Crónica de Jorge C Ferreira | A sombra dos lugares

Jorge C Ferreira

 

A sombra dos lugares
por Jorge C Ferreira

 

Nas voltas da vida encontramos sítios que ficam a viver em nós para sempre. São imagens, sombras, rostos, lábios, corpos inteiros que teimam a estar connosco. Uma rua, um rio, um mar, uma ilha, uns seios de mulher e uma criança com fome. Caminhar. Um caminho entre tremendas arribas. Rochedos que parecem querer falar. De repente um tesouro. O nunca esperado. Há quem fique espantado. Há quem ache que é pouco para tão grande caminho.

Há montes que se mostram a si próprios. Montes onde só nos apetece olhar para dentro deles, tal a sua beleza. Montanhas encantadas. O eco da nossa voz e os pássaros de sempre. Pássaros nossos que nos procuram e nos hipnotizam. Ficamos com o olhar preso a uma árvore que, de tão imensa, nos abraça. Um abraço que pode ser fatal e ao mesmo tempo nos lembra a felicidade de viver. De viver sem medo. De viver para amar e ser amado. Um sortilégio, um sonho de que só o cantar matinal dos nossos pássaros nos desperta.

Sonhos, vontades, desejos. Tudo se repete numa cadência que parece ordenada por estranhas vontades. Tudo surge num momento e se torna intenso. E de novo as ruas, os prédios, as pessoas, um mercado de jóias encantadas e um pintor que pinta uma ponte que nunca envelhece e os seus reflexos no rio. A pia baptismal e de novo a água benta, o sal, o renegar a satanás e um padrinho com uma vela na mão. Voltar ao início de tudo e não ter medo. Algo varreu da nossa memória todos os nossos dissabores.

Vemo-nos caminhando. Vamos vestidos de branco e descalços. É noite. As luzes são intensas. Há uma música que se ouve ao longe. Esperamos o nevoeiro e tudo se vai tornando mais claro. O nosso branco é um branco luminoso. Sentimo-nos mais crescidos. Vamos perdendo alguns medos. Tememos a luz que nos apague o brilho dos nossos olhos. A luz mortal. A negra luz instalada em mentes doentias. Não é demónio. É maldade. Encontros e desencontros com a beleza e a loucura. Uma loucura que se quer sempre instalar e fazer vingar o seu desvario.

Da loucura, por vezes, aparecem as ideias mais brilhantes. Ideias que, por norma, não são aceites pelas maiorias pensantes. Tudo, porque a loucura tem graus e degraus e há sempre o perigo de uma queda num vazio a que ainda não inventaram nome. O que é ser louco? Pergunta de difícil resposta. A loucura pode durar instantes, ser prolongada, passar a fazer parte de nós.

Já fecharam a maioria dos manicómios. Há uma tentação de normalizar a loucura. Tudo feito pelos mesmos que tudo tentam normalizar. Os que lutam por uma ordem estrita. Os que não gostam dos fora da norma. Uma luta que vem desde o princípio do mundo. Nada disto é novo. Há ciclos que nos fazem pensar na repetição de tudo.

Não me perguntem onde queria estar. Sou de muitos lugares e tenho-os na memória. É aí que vivo. Entre palácios, prédios de andares esconsos, mares, rios e um sem fim de coisas ainda não vistas.

Só sei que habito nesta praça a que chamam vida!

«Estás cada vez pior. Tu achas algum jeito no que acabaste de escrever?»

Fala de Isaurinda.

«Foi um passeio por tanto que nos vem à cabeça. Nada demais.»

Respondo.

«Sabes uma coisa? Por vezes tenho medo dessas coisas que escreves.»

De novo Isaurinda e vai, a benzer-se com a mão direita.

Jorge C Ferreira Outubro/2022(369)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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37 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A sombra dos lugares”

  1. Rui Fonseca

    Jorge, que bonito, fiquei encantado e enleado com as tuas palavras. Obrigado. Abração, Rui Fonseca

  2. Cecília Vicente

    Praças, avenidas, mares, rios, o mundo que gira, nós na roda gigante. A privacidade das memórias leva-nos a viajar cada vez mais a querer viver a vida em modo expresso, talvez a loucura se assim se pode chamar é continuar a viver os sonhos…
    Obrigada, meu amigo. Abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Tão bom estares aqui. É importante a participação de todos. Muito grato pelo teu belo comentário. Abraço grande.

  3. Eulália Martins

    ‘… sítios que ficam a viver em nós para sempre’ são aqueles que, por mais tempo e distância, nos acordam sempre as mesmas antigas, primeiras e marcantes memórias independentemente do vivido ou passado. Por mais que se sobreponham outros momentos ou situações elas não colam ficando para sempre dentro de nós o ‘tal’ tenha sido bom ou menos bom.
    Abraço de coração meu Amigo
    Em Spellbound

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Tão importante a tua presença neste espaço. Tão belo o teu comentário. A tua linda maneira de dizer. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  4. Ferreira Jorge C

    Obrigado José Luis. Poeta. A leitura inteira de um tempo de vivências, encontros e desencontros. A sombra dos acontecimentos perdidos. A minha gratidão pelo teu comentário. Abraço forte.

