Apenas garotos
por Jorge C Ferreira
Usávamos pulseiras de prata com o nome gravado numa placa. Na parte de trás o nome da namorada. Tínhamos anéis iguais e grossos. Éramos uns garotos. Na altura não se usavam piercings e as tatuagens só eram visíveis nos que vinham da guerra, muito artesanais e consideradas de muito mau gosto. Muitos não compreendiam as condições em que aqueles homens deixaram marcar o corpo. Por vezes um sofrimento atroz. O amor de Mãe era o último refúgio. Quantos se suicidaram antes de fazerem a tatuagem? Será que se tivessem tatuado a carne teriam resistido àquele fim ao olhar para o nome Mãe escrito no braço?
A guerra foi uma coisa marcante na minha geração. Muitos tiveram a sorte de não a fazer. Outros ficaram lá ou regressaram em caixotes de pinho. Alguns voltaram com marcas que ainda hoje carregam. Outros fugiram para o estrangeiro. Assim víamos que se iam desbaratando os grupos de Amigos. Entretanto chegavam e partiam aerogramas com saudades e lágrimas. Histórias de vida eram feitas e desfeitas. Muita lealdade ruía. A distância é tramada. Foi tempo dos casamentos por procuração. Assim apareceram muitas mulheres que não chegaram a ver os maridos depois de casadas. Mães e Pais que nunca tiraram o luto até ao fim da vida. Pesados carregos.
Por cá, enquanto não chegava a nossa altura de sermos chamados para o serviço militar obrigatório, vivíamos sob a impiedosa ditadura, íamos ao cinema ver os filmes censurados por gente estúpida. Íamos, ao fim de semana, às matinés com as amigas ou namoradas. Muitas vezes em grupo e depois lanchar. Era um tempo de risos, sorrisos e cumplicidades. Algum nervoso e uma vontade imensa de ultrapassar todas as inibições. Olhares que eram noites sonhadas e impossíveis. Uma mão que se dava a outra mão e um tremendo alvoroço no corpo inteiro. Tremores e ternuras. Tínhamos de respeitar horários e tudo era cumprido com rigor. Queríamos e esperávamos pelo próximo fim de semana. Pelo escuro do cinema.
Eram raras as escolas mistas. Rapazes e raparigas tinham escolas diferentes, ou horários diferentes nas mesmas escolas. Ir ver a saída das meninas numa escola feminina era um exercício regular. Muitos namoros começaram nessas romagens. Era como nos rebelarmos contra o sistema. Porque nunca nos deixavam estar juntos de forma livre. Estaríamos de forma clandestina. Furando todas as regras. Estava na hora de sermos rebeldes.
As noites, até determinada idade, eram só masculinas. As conversas e os sonhos levavam-nos muito longe. Até a situações que nunca atingimos.
Entretanto aconteciam festas organizadas em casa de uns e de outros e os bailes com tempo para os slows que dançávamos parados e muito agarrados. As festas de garagem e os conjuntos que começavam a pulular.
Não podemos esquecer os bailes das sociedades recreativas. O tal de levar as senhoras ao buffet. As raparigas sentadas com as tias, as mães ou avós a guardarem-nas sentadas de um lado, os rapazes do outro. Quando a música se iniciava a corrida e a pergunta sacramental: a menina dança? Por vezes uma tampa e o regressar, um pouco corado, ao lugar de partida. Estes eram outros lugares. Outros viveres. Eram os bairros e a gente de lá e os de fora. Algumas rivalidades. Os terrenos eram marcados.
Ainda não tinham aparecido as boîtes e ainda não era o nosso tempo de as frequentar. Um dia falarei sobre esse outro tempo.
«Tu e as tuas coisas. Sempre a inventar. Não te cansas!»
Fala de Isaurinda.
«Temos de percorrer o nosso passado para nos revermos hoje.»
Respondo.
«Pois, nessa altura não te conhecia. Mas devias ser um bom pilantra.»
De novo Isaurinda e vai, uma gargalhada na mão direita.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2022(338)
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As memórias que se guardam, as vivências inesquecíveis, tanto e muito para partilhar.
É meu privilégio ler e aprender uma outra época só por diferença de lugar, até mesmo por ter acontecido na grande cidade…
Como sempre me agrada passear pelas ruas e cheiros dessas lembranças tuas meu amigo. Um super abraço!
Pois eram, esses, os Tempos de então. As minha duas Irmãs frequentaram o Liceu , onde havia, por cada ano, uma ” turma ” que tinha 10 raparigas.( o meu Pai era pela co–
–educação ). No ano de 1949 o Liceu deixou de ter essas turmas e eu fui para o Liceu Feminino. Sempre convivemos muito com rapazes, porque nas nossas amizades, havia os da vizinhança e filhos da amizades dos meus Pais. Mas eram rapazes muito ” certinhos “, Gostei do teu texto, como sempre. E, como diz a Isaurinda, devias ser um ” bom pilantra “.
Beijinhos meu amigo/ irmão.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Os nossos tempos. Tantos sonhos. Tudo vimos passar por nós. Fomos parte de muita mudança. Beijinho
Sempre as memórias, a nostalgia…
Tempos em que se olhava para diante com esperança de que fosse sempre a melhorar. Agora, chega-se a recear olhar para o futuro por este parecer um buraco negro.
Um abraço.
Obrigado Sofia. Sim temos estado a passar tempos terríveis. Problemas que se vão sobrepondo. Provações que temos re superar. Sabes, com a minha idade é um tempo perdido. Abraço.
