Ano Novo
por Jorge C Ferreira
É apenas uma noite apontada no calendário. Mais um dia que brota da madrugada. Mas quem construiu este calendário assim o decidiu. Uma volta ao sol e mais um ano. Lembro-me dos calendários pendurados nas casas. Os dias riscados, os meses rasgados quando acabavam. Sempre tive pena de fevereiro, sempre o vi como um filho enjeitado. Os calendários de casa e os dos camionistas de longo curso, das garagens, os calendários famosos inundados de beldades. Esse tempo em que os mecânicos se apresentavam com um desperdício na mão e cigarro ao canto da boca.
Os últimos dois anos foram horríveis. Esta ano não vai começar melhor. Continuamos sob a ditadura de um vírus, que se instalou, vai mudando de cara, vai exigindo novas formas de combate. Um ser danado que nos entra em casa e se instala sem pedir licença. Apareceram as vacinas e vamos combatendo. O corpo inundado de corpos estranhos para o combate. As doses necessárias vão aumentando. Nós vamos cumprindo. Precisamos da cura. De novos medicamentos. De novas respostas. Estamos a viver um tempo sem vida.
A Isabel faz muito tempo que me diz: Ainda vamos viver uma guerra. Quando falava de uma guerra falava de uma coisa planetária e não localizada. Porque dessas guerras nunca saímos. Apareceu isto. Isto não é nenhuma guerra, nunca se esqueçam. É uma luta contra o desconhecido. Um caso de saúde pública. Uma luta por vezes inglória. Tanta morte. Tanta gente diminuída. Tanta gente com problemas mentais. Tanta gente sem trabalho. Na verdade, não é uma guerra, mais cheira a guerra.
Quando vejo na televisão as bichas para a vacinação, para os testes rápidos. Quando vejo as esperas nas urgências dos hospitais, as bichas dos sem abrigo para uma refeição. Quando vejo tudo isto e limpo as mágoas que me assaltam. Quando o meu sentimento de impotência me cresce no corpo. Quando a vida se torna uma doença incurável. Então lembro-me da minha Avó Ana me contar a odisseia das bichas para o racionamento, das senhas para o mínimo para sobreviver, dos simulacros dos palhaços da legião. Tudo isto ela me contava na sua voz quase calada. Nunca a ouvi dar um grito ou fazer uma cara de zangada. Quando achava que algo não estava bem chamava as pessoas e dizia com a suavidade de sempre o que tinha a dizer. Tudo acabava num beijo sentido. Na ternura imensa das suas mãos.
Tenho a imensa falha de a minha Avó nunca me ter falado muito da pneumónica. Sei que ela tinha perdido a audição com o tifo. Contou-me muitas coisas que guardo num baú especial que vive em mim juntamente com ela. Foi sempre o meu porto de abrigo. A mulher mais especial que conheci. O meu maior aconchego. Hoje tenho pena de não ter falado mais com ela. Seria uma conversa para a vida inteira. Uma conversa que por vezes continuamos.
A verdade é que estamos quase a celebrar um novo ano. Ano que esperamos sempre renovado. Ano que esperamos sempre melhor. Quem tem esse hábito costuma subir a uma cadeira e comer doze passas, em cada passa um pedido, em cada pedido uma esperança. Depois beijam-se. Despedem-se do que acabou e acreditam no que vem aí. Este ano nem todos vão beijar todos os que desejavam beijar. Há um medo instalado na sociedade. Eu sei que se fazem testes, mas há os falsos negativos e os falsos positivos e também os falsos testes comprados na internet. Não sabemos o que nos espera. Vamos acreditar que pode acontecer o melhor. Cuidado não caiam da cadeira, (lembram-se do outro?). Tenham o melhor ano possível.
«Olha que isto tem sido mesmo mau. Gosto tanto quando falas da tua Avó.»
Fala de Isaurinda.
«Esperemos que as coisas melhorem. Tu ainda conheceste a minha Avó. Era uma mulher serena, de bem com a vida.»
Respondo
«Vou acreditar em ti. A tua Avó foi uma santa. Faço ideia o que te aturou!»
De novo Isaurinda e vai, alguma esperança no olhar.
Jorge C Ferreira Janeiro/2022(330)
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Um Novo Ano para viver.
O melhor que pudermos e soubermos. Sabemos que continua,” A luta contra o desconhecido.”Como tão bem diz, meu amigo.
Sempre sábias, as suas palavras, autênticas sem fantasias. É tremenda a situação, que uma grande maioria de pessoas está a viver.Não dá alegria a ninguém. Infelizmente existe quem olhe só para si próprio.
Tal como a Isaurinda, gosto tanto quando fala de sua avó. É maravilhoso lembrar uma avó e guardar o que nos ensina. A experiência de vida, que nos passam ajudam a concluir que afinal a história se repete. Uma avó é tão importante na vida de um neto. Tenho pena que hoje, as crianças na sua maioria, não tenham esse privilégio. Não me alongo para não ferir suscetibilidades. Querido escritor, mesmo com tantas coisas más com sabor a fel, que existem neste mundo, que estes 365 dias, sejam vividos com saúde e alguma alegria no coração ( a possível). Que os seus textos, continuem a ser um momento, sempre esperado. A sua poesia e a sua escrita, encantam.
Feliz Ano Novo, querido escritor. Abraço enorme.
