Crónica de Jorge C Ferreira
As vidas abandonadas
As vidas abandonadas. As ruas sem ninguém. Ruas de bairros onde, antigamente, se passeava a pobreza. Uma tasca, agora entaipada, umas cartas sujas de tanto usadas e as mesas de pedra. Um lápis na orelha e um papel com borrifos de vinho do lote onde se marcavam os resultados da jogatana. Mais uma rodada, pago eu. O vinho do ditador.
O tal que dizia: “Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses.”
Os copos grossos. Copos de dois e de três. A serradura no chão. Um papagaio que palrava muito asneiredo. O vinho a escorrer pela goela e um estalo com a língua no palato. A linguagem da sueca. Os sinais entre os parceiros. O tempo a tardar. Uma bucha para ensopar. As mulheres em casa. A janta a ganhar corpo. O avental e as mãos de anjo que todas as mulheres têm. O jogo, na cova funda do galego, quase a terminar. A última rodada. A patroa à espera.
Um tempo onde tudo era perto. Tudo tinha uma dimensão quase familiar. Os vizinhos conheciam-se todos. As portas abertas onde se batia e se entrava. Todos sabiam de todos. Uma solidariedade que sabia bem. Era a altura dos quartos alugados, das partes de casas, de famílias alargadas numa casa. As mesas cheias às refeições e a inexistência de televisão.
Os velhos pátios. Vilas dentro da cidade. Os santos populares e a sardinha assada. O toca-discos e o bailarico. Os corpos a colarem-se e os namoros a crescerem no cravo de um manjerico. Aproveitar a distracção dos mais velhos. Uma tia encalhada que também experimenta uns passos de dança com um sobrinho. Os mais pequenos a pedirem um tostãozinho. O trono do santo e as velas. Os balões iluminados. A música que não pára.
No dia seguinte depois da lavagem nos tanques de pedra, a roupa estendida. As ceroulas e as cuecas de pano branco. Cuecas grandes e de perna comprida. Todo o chão limpo e arrumado. Um fulano maldisposto diz: «Isto foi coisa que comi.» Do vinho emborcado nunca ninguém se queixava. Sobrava sempre qualquer coisa para fazer as lancheiras para o marido. Lá estavam as mulheres no seu trabalho madrugador. O homem entregava a féria em casa, a mulher governava a casa.
Nem tudo funcionava bem. Havia homens a quem o vinho não caía bem. Era a mulher que sofria. Ninguém falava de violência doméstica. Havia o terrível ditado: “entre marido e mulher, não metas a colher.” A justiça defendia os homens. Depois de casados os homens eram considerados quase donos das mulheres. Para tudo as mulheres tinham de pedir licença ao marido. A igreja ajudava. Gostava de ouvir determinadas confissões.
As mulheres sempre heroínas. As mãos doces a acariciarem os filhos. Mulheres de um tempo terrível. De um tempo em que era proibido a mulher manifestar o seu prazer. Os filhos que iam chegando. A mesa já sem lugares vagos. A féria que não aumentava. A ginástica cada vez maior para alimentar toda a gente. O livro de fiados do merceeiro. Livro que não era mais que a conta ordenado de hoje. Queremos isto?
«Olha o que foste buscar! Tempos muito difíceis. Eu não quero.»
Fala de Isaurinda.
«Nem eu. O que percorremos em tão poucos anos. Não voltaremos atrás.»
Respondo.
«Mas olha que há para aí meninos que querem isso de novo. Temos de estar com atenção.»
De novo Isaurinda e vai, na mão fechada toda a força da mulher.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2020(239)
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.
Memórias vivas de um passado que ainda alguns de nós recordam, outros já esqueceram.
e outros não viveram.
Há saudosistas que valorizam o bom que viveram ignorando os que nada tinham e minimizando os malefícios terríveis de um tempo de guerra e ditadura.
É importante separar águas e perceber de que lado se está. Temos que estar atentos a populismos, oportunismos e saudosismos bacocos.
Obrigada pelo texto!
Marcando presença ainda que um pouco atrasada.
