz. Vamos resistir. Abraço
Tanto de lúcida, como de terna, esta bela crónica. Focas pontos muito importantes. como sempre, aliás.
Temos, de facto, tido um Abril molhado, lá diz o ditado, é verdade e sabemos que faz falta e depois, mesmo quando não temos a radiosa Luz do nosso astro rei, temos dias assim, como está hoje, vai chovendo e vai dando umas “abertas” como agora, enquanto te leio. Aproveitemos estas pequenas grandes Bençãos , querido Jorge.
As ultimas palavras são de uma ternura imensa. Sabes como a tua escrita me emociona.
Abraços
Obrigado Cristina. Que bonito o teu comentário. Sabe tão bem. Vamos resistir. Abraço