Crónica de Jorge C Ferreira | A educação de um tempo

Jorge C Ferreira

 

A educação de um tempo
por Jorge C Ferreira

 

Desde pequeno a minha Mãe ajoelhava-se comigo junto à cama, antes de me deitar, e ensinava-me orações. (Ainda tenho esse missal marcado com as velhinhas pagelas.) Pedíamos por todos, pela paz no mundo e também que nos ajudassem a fazer o bem. Em seguida persignávamo-nos e benzíamo-nos. Depois de eu me deitar a minha Mãe aconchegava-me a roupa e dava-me um beijo. Todos esperávamos uma noite serena.

Foi assim que aquela base judaico-cristã foi crescendo em mim. O passo seguinte foi a catequese. Foi olhar para o transcendente como algo divino. Acreditar em Deus e na sua omnipotência e omnipresença. Um Deus que, no entanto, me foi apresentado como capaz de ser castigador. Levei todo este caminho a peito e percorri todas as etapas.

A primeira comunhão e uma alegria imensa de ser partícipe na consagração do Senhor. Uma cerimónia de que já tenho poucas recordações. Depois a profissão de fé. De alva e vela na mão. Era como uma renovação de votos. Um acreditar doce e suave na imensidão da estrela que nos indica o caminho. Depois foi ser escolhido para acólito. Ajudar ao acto solene de celebrar a vida. Tive de aprender as orações e todas as respostas que tinha que dar na missa em latim. Assim fiz. A Alva e o cordão. Ajudar o celebrante a paramentar-se. Encher as galhetas. A Água e o vinho. Ajudar na consagração e com uma bandeja acompanhar o celebrante na comunhão dos fiéis, comungar com eles. Ainda celebrei mais um sacramento: o crisma.

Em minha casa havia opiniões diferentes sobre esta minha actividade. Da minha fé. Do meu pensar. Do meu medo de pecar. Sim, eu acreditava no pecado. Ao meu Avô um velho republicano anticlerical cheguei a ouvir dizer: «Só me faltava um padreca em casa.» Nunca me disse a mim. Mas cheguei a participar em discussões à mesa durante o jantar. Lembro-me como defendia a minha fé. Os homens, normalmente, contra. Mas sempre tive a ajuda das mulheres da casa. Acho, que aquele tipo de educação sempre esteve no foro das mulheres.

Assim fui levando a minha vida. Mas havia mais vida na Igreja. Os grupos e as raparigas que nos faziam companhia. Havia também paixonetas e risinhos de lábios tremidos que esperavam companhia. Lembro-me aquando da já falada profissão de fé, de os rapazes estarem de um lado e as raparigas do outro. Lembro-me dos olhares trocados. Lembro-me de tanta coisa que chego a ficar cansado.

Com quinze anos fui trabalhar. Tinha acabado o Curso Comercial e entrei para o Banco. Nunca mudei de emprego, os Bancos é que foram passando por mim. Entretanto estava na JOC (Juventude Operária Católica), e continuava a ajudar à missa. Havia um dia por semana que saía do Banco e ia ajudar à missa das 7 horas da tarde, além de uma missa ao Domingo. As aprendizagens na JOC foram muito importantes. O trabalho e as relações dentro dele também. Um dia não fui capaz de assumir o que fazia na Igreja e cheguei a uma conclusão imediata: Já não tinha fé. Tinha perdido tudo o que me tinha levado até ali. Depois de algumas conversas com outros, e comigo, decidi abandonar tudo. Tudo o que fazia tinha-se tornado numa rotina. Já não fazia sentido. Era o tempo de encerrar um capítulo na vida.

Foi um choque. No princípio senti-me como órfão. A minha outra busca começou aí. Foi aí que comecei a pensar: que faço aqui, de onde vim, como vim aqui parar, que tempo é este que vivemos? Será que vivemos? Quem somos? Somos? Busca que ainda se mantém.

Afinal, tudo acaba um dia. A partir desse dia toda a vida é diferente. Abrem-se outros caminhos.

«Ainda me lembro da tua alva guardada no roupeiro. Já tinham filhos e tu ainda com aquilo no roupeiro.»

Fala de Isaurinda.

«Sim. É verdade, não me perguntes porquê. Não te saberei explicar. A verdade é que a alva um dia sumiu, nunca soube como.»

Respondo.

«Há coisas difíceis de largar. Outras vidas que se juntam a nós.»