Nem sempre podemos comentar o que a alma sente e consente,temos de nos render às evidências podemos sempre magoar alguém,as que sofreram e continuam no seu silêncio,os que assistiram e calam por respeito. A vida tem as suas histórias,contadas no presente com capa de passado. Infelizmente pouco mudou,as noticias são assustadoras,sempre aconteceu,agora dão-lhes noticia de primeira página,até horário nobre,sentem-se heróis,continuam impunes.Dentro de quatro paredes o inferno arde,as chamas e as lágrimas não conseguem apagar a dor. Haverá uma ou um sobrevivente,que cruz carregará até ao fim dos seus dias…Os jovens parecem gostar,voltam a escrever páginas negras,marcas de outros tempos avançam num regresso vertiginoso. Tenho medo! Não por mim,mas de que os meus olhos possam ver,há clarões,há resíduos escuros e nublados,há contrastes inesquecíveis . Obrigada,querido Jorge por mais um texto tão vergonhosamente actual. Abraço!
Obrigado Cristina. Não iremos deixar. Estaremos aqui para lhes fazer frente. Abraço
Regresso às memórias. Na cidade ou na província eram estes os hábitos de tempos difíceis.
Não podemos permitir que continue a haver opressão e violência doméstica.
Obrigada, meu amigo, pela forma como defende a força da mulher.
Um aabraço.
Obrigado Eulália. As mulheres que fizeram de mim o que sou. Aprender com toda a gente. Abraço.
Não voltaremos atrás. Não!!!
A cantiga ainda será sempre uma arma e há estados que nunca mais.
A memória é coletiva e não se perde enquanto houver alguém que o lembre é alguém… Alguém que diz não!
Boa semana. Beijinhos 😘
Obrigado, Isabel. Nunca mais. Muita luta ainda a travar. Iremos vencer. Abraço.
Sem concordar e ceder para continuar a viver. As vidas abandonadas. Sente-se o texto, no seu todo. Foi assim e ninguém quer voltar a sobreviver. Insandeceu quem diz que aqueles tempos é eram de valor. Sei que nunca vais desistir de nos dizer “Não voltaremos atrás”. Estarei sempre desse lado. Abraço Jorge.
Obrigado Regina. Que bom estares deste lado da barricada. Sabes que podes contar comigo. Estarei aí enquanto puder. Abraço.
Perfeito! Tudo o que não queremos mais nas nossas vidas.. Tempos de ditadura, submissão, atraso económico. Trabalhámos para poder desfrutar a vida com alegria e liberdade. Cada vez mais a palavra de ordem é – lutar contra todas as formas de opressão. internas e externas e manter-mo-nos vigilantes. Bem haja!
Obrigado Ana Bela. Nunca deixar que nos calcem. Continuar a lutar sempre. Abraço
Uma pintura em palavras. Lemos e e estamos no cenário que descreves. Hoje são vidas abandonadas, onde, em tempos atrasados. entre todos havia o convívio familiar de lugares pequenos. Uma vida difícil. As mulheres a cuidarem das casas, homem e filhos. E tens razão quando escreves como eram vidas difíceis. Com as ” jogatanas,”, o vinho ( o tal que dava de comer a um milhão de portugueses), segundo um fascista que (des)governava o país,,, alguns homens chegavam a casa e descarregavam nas mulheres e filhos o seu mau perder. Elas eram, de facto, ” as santas do lar “. Não transformavam o pão em rosas, mas transformavam o que podiam e era barato, em pão e uma concha de sopa com que alimentavam a família. Tem razão a Isaurinda e tu. Tempos difíceis contra os quais lutámos. Com Abril , ganhámos tempos novos que não voltarão para trás. Aqui estamos para não deixar. Gostei muito, meu Amigo/ Irmão.
Obrigado Ivone. Demos um grande salto com Abril, mais ainda há muito por fazer. Tu sabes que iremos descer aquela avenida. Abraço
“Temos de estar com atenção”- A Isaurinda tem toda a razão. É fascinante a forma como nos alertas para uma realidade que se está a tornar cada vez mais perigosa. “Não voltaremos atrás”. Obrigada por não te calares. Bem hajas