Que bela viagem no tempo. A nossa geração tal como a descreve. Memórias tão presentes de um tempo tão distante.
Também eu tive uma pulseira de chapa gravada e uma aliança larga de prata.
Os bailes e matinés na sociedade recreativa. Rapazes de um lado, raparigas do outro. Os bailes de garagem.
A guerra do ultramar ensombrava o país. Vivi-a como namorada. Muitas cartas e aerogramas. Muita ansiedade. Hoje recordamos esses tempos com a cumplicidade de tantos anos de vida conjunta.
Obrigada, amigo, por esta partilha de vivências e e emoções.
Um grande abraço.
Obrigado Eulália. Tempos que vivemos e fomos superando à nossa maneira. A cumplicidade é a arma mais poderosa para a harmonia. Abraço grande
Fiel às suas memórias, continua a deliciar-nos com as suas histórias verdadeiras, que tão bem sabe contar.
São viagens ao passado, momentos de uma de uma juventude bem vivida.
Boas recordações que ficam, que ajudam a viver nos dias de hoje.
Adoro ler memórias, creio que vou continuar a ler as suas, coisas para lembrar que sabem bem e que aguardo com prazer.
Adorei, querido escritor. Grata, sempre.
Obrigado Maria Luiza. São passagens de uma vida que tentei viver. Viver quase nos limites que nos eram permitido. Foram alegrias, tristezas e aventuras. A gratidão é minha por ter uma leitora como a Maria Luiza. Abraço grande
” As memórias nos tornam quem somos. São elas que nos ajudam a compreender o mundo e moldam a nossa visão. São aquilo que nós lembramos e aquilo que queremos esquecer” afirma a neurologista e poeta, Ângela Wyse.
São as memórias que nos definem como seres únicos e diferenciados. São elas que nos segredam sobre
os retratos que resistiram à moldura dos tempos, as missivas que nunca chegámos a rasgar, os momentos que apelidámos de paisagens, os rostos com que acordámos os sonhos e as saudades daqueles
que sobreviveram à travessia dos desertos.
O senhor das crónicas, dos relatos
e das estórias alinhavadas a fio
de ouro continua, de bom grado, a fazer-nos acompanhar as incursões pela sua juventude.
Seguimos os seus passos. Amiúde. Imagens. Flashes. Breves diálogos. Momentos. Desafios. Curtas metragens. Sombras inquietas. Livros abertos.
A ele devemos e estamos gratos por esta inacabada ” Visita ao País das Memórias”.
Aguardamos ansiosamente o próximo capítulo.
Obrigado Mena, tanto. É sempre muito bom ler-te. Trazes a tua visão do mundo. Ofereces o que pensas. Vou tentar nunca te desiludir. A minha gratidão. Abraço grande
Fizeste-me uma vez mais regressar aos meus tempos dos teus tempos. Momentos onde as cores dos olhares teciam sonhos urgentes, e os complexos modos de comunicação tinha bases inéditas de convívios … entre outros encontros secretos, quantas vezes ditos amorosos para enganar olhares perigosos.
A história ia ganhando evoluções e hoje apesar das conquistas da liberdade, variados movimentos tecem cenas num domínio de interesses duros.
Tempos que ainda vivemos e nascemos. Mas não muito longe de guerras de totalitarismos e poderes marcantes, que fazem nascer bebés em “bunkers”, que emotivamente gritarão – Nem um nascimento calmo tive.
Abraço estimado amigo, e que a tua caneta continue bem vitaminada de traços bem apelativos!
Obrigado José Luís. Vimos e ajudámos a fazer muita coisa. Foi uma vertigem e uma aventura todo este viver. Ousar ser rebelde e querer mudar o mundo. Foi todo um caminho. Abraço grande
A menina dança? Ela, hesitante, disse-me que sim. Depois de alguns passes no “balho” pediu-me que a levasse a sentar. Não percebi bem porquê, mas cedi.
Aconteceu há muitos anos em Moncarapacho!
Eu não era conhecido na terra e as miúdas tinham receio de dançar com desconhecidos sem saberem que acertavam o passo!
E lá fiquei sozinho!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. As tampas e as meias tampas. Os bailes. Dança a próxima música? Todas as aventuras de um tempo único. Grande abraço.
Um pilantra que nos fascina com as suas histórias tão reais. Não sendo da mesma geração , é com grande ternura que recordo algumas vivências minhas e outras de amigos e familiares.
Uma escrita que nos transporta para outras vidas de uma forma muito singular.
Abraço de muita ternura, querido poeta.
Obrigado Cristina. Foram os meus tempos. As memórias que nos ficam. São ofertas minhas. As euforias e as dores. Abraço terno
É inevitável agradecer-te esta crónica. O turbilhão que se vive neste mundo não nos permite viver. Lembrar o despertar para a adolescência é fantástico. As ternuras que causavam sensações algumas ainda desconhecidas. Despir a pele de meninos e vestir a de adolescente nem sempre era confortável. Descobrir em cada dia o que nos rodeava. Apetece-me dizer que o pior estava pot chegar. Ficar adulto. Uma vez mais a Isaurinda salvou-me de pensamentos. Pilantra, uma meiguice da tua linda “Amiga”. Abraço meu Amigo.
Obrigado Regina. A minha mania de contrariar a tristeza. Ver o vivido e o que vimos acontecer. Os últimos anos têm sido terríveis. O tal Love not War volta a fazer sentido, infelizmente. Abraço grande