De novo Isaurinda e vai, com a mão direita a benzer-se.

Jorge C Ferreira Fevereiro/2022(335)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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23 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A educação de um tempo”

  1. Coutinho Eulália Pereira

    Excelente. Memórias que marcaram a nossa geração. A catequese, a missa ao domingo, a confissão, a comunhão. Acompanhei-o nesta viagem da infância à adolescência. As dúvidas também surgiram.
    As incertezas continuam.
    A verdade é que o que sou devo ao conjunto de todas as vivências. A vida ensinou-me a valorizar cada momento.
    Obrigada Amigo, por estar desse lado, pelos momentos de reflexão e valores humanos que transmite pela sua escrita.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Sim, minha Amiga. Um trajecto muito idêntico a muitos de nós. Uma experiência que se soma a todas as outras que nos enformam. Grato. Abraço

  2. Mena Geraldes

    Educação na fé. A procura do divino. A demanda pela mão da progenitora. Todos os santos
    domingos a missa em latim. A obrigatoriedade do uso do véu. As orações. O missal e os “santinhos”. O medo de pecar. O confessionário e uma voz severa que nos impunha as orações da expurgação. O ritual da toma da hóstia.
    O colégio de freiras e os retiros, acrescentaria eu.
    Que Deus era aquele que temíamos?
    Por isso, dei comigo à procura de uma figura paternal, amorosa, toda ela compaixão e solicitude. Por esse deus-energia, partícula de luz, teia de generosidade e mansidão me quedei.
    Na tua crónica me revi, Jorge. Agradeço-te . Fazes-nos recuar ao tempo em que a Igreja impunha dogmas e preceitos. Na nossa ingenuidade acatávamos. À medida que nos tornávamos gente de reflectir, discorrer e ponderar, a mudança podia, ou não, acontecer. Para ti foi uma realidade. A ruptura. A princípio, brusca e dolorosa. Seguiste o teu percurso.
    Louvo a tua coragem.
    Como me foi benéfico ler-te! Sem confessionário.
    Percorrendo o meu caminho de fé.
    Nesta altura da minha vida, eu e Deus, somos indissociáveis. Tratamo-nos por tu e somos bons amigos. Sem intermediários. Os amigos mais prováveis!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Como sempre tocaste em todos os pontos. A fé não se discute, tu sabes. O caminho foi bom enquanto durou. Não devemos renegar nada do que fomos. Só assim nos apresentamos inteiros. Gratidão. Abraço

  3. António Feliciano Pereira

    A nossa vida é vivida por capítulos. Muitos não compreendemos a sequência deles. Existem, e pronto. Mais tarde deparamo-nos com explicações que vêm do nada.
    Jorge, não lhe estou a ensinar nada; apenas divago o mesmo assado.
    Um abraço, Jorge!

    1. António Feliciano Pereira

      Quero dizer passado.

      1. Ferreira Jorge C

        Obrigado António. Que bom tê-lo de volta. São episódios que se cumprem e nos cumprem. Dar todos esses passos fez-nos mais conhecedores da vida. Grato. Abraço

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Um texto lindíssimo e sensível.
    Uma fase marcante da sua vida, que generosamente partilha connosco. A formação católica fazia parte da educação, que nessa altura, os pais gostavam de dar a seus filhos. E nesse sentido, todos os passos foram dados. E fez caminho. Mas perdeu a fé. Mesmo assim, ele não deixa de ser um cristão. O Jorge é um homem bom, ama o próximo, luta pelos outros e constituiu uma família que muito ama. E Deus é amor, não castiga.
    Eu acredito ao meu jeito, como eu sinto. Sei que me compreende. O tema é melindroso e eu posso não me fazer entender.
    Respeito profundamente a sua ideia, meu amigo.
    A busca estará sempre consigo. E os ensinamentos da Senhora sua Mãe também.
    Adorei, o seu maravilhoso e delicado texto, encontrei poesia e a prosa é divina.
    Grata sempre. Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Deixa-me sempre embaraçado o que escreve sobre mim. É muito generosa. Partilhar as nossas vivéncias pode ser importante para os outros. Só me resta deixar aqui a minha gratidão. Abraço grande