  5. Ferreira Jorge C

    Obrigado Regina. Gosto da forma como vives o que escrevo. Ser sombra das cosas. Não se exibir. Acreditar no futuro. Grato pela tua constante presença. Abraço grande

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    Usando algumas palavras suas, dei mais um passeio à volta da sua Crónica. Que como é seu hábito, a escreve sempre de uma forma ímpar. O seu jeito sensível de escrever é tão profundo, que nos leva a olhar bem dentro de nós e nos recorda, as coisas que ao longo da vida fomos arrumando, muito boas outras nem tanto.
    Obrigada, querido escritor tudo o que escreve tem alma.
    Abraço, muito amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. A minhs Amiga é de uma sensibilidade única. Leva a minha escrita psra ligares raros e belos. Gratidão imensa por me ler e comentar. Abraço imenso

  7. Regina Conde

    “A sombra dos lugares”, desperta sentimentos e admiração. Verdadeiro encantamento esta crónica. Querido Amigo, neste passeio e nesta praça vou abraçar-te e dizer o que já sabes, muito obrigada por estares aqui e escreveres com esse jeito tão belo.

  8. Eulália Coutinho Pereira

    Tanta beleza nesta viagem. Tanto caminho percorrido. Tantas pessoas que passam. Uns ficam, permanecem para sempre. Outros continuam, deixam a memória. Lugares, paraísos desconhecidos
    A vida a acontecer. Tudo se vai repetindo.
    As perguntas que ficam sem resposta.
    Obrigada Amigo pela reflexão que transmite através da sua escrita.
    Sublime.
    Grande abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Antes de tudo parabéns pela sua capacidade de superção. O seu comentário é belo e certeiro. Próprio de quem sabe percorrer a vida. Grato por tudo. Abraço.

  9. Filomena Geraldes

    Tens o tamanho de todos os lugares que pisaste, dos mares que navegaste, das luas que contaste, das mulheres que beijaste, dos becos onde te perdeste, dos amigos que arrecadaste dentro de ti e da família
    onde permaneces.
    Dentro das memórias.
    No tempo do agora. Do hoje.
    Tens o tamanho dos abraços que abraçaste.
    De percorridas viagens de luz.
    De pesadelos que enfrentaste,
    De nós que desataste e de maleitas
    do corpo e da alma que unges com mézinhas ou não mais que uma indomável e indescritível força de viver.
    Tens o tamanho de todas loucuras, imprevisibilidades, inconstâncias, das cores que usas para esboçar telas escritas e outras cambiantes impressas como as tatuagens no teu corpo. Fazedor de arte, caminhante, aventureiro, herói de estórias e outras demais aventuras, mago no reino das
    descobertas…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Sempre Poemas a sairem de ti. É uma alegria ler os teus comentários. Acrescentar algo, seria estragar. Apenas a minha imensa gratidão por me leres e estares aqui presente. Abraço grande

  10. Maria Matos

    Maria Matos 26/ 10/ 2022
    “As sombras dos lugares”, transporta-me para toda uma vida , pelos lugares por onde passei , por situações que vivi, e pelas sombras que deixei e que relembro com alegria, tristeza, saudade… numa amálgama de sentimentos… de tudo a que chamamos VIDA!
    Belas como são sempre as suas crónicas, Jorge, e que nos põem a pensar, divagar, sonhar…
    Obrigada. Abraço-o por mais esta beleza!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos, Amiga generosa. Sempre incisivos os seus comentários. A beleza de dizer tudo em poucas palavras. A minha gratidão pela sua presença neste nosso espaço. Abraço grande

  11. maria fernanda morais aires gonçalves

    Nunca tinha pensado nas minhas sombras! Penso agora que devo ser mesmo um ser muitíssimo fragmentado. Dado que passei por tantos lugares e neles ficou ou deixei a minha sombra. Serão agora os meus fantasmas? O reboliço que vai em mim? E por vezes sonho que habito esses lugares ainda nessa vida de nómada! Assim conheci o país, a cidade, muitas casas e nalgumas partes do mundo para onde fui só! à procura de quê? das sombras que tinha visto nos meus sonhos!
    Penso que na minha calma aparente eu vivo rodeada de todas as minhas sombras, as minhas vivências.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Somos sombras e das sombras emergimos. Somos o conjunto de todas as nossas vivência. Muitas vezes somos abismo, outras pico da montanha. A minha maior gratidão pela tua presença neste nosso lugar. Abraço forte

