Crónica de Jorge C Ferreira | Abriu a caça

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Crónica de Jorge C Ferreira | Abriu a caça

 

Abriu a caça

Os restos de nada. Os farrapos, os fiapos, os trapos. Um ermo sem fim. Um caminho sem destino. O pó e o transe. A ressaca, o cansaço, o corpo que treme. O fim da linha. Um corpo que não se vê ao espelho há anos. O ar hirsuto. As marcas que tenta esconder. As cicatrizes, as infecções, a quase putrefacção. Um destino sem destino.

Entretanto abriu a caça. A caça ao voto. Os jantares, as bandeiras, os autocolantes, as esferográficas. Caras espalhadas em cartazes que desfeiam as cidades. Os líderes começam a andar nos transportes públicos. Alguns têm o passe dos velhos. Essa bandeira eleitoral feita no momento certo. Bebem um cafezinho no quiosque da estação e tiram fotos com as empregadas.

No ermo já há tendas e resguardos para tapar os corpos das intempéries. Há uma carrinha por perto que oferece substituição do vício. A coisa não parece melhorar. Houve uma morte por overdose. Ninguém reclamou o corpo. Foi para a vala comum. Há quem chore pelo morto e por si. Ver o seu destino, por vezes, custa.

Os debates são em doses industriais. Muito trabalho dado de borla aos humoristas. A imprensa cada vez mais submissa aos seus interesses. Eles debatem e nós pouco ficamos a saber. Cada um tenta falar só do que lhe interessa. Sorriem de escárnio e de condescendência uns para os outros. Puxam de papéis previamente preparados. O trabalho árduo dos assessores. Falam do que não sabem e vão-se safando. Mestres na arte da retórica.

As carrinhas das várias associações de caridade vão buscar as sobras aos restaurantes e aos cafés. Sobras que serão distribuídos pelos sem-abrigo e pelos que vivem com reformas de miséria numa casa muito antiga que ainda não foi transformada em Alojamento Local. Os fundos abutres ao ataque. Os pobres a perderem, quase, o pouco que lhes resta: a dignidade, o seu sítio, o seu lugar de sempre. Uma sopa quentinha.

As sondagens são como um elefante a entrar numa loja de cristais. Um sarrabulho nos gabinetes eleitorais dos partidos. Que se passa? Que estamos a fazer mal? Que podemos fazer melhor? Que alvo escolher a partir de agora? É hora de fazer valer as carteiras de influências. Cobrar os favores feitos. Os que têm por hábito manter a coluna direita estão sempre lixados. Hoje por ti, amanhã por mim, nunca sabemos o futuro. Quanto mais a data se aproxima, mais a troca de favores e a oferta de futuros “pagamentos” aumenta.

Compraram mais um prédio num bairro histórico. Ninguém sabe quem é o novo senhorio. As cartas vêm de escritórios de advogados que têm influência no poder. O futuro a ficar negro. A casa de uma vida a ficar em causa. Quem defende quem? As lutas desiguais. As leis e os buracos das leis. As tais vírgulas. A sopa a arrefecer. O bairro a despovoar-se. O barulho dos “trolleys” puxados por gente clara a precisar de sol. Um “grafitti” grita por justiça.

Entretanto a data está cada vez mais perto. Não se esqueçam de ir votar. Votem! Eu já decidi o meu voto. Espero que vocês decidam o vosso. Fui sempre contra o absolutismo.

«Tu também a falar de política? Já estou farta de tanta coisa na televisão.»

Voz de Isaurinda.

«A política faz parte do nosso dia a dia. Temos de “avisar a malta”.»

Respondo.

«Eu sei. Também sei em quem vou votar. Mas estou cansada.»

De novo Isaurinda e vai, na mão mais um papel da campanha a caminho do lixo.

Jorge C Ferreira Setembro/2019(219)

 


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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Abriu a caça”

  1. Maria da Conceição Martins

    Olá Jorge
    Que texto rico de significado
    Mas sim no domingo não deixaremos nas mãos dos outros a nossa escolha. Estaremos lá a colocar na urna o nosso voto. Compreendo que às vezes há algum desânimo, as coisas não são como um dia as sonhámos.Mas ainda não desistimos.Abraço. Ate para a semana.

