Crónica de Jorge C Ferreira | As nuvens

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira | As nuvens

 

As nuvens amordaçadas. Não sei se alguém as vai estrangular. Não sei se alguém as vai abafar. Um cansaço que cresce neste tempo de céu empoeirado e mar indomável. Um desgosto que não se cala e não nos deixa respirar. Um amor a crescer nas veias de um corpo desesperado. Muita gente a reclamar um beijo, só um beijo, apenas um beijo. A carícia que não chega. O tempo da solidão toda. O tempo da dor inteira.

A notícia que não chega. A ausência total de vozes. Um vazio que enerva. Gente acorrentada. Os corpos a emagrecerem de saudades. Marcas que se vão acumulando na pele que vai envelhecendo. Corpos de quarto minguante. Corpos quase lua nova. Quartos escuros de um viver atribulado. Corpos prenhes de desesperança. Corpos de desnascer.

E as nuvens?

Quem diz que as sabe ler vai fazendo difíceis exercícios. Assim vai tentando convencer os outros dos seus mágicos poderes. Diz que podia tirar as mordaças que calam as nuvens. Seria, no entanto, perigoso. O que elas têm para gritar iria por o mundo ainda pior. Há, naquela mesa, onde acontecem coisas estranhas, quem esteja disposto a arriscar. «Temos de ouvir o que há para ouvir,»

diz alguém que quer demonstrar ter a coragem de saber a verdade toda. Mais ninguém está interessado em aventurar-se. Discussão terminada. A mesa treme desesperada. Ninguém entende aquele sinal. Todos abandonam a mesa.

Quando as mulheres vestem os seus xailes negros e cantam uma cantiga sofrida, há quem chore. Uma emoção que nos faz embarcar em viagens vertiginosas. O choro do eternamente perdido. O choro de uma vida esgotada. As franjas do xaile entrelaçadas nos dedos. Os dedos a vestirem os nervos que fazem desabar as lágrimas. O drama ensopado de vinho cor de sangue. Há cada vez mais mulheres vestidas de negro. Há cada vez mais sangue a derramar-se sobre as saudades.

E as nuvens?

As nuvens são agora apenas um nada absoluto. Algo que desapareceu num momento obscuro. Uma viagem que desconhecemos. Um viver contrariado. Um momento sem sentido. A absoluta e desastrada ignorância. Isto de acordar com nuvens no pensamento deve ser coisa que não é saudável. A mesa que tremeu está agora calma. Não deve haver novidades escondidas. Ninguém quer falar com ninguém. Todos olham para o céu esperando a primeira nuvem como se fosse o anúncio do nunca esperado.

Há uma pedra que foi tecto e agora é banco. Local que alguém escolheu para escrever o testamento do que não tem e uma carta de despedida para quem desconhece. Naquele banco improvisado encontrou a vontade de amar e ser amado. Uma alma gémea despontou do nada. O primeiro beijo soube a tudo. Depressa foram só um. Um amor entre vidas destroçadas. A vida a fazer-se sentir. O impossível a acontecer. Uma nuvem a fazer de tecto da pedra agora banco. Escurece. O medo desaparece.

«De onde vieste meu amor?»

Pergunta um fio de voz.

«Não sei e tu nunca o saberás.»

Foi a última resposta.

O escuro acentua-se num estremecer ensurdecedor.

«Tu não andas bem. Mesmo nada bem.»

Fala de Isaurinda.

«Estou apenas algo preocupado com tudo o que nos rodeia. Nada mais.»

Respondo.

«Também eu e muita gente. Mas escusas de atormentar as pessoas.»

De novo Isaurinda e vai, zangada com o mundo.

Jorge C Ferreira Novembro/2023(413)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | As nuvens”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    As suas palavras, são a imagem viva do mundo em que vivemos. Tantos receios e tribulações. Que a paz se instale no coração dos homens. Como seria bom se todos falassem de amor. Não andávamos com “ nuvens no pensamento.” Nem tantos pediam “ um beijo enquanto não chegava a carícia.” Maravilhoso este seu olhar, pelo horror do momento, só mesmo coisas de um homem bom, meu poeta. Tão sentido, o pequenino diálogo com que termina a sua Crónica. Eu gostei tanto, “De onde vieste meu amor.” Tanta sensibilidade. Eu adorei, vou ler e reler. Abraço enorme e bem haja.

    1. Eulália Coutinho Pereira

      Comovente reflexão. Também eu me sinto zangada com o mundo. A humanidade está doente.
      As nuvens que pairam sobre nós, dissipam o arco íris. Tempestade que chega a todos.
      Terramoto sem fim à vista.
      Viagem com fim desconhecido.
      Liberdade. Paz.
      Resta a esperança tênue de que o amor possa salvar o mundo.
      Obrigada Amigo, pela escrita única, pela reflexão e por estar desse lado.
      Um abraço.