  12. Ana

    A vida, o mundo, a natureza e a nossa passagem…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ana. Tudo isso e o nosso Ser. Muito grato pela sua presença neste nosso espaço. Abraço

  13. António Feliciano Pereira

    Sim, é verdade! A vida habita em todos os lugares para onde vamos, por onde passeamos e onde sofremos angústias.
    A vida transforma-nos o ser e em situações de perigo dá-nos a escolher que caminho seguir: aqui, dependemos da nossa escolha!
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Que belo comentário. A vida que nos intrepela e a vida que vive em nós. Saber os caminhos correctos para o belo. Muito grato por me ler e contribuir para este espaço. Forte abraço

  14. Isabel Soares

    Uma crónica sobre o humano. No sentido do que nos faz ser. Os lugares ‘únicos’ a constituir-nos, bem como as experiências vividas e apenas neles possíveis. As cicatrizes que se instalam a apropriarem-se de nós. O diferente e o estranho como significantes da nossa vida.
    Um texto a pensar na esfera de dimensões diferentes. Viver à ” margem” e nela nos perceber. E sem os lugares? E sem o diferente? Sem sairmos de ” nós ‘ não há um regresso ou retorno? Como continuar “igual”depois da experiência dos “sítios” marcantes. Querer agarrar o passado no presente depois de vivências (re)construivas?!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Sempre brilhantes os seus comentários. Vamo-nos construindo com tudo o que nos marca. Somos um corpo tatuado de experiências. Retornamos sempre diferentes, acrescentados. Somos uma soma de tudo o que vamos adquirindo. Muito grato pela sua participação nesta página. Abraço grande

  15. Deliciosa leitura que nos inspira e nos dá força!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Patricia. Uma alegria imensa saber que dá força a alguém o que escrevemos. Grato por me ler e comentar. Abraço

  16. Cristina Ferreira

    Uma delícia.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. A minha imensa gratidão pelo teu comentário e a tua presença neste nosso espaço. Abraço grande

  17. Isabel Campos

    Tudo isso nos faz, nos faz estes!!!
    E as tantas faltas de que também somos feitos são passaportes para cada sonho de que fazemos os dias.

    🌸🌸🌸

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Tão bom estares de novo por aqui. Sim somos a soma de todos os acontecimentos que nos tocam. A minha gratidão pela tua presença. Abraço enorme

  18. Ivone Maria Pessoa Teles

    Tão BELO. Sabes das ” Sombras dos Lugares “, das ” Sombras das Palavras ” escritas e ouvidas, das ” Sombras dos Pensamentos”, das ” Sombras dos Abraços Beijados ” de todas as ” SOMBRAS” que rodeiam os AMIGOS e também da LUZ que espalhas pelas ” Gentes “, da praça a que chamam VIDA. Beijinhos da Ivone.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone. Minha Amiga/Irmã. Que bom estares aqui. Por vezes nem a nossa sombra reconhecemos. Abraçamo-nos numa sombra que torna o abraço único. A minha enorme gratidão por este abraço escrito. Outro Abraço.

  19. Ivone Maria Pessoa Teles

    Muito Bom. A delícia da tua escrita, que os pensamentos abraçam. ” A sombra dos lugares ” e também a desses pensamentos/ abraçados, como se beijos fossem. Quando te lemos vamos até essas sombras do que nos deixas; quando te ouvimos vamos até à sombra das palavras que continuam nos nossos ouvidos. Tu transportas a VIDA até aos outros. Beijinhos amigos !!!!. .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone. És tão generosa. Escrevo todos os sentimentos que a pele me dita. Somos um conjunto de momento. Momento belo o teu comentário. Abraço grande

  20. Fernanda Luís

    “A sombra dos lugares”
    Delícia de ler, refletir, ficar a pensar nas “sombras dos lugares”…
    Dos lugares de cada um de nós.
    Perfeito.
    Abraço Jorge C Ferreira

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Os nossos lugares e a descoberta das outros na sombra das nossas vidas. Vida que vamos construindo. Grato pela sua presença neste espaço. Abraço

  21. José Luís Outono

    ” Foi um passeio por tanto que nos vem à cabeça. Nada demais”
    Uma conjugação perfeita de traços do ontem, alinhados nas memórias do hoje, sem medos ou receios de repetição.
    Um relógio perfeito no teu andar onde as horas batem ao ritmo do teu querer viver, e o sonho acontece na coragem de o sentires e mostrares esses tópicos numa vitamina perfeita da escrita que te toca e deambula alegre nas folhas que orgulhosamente enches … e os livros acontecem.
    Perfeito sentir e exemplar mostra do mesmo numa caligrafia cordata, onde o desafio de Isaurinda é moldura imprescindível .
    Grato pela tua abertura pessoal, cultural e dimensional de um viver que teimas muito num sorriso natural.
    Olha rimei !
    Grande abraço!

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