Obrigado Maria Luiza. Hoje já sabemos o que é ser Avós. Esse amor tão diferente de todos os outros amores. Percorremos muita vida. Fomos aprendendo. As suas palavras são sempre tão gratificante. Tentarei nunca a desiludir. Abraço imenso
Gosto e lembro os calendários. Ainda vejo a vender com cachorros gatinhos bebés, já os dos mecânicos ou outras oficinas as mulheres viviam no ppapel sem roupa doze meses. Lembro da minha linda avó falar da vivência dolorosa das senhas para obter alimentos. Viviam junto à fronteira com Espanha, ajudavam os Espanhóis que se refugiavam na casa de quem tinha tão pouco. Outras histórias não teve tempo de partilhar. Partiu aos cinquenta e oito anos e eu fiquei com saudades desde os quinze anos. Desde que este vírus aconteceu digo o que penso a alguém que me ouve mesmo que não concordo. Estamos muito cansados mas, não devemos desistir. A liberdade chegará, sabemos que não será para todos. Existe outra pandemia em paralelo, sem vacina. Óptima crónica. Abraço Amigo.
Obrigado Regina. É isso tudo que nos dizes. Uma alegria a tua presença neste espaço. Temos sempre alguém com quem conversar. Alguém que quer falar connosco. Ainda ouvimos tantas vezes aquelas frases. Abraço grande
Mais uma volta ao sol e já com ela os teus 73 aninhos. Que bom !
Verdade, continuamos sob a ditadura deste vírus. Vamos combatendo. Até quando? Lúcidas as tuas palavras. Não é uma guerra, mas é também através dela que as assimetrias se tornam mais evidentes. Engana-se quem diz que estamos todos no mesmo barco. Não, não estamos. E mais uma vez, é mais prejudicado quem menos poder económico tem.
Jorge querido, sabes que eu acho que à medida que os anos vão passando por nós, vamo-nos aproximando cada vez com mais nitidez das histórias dos nossos mais antigos. E tudo nos parece cada vez fazer mais sentido. E por sua vez, o sentimento de pena por não termos falado mais. Também por este motivo gosto de te ler, trazes-me muitas coisas (e pessoas) à memória.
Agora, vamos viver o dia de hoje com olhos postos no amanhã.
Abraço enorme
Obrigado Cristina. Vamos chegando ao cume da montanha. Se conseguirmos ir aprendendo vamo-nos cumprindo. Acho que este mundo nunca mais vai ser o mesmo. Temos de estar atentos. Abraço grande, grande
Mais uma volta ao sol e um novo ano. Começou como acabou. Não há previsão de melhores dias.
Uma guerra como não tenho memória.Sabemos quando começou, mas não sabemos como nem quando termina. Novas estirpes vão surgindo. As vacinas vão ajudando. Ninguém tem certezas de nada. Vai atingindo todo o planeta.
Pior terá sido a pneumónica.
A minha avó estava grávida do segundo filho, em plena juventude, quando o marido, meu avô morreu de pneumónica. Não conheceu o filho, meu pai.
Quando surgiu esta pandemia, regressei ao passado e ouvi a minha avó, mulher guerreira, a falar desses tempos dificeis e de quantas famílias foram atingidas por essa guerra que surgiu num após Guerra Mundial.
Vamos esperar que o avanço da ciência permita que os nossos filhos e netos tenham melhores dias.
Que prevaleça a solidariedade e fraternidade entre os povos.
Obrigada amigo pela excelência da sua escrita.
Enquanto puder cá estarei, neste novo ano, a ler e comentar os seus textos.
Um abraço.
Obrigado Eulália. A pneumónica na primeira pessoa. Que maravilha estar aqui. Uma experiência que nos trás até este tempo. Será que a vida vai mudar? Vamos acreditar na vida. Abraço forte
foi à tua crónica que fui usurpar as palavras para
compor este poema de sal-e-mel.
repousei na pertinência de um remoto passado.
escutei as memórias arrumadas no baú onde adormecem as folhas de salva e rosmaninho. paz.
desafiei os calendários. percorri os cenários estalados as opacidades
os palcos do amor e as histórias repetidas com diferentes personagens.
senti o odor áspero das maleitas. invisíveis inimigos. dos que vivem nas margens da vida.inglórias lutas em hostis desertos.
que tempo é este?
sem vida?
tocou-me a nostalgia de um rosto e de umas mãos de mulher que exalavam suavidades e ternuras. Ana.
voltei às casas incompletas onde o medo é maior que o contento.
morderam-nos o corpo. encruaram-nos a alma. nunca mais fomos os mesmos.
e logo agora que o inverno chegou com um novo ano e eu não sei o que lhe diga.
espero os sonhos. circunscritos.
como a noite.
Gratidão, meu poeta!
Faz acontecer esplendor.
Obrigado Mena. Os teus comentários/poemas são luz para este espaço. Uma maneira de interagir que nos faz viver. É tão gratificante ter a tua presença. Estou tão grato por tudo. Abraços enormes
Querido Jorge, meu amigo/ irmão, a Isabel tem razão, a “guerra ” instalou-se neste nosso mundo. Como a tua Avó, a minha Mãe falava-nos muito da ” Pneumónica ”
ou ” Febre Espanhola “. Tinha 18 anos. Irmã mais velha de um rancho de 6 irmãos. Uma das irmãs, Celeste de seu nome, morreu com a doença. Para mim e irmãs ( e creio que a minha geração ) era algo do passado. Afinal não foi e aqui está ela. Felizmente, a Ciência avançou muito e, hoje, há recursos que têm contribuído para a tragédia não ser ainda maior. Assim as pessoas cumpram as regras de quem sabe mais. Basta que nem todos tenham as condições económico/sociais para o fazerem. Pois é, amigo Jorge. o mundo é um lugar perigoso.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Sempre tão humana. A vida na palma das mãos. Os nossos mais antigos sempre presentes. Que mundo vamos contruir? Abraços gigantes.