      1. Jorge C Ferreira

        Obrigado Eulália. Que bom comentário. Vamos acreditar que vamos vencer. Que veremos chegar a paz cavalgando uma nuvem. É sempre bom ler os seus comentários. A minhas gratidão. Abraço grande

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, que belo o seu comentário. Sempre generosa. Buscar o amor para vencer o inexplicável horror, a falta de sentido do que vemos acontecer. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  2. Filomena Geraldes

    não é culpa das nuvens,.certamente.
    elas andam no seu passo ora lento, ora apressado, levadas pelo sopro do vento,
    pela geografia das marés ou pela
    respiração palpitante do lugar
    onde rebentam as ondas.
    não.e a culpa também não é das mesas
    que se não lamentam nem respondem às. queixosas
    perguntas das mulheres de
    negros xailes
    enrolados na ponta dos dedos.

    a culpa é de quem se. equivoca
    dos que viram o mundo do avesso
    dos que estão cegos por poder
    e desconhecem a praga da dor.

    tenho por hábito ouvir a voz do corpo
    os presságios que me dita o coração
    a legitimidade dos sonhos e de quem
    escreve poemas
    se bem me lembre, nunca a paz
    ocupou a inteireza do mundo.
    antes pelo contrário.
    açoitou as homens
    humilhou os deuses
    e desafiou as leis do
    universo.

    agora que o tempo escassa
    os beijos se esqueceram de existir
    as almas foram arrancadas sem piedade
    e a tragédia é aquilo que se sente
    o escrevinhador registou a urgência
    do amor
    a solidão que não resiste à moldura
    do tempo.
    a vizinhança dos receios.
    o esboço,.o esquisso,.o rascunho
    dos que se abeiram das memórias
    para predestinar o enigmático futuro.

    será que também lê nas estrelas
    como faziam os antigos navegantes?
    oxalá que sim.
    perto está o porto seguro.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, que te dizer mais, sobre este belo poema. Desde os dedos enrolados nos xailes à leitura das estrelas. O navegar e a aventura dos navegadores. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  3. Isabel Soares

    Uma crónica sobre um tempo visto como atemorizador. Um tempo de desespero pelo abandono e violência a seres humanos. Simplesmente homens que existem, tal como o autor, e à sua imagem, os vê na ambição ( legitimidade) de “apenas” amor. Afecto. Segurança. Direito à identidade num espaço que a configura.
    Sentindo o “conteúdo” deste momento, já eterno, internalizado visceralmente, transporta essas emoções num texto de raiva doce. O corpo imóvel num pensamento acerelado direcionado para o outro; recorrendo à sua estrutura defensiva, onde sublimando (só assim, agora, possível) nas palavras, verbaliza o horror, suavemente, numa impotência aparente. O outro(s) em si coexiste eticamente. E sentindo a dor de um sofrimento atroz na antecipação (consentida no passado registado) do fim, de amputações físicas, psicológicas e espaciais alheias expressa, numa perspectiva interna e simbólica o turbilhão vivido.
    Naturalmente um escrito de “cansaço”, de dificuldade reclamante. .O outro é pessoa. O outro sou eu. É o autor. Despido, inseguro, em desespero. O grito silencioso na compensação pessoal encaminha-o para sentimentos espelhados, situações como fenómeno imaginadamente (?!) descritas. O silêncio. O vazio. A desesperança. O esvaziar do humano (pelo humano) nos corpos que acabam devagar, num continum de “solidão” e dor.
    Um elemento natural, as nuvens, simboliza, entre várias coisas, a vigilância aprisionada, diria de fúria, disfarçada de uma existência suspensa. Espelho das vidas de carne esventrada. De corpos aniquilados. De afectos irresgatáveis- Embora aponte um momento mágico de retorno; última possibilidade, antes do fim, o nada, a um afecto que emerge no acaso (nos escombros): o enlace de dois seres e tudo a acontecer ali num espaço de amor protector. A armadura encontrada a que os destroços e a natureza se aliaram. E o sentido (tão do autor) da vida a emergir inesperadamente. Um momento/acontecimento divorciado do espaço do horror. A beleza súbita. Mas termina. Ambos sabiam. “seguiram” agora acompanhados. Boia para um poeta em “sangue”.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel, pelo belíssimo comentário como sempre, pela capacidade criativa de me ler, pela sua generosidade. As guerras sem fim. Vamos acreditar que a força do amor é capaz de vencer a ignomía. Que os beijos lançam flores que nos trazem novos dias. A minha gratidão pela sua constante presença.
      Abraço grande