  2. António Feliciano Pereira

    Eu vou votar; sempre votei e nunca mudei o meu estatuto de votante; não vejo os resultados que muto desejo; tantos entraves pelo caminho, tanto caminho interrompido e tanta esperança gorada. Estamos sempre à espera de “Um Mundo Novo” uma utopia que tarda aparecer de vez para a felicidade do homem, inquieto e sôfrego para mal fazer.
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Também tento cumprir sempre o meu dever de cidadania. Essa conquista imensa. Lá estaremos com a utopia na ponta dos defos. Abraço

  3. Ana Pais

    Uma maravilhosa crónica muito bem retratada sobre o momento eleitoral. É preciso votar bem. Ter esperança em melhor política equitativa, mais justa e solidária. Liberdade sempre! Parabéns, mestre das palavras! Um abraço amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. Sim votar sempre. A esperança a vibrar. Abraço

  4. Cristina Ferreira

    Muito boa crónica, que retrata bem o nosso sentir: cansaço, desilusão, mas não podemos perder a esperança e acima de tudo, honrar sempre quem tanto passou e deu a vida para que pudéssemos ter voz. Sim, irei votar. Estou contigo e claro, com a Isaurinda também.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sim, nunca perder a esperança. Lá estaremos todos. Abraço.

  5. Madalena

    Já ninguém aguenta! Este é um espectáculo que se repete em tempos de eleições ou melhor, de ilusões! E artistas é o que não falta…
    No entanto o nosso voto é muito importante. Fez bem em frisar este aspecto, Jorge. Não vá o diabo tecê-las e involuntariamente contribuirmos para pôr no poder exactamente quem não queríamos….
    Parabéns pelo texto e aguardemos pelos resultados na próxima semana. Espero que lhe dêem ouvidos, meu amigo. Um abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Não podemos deixar o nosso futuro na mão dos outros. Temos de ser intervenientes . Abraço

  6. Teles Ivone Teles

    Meu querido eu sinto que desanimas, como eu também, no meio de tanta hipocrisia, desumanidade, o ” faz de conta “. Eu sei porque te conheço bem. Bastou um abraço apertado para chegar ao teu coração. Cada um tem uma estória de vida para moer o corpo e a cabeça. Mesmo os que se fazem ” grandes ” sendo tão pequeninos. Ao serão estarei, como já sabes, numa acção de campanha. Nasci e cresci em duas famílias com os mesmos ideais dos valores, LIBERTADE, FRATERNIDADE, SOLIDARIEDADE.. Sei que estarão lá, desde o mendigo que espera uma ajuda até o catedráticos da UC.. Todos juntos, unidos na esperança de que não voltem os tempos do fascismo se lutarmos. Eles ” andam aí” querido Jorge. O desprezo com que nos olham. A basófia e os insultos. Estarás comigo, votes em quem votares. Basta seres ” BOA GENTE ” como és. Faltam poucos dias e só, então, veremos. Coimbra é uma Cidade difícil. Estarei com amigos de todas as idades. Alguns acima dos meus 80 anos ( poucos) e também a ” nossa” juventude que, acredita, são de uma enorme generosidade. Uma boa noite meu querido amigo/ irmão. Amanhã espero dar-te notícias. Beijinhos de muita ternura da tua amiga certa. <3 <3 <3

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Estarei sempre contigo. É difícil fazerem-me desanimar. Lá estaremos. Abraço

  7. Cecilia Vicente

    É um corre corre de cores,uma azáfama de cartazes e horários,debates no tal horário nobre. É um Deus nos acuda,a abstenção ameaça. Nos bastidores o gato e o rato. Quem dá e promete e depois não cumpre…
    Mais do mesmo,esperança é a bandeira do próximo fim de semana.
    Há quem escolha a melhor das roupas para votar,talvez uma peça em branco simbolize a paz esperada,a total compreensão que temos de ir,marcar presença com espírito de que o melhor está para chegar. Abraço, meu amigo Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. De fato branco ou multicolor temos de ir cumprir o nosso dever. Abraço

  8. Regina Conde

    Exercer o direito de voto era um dia especial. Eu votava no partido que desejava que ganhasse. Era um frenesim até ao fim. Agora vou votar para que os mestres das feiras e amigos de conveniência feitos à pressa não joguem aos ministros. O meu ministro é melhor que o seu dizem em programas de televisão. Ridículos! Sabes Jorge tenho ponderado. Está decidido! Um abraço Amigo que há anos lutas pela liberdade.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Fico contente com a tua decisão. Sabes, a liberdade obriga-nos a aturar certos foclores. Só assistimos ao que queremos. Lá estaremos. Abraço

  9. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente. Sempre atento. A melhor descrição do momento presente.
    Estou como a Isaurinda… farta!
    Farta de retórica, de diz o que não diz. Faz e não faz. Mente e não mente. Mercados, feiras.Beijos e fotografias. Maiorias e minorias. Sondagens.
    “Temos de avisar a malta”
    Um abraço amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. “Temos de avisar a malta” é verdade. Mas também temos de usar o nosso direito/dever tão arduamente conquistado. Vamos lá. Abraço

      1. Eulália Pereira Coutinho

        Sempre Jorge! Vamos lá!
        É uma conquista demasiado preciosa!
        Abraço amigo!

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