  4. Maria Matos

    Maria Matos
    7 Novembro 2023 , 8.23.
    Que mágica está crónica…Nuvens, a mim evocam sonhos, em criança adorava vê-las a correr o céu, que sempre me fascinou! As brancas de algodão eram o meu encanto! Adorava aqueles farrapos…
    E gosto delas! As negras fazem-nos lembrar tempestades, mas quando se vão embora…. aparece um céu azul brilhando! Que maravilha… é do que precisamos agora!
    Encantei-me com a sua crónica, Jorge!
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Matos. Mágico também o seu comentário. Mágicas também eram as nuvens que eu aprendi a ver e a decifrar deitado no estrado do telhado do quinto andar do prédio onde nasci, no centro de Lisboa. Muito grato pela sua presença neste nosso espaço. Abraço grande.

  5. maria fernanda morais aires gonçalves

    Onde reside a magia? Num céu coberto de nuvens brancas de algodão? Ou num lindo dia de céu azul? E se o céu estiver com nuvens e te oferecer um poderoso arco íris colorido?
    ” De onde vieste, meu amor ?” É aqui que o teu texto se torna Belo .
    Dizia Vinicius de Moraes num Poema
    Tomara
    Que você volte depressa
    Que você não se despeça
    Nunca mais do meu carinho
    E chore, se arrependa,
    E pense muito Que é melhor se sofrer junto Que viver feliz sozinho…
    Amor e uma cabana amigo? Ou um Telhado num terraço a ver as nuvens ou o céu?
    Uma boa companhia de preferência….
    Uma nuvem passageira!
    Um abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Que belo o que escreveste. De onde vieste minha querida? Vi a magia da minha juventude no que escreveste. A minha enorme gratidão. Abraço grande

  6. Claudina Silva

    Amei o texto! As nuvens que pairam sobre nós deixaram o seu aspecto de algodão em que nos apetecia sobrevoar o Mundo para se vestirem de uma cor cinzenta e tristonha! Vamos ter Fé e acreditar que em breve o Sol vai conseguir iluminar esta escuridão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina. Vamos pintar as nuvens das cores do arco iris. Vamos inventar as cores que sejam capazes de acabar com as guerras. Muito grato pela amizade da tua constante presença. Abraço muito Amigo.

  7. Clara Figueiredo

    Andamos todos doentes, amigo Poeta.
    Todos doentes da alma, de saudades do amor que se foi e não volta. Todos doentes de saudades, com vontade de cruzar no peito, o xaile preto… já sem vontade de rezar a deuses e homens.
    Mas, a Isaurinda tem razão… não podemos aumentar a nossa inquietação…espalhá -la e torná-la imensa, perdida na loucura da humanidade.
    Abraço grande e obrigada por esta maravilhosa crónica, onde me vi em cada linha.
    Vamos soprar as nuvens e sonhar ainda com a carícia do sol… até que dê!
    M. Clara

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Clara. Excelente o seu comentário. Um poema que é tão gratificante ler e reler. Vamos ter esperança e fazer com que as nuvens nos levem no caminho da paz. A minha enorme gratidão, pela sua constante presença. Abraço enorme.

  8. Anabela Tolda

    Adorei. Por incrível que pareça gosto das nuvens. Lindo texto.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Anabela. Também eu gosto das nuvens. Do seu deambular. Muito grato pela sua presença neste espaço. Abraço grande

  9. Margarida Pires

    Crónica de Jorge C Ferreira de 06-11-2023
    “As nuvens”
    Bela crónica! Ao longo da nossa vida, sobre a nossa cabeça, ora pairam nuvens negras , ora fiapos de nuvens brancas enquadradas num céu azul ou por vezes um límpido céu de um azul cobalto que nos estonteia. A cada situação há que saber responder com confiança. Tenho fé que o negro céu que hoje anuncia guerras e mortes, irá dar lugar um dia a um límpido azul anunciado a paz. E isso irá ser obtido com amor e bom sendo entre os povos. Serei lunática? Crédula? Ingénua? Sou sobretudo uma mulher de fé que acredita no amor!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Margarida. Que comentário tão especial. Um comentário de esperança. As multifacedas faces das nuvens. É sempre gratificante ler o que escreve. É uma pessoa generosa. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  10. Branca Maria Ruas

    Faltam-me palavras para comentar o que escreveste e o que me fizeste sentir.
    Falta-me a magia para afastar todas as nuvens e encontrar um azul que cobrisse o mundo inteiro e nos invadisse de PAZ!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. São sempre belas as tuas palavras. Vamos fazer das nuvens a nossa maneira de chegar à paz. És muito generosa. A minha gratidão pela tua presença neste espaço. Abraço forte

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