  5. Maria Matos

    Que belo texto! As nossas crenças da infância, a que tanta importância dávamos… Habituslmente “instigados” pelas nossas mães “, tal como sucedeu comigo! Mas sabe uma coisa , Jorge, a fé ficou. Pratico, mas não cegamente todos os dogmas celestiais… Sou católica à minha maneira, e acredito que Deus, vai-me desculpando as minhas contradições…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos. É tão bom ter aqui a sua presença. Todos seguimos os nossos caminhos. O que é necessário é que nos sintamos bem como estamos. Respeitar o outro faz parte da urbanidade. Muito grato. Abraço

  6. José Luís Outono

    Mais um traço de vida, onde comentas o teu crescer, até ao momento do teu viver … hoje.
    Confesso, que tive algo na minha vida muito idêntico, e hoje o mapa do meu olhar é uma constante memória do ontem e do hoje, onde exercito equações interrogativas.
    Grato pelo teu texto maravilhoso, com segredos de poesia em prosa, no avaliar do teu ser.
    Excelente!!!
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Muitos de nós percorremos as mesmas estradas. Os desvios, muitas vezes, foram diferentes. Situações que não controlamos. A nossa voz e as vozes. Grato pelo teu comentário. Abraço

  7. Ivone Maria Pessoa Teles

    Meu querido Irmão/ Poeta, talvez não muito longe a tua vida, a minha. O meu pai, agnóstico, a minha mãe só crente na Rainha Santa. Filha mais velha de um role de 6 irmãos. O meu Avô filho da minha ” Avó-velha”, quando esta tinha 13 anos e de um padre da freguesia onde vivia. Era totalmente ateu. A minha Avó chegou a casar e ter mais filhos, mas quando necessitou, viveu sempre com o Filho Alfredo, o meu Avô. Éramos 3 irmãs, nunca andámos na catequese, nem tivémos qualquer instrução religiosa. Eu tenho a ” minha transcendência “, que é a minha ” passa culpas”, ou “boas situações.” Acho que, apesar de tudo, nunca senti falta, Não tenho ” Alva ” para procurar. Havemos de continuar, ao vivo, a nossa história. Beijinhos POETA, meu Amigo/ Irmão.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Este comentário é, ele mesmo, trancendente. Estou tão grato por te teres exposto aqui. Nós somos aquilo que fomos e somos. Só assim somos verdadeiros. Tu és uma mulher carinho e uma mulher coragem. Abraço imenso

  8. Um percurso com semelhanças com o do meu pai: a primeira comunhão, a confirmação, o crisma e, mais tarde, o questionar da fé, chegando ao ponto de abandoná-la.
    Só que o meu pai começou a trabalhar aos treze, para ajudar na economia doméstica, onde uma mãe criava dois filhos sozinha, após ter tido a coragem de separar-se do marido.
    Boa semana, amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Sofia. Quase a história de uma geração. O trabalho para a vida e o transcendente. Muita gratidão por este teu comentário. Abraço grande

  9. Regina Conde

    O início do texto comoveu-me, a delicadeza e amor nas palavras, é quase visível os momentos entre mãe e filho quando desejavam uma noite serena. A pureza do menino que caminhava na vida, um ciclo de vida, até ao momento de iniciar outro. Acredita que imagino o teu avô, republicano convicto. Dizem, que conforme a idade vai crescendo, a espiritualidade renasce. É importante conhecermos como iníciámos. Abraço muito grande Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. As nossas Mães ensinaram-nos tudo. Até a erguer as mãis aos céu. Apesar das diferenças tudo era resolvido pacificamente. Os caminhos e os escolhos. Mudar de estrada. Tudo faz parte da vida. Gratidão. Abraço

  10. Isabel Torres

    O cronista mantém-se numa fase autobriográfica. Este texto relata uma experiência longa,na sua vida,em que viveu de acordo com a educação católica. Interiorizando os seus dogmas e pautando os seus comportamentos pelas “regras” judiaco-cristã.
    Libertou-se,numa ruptura súbita e abrupta. Não desvela desconforto ou revolta por essa educação, mas,embora subtilmente, se infira a liberdade laica. Um outro mundo que surgiu. Um horizonte de esperança de um pensar e questionamento diferente.
    Como refere,iniciou um outro modo de pensar e sentir a realidade à sua volta. Creio que um questionamento e espanto face ao mundo se iniciou aí. E deles continuou,então, a pautar a sua vida.
    De louvar o percurso académico, tão precoce,duro,de certo,naquela idade. Mas também o estruturou o feitio.,dada ser essa a idade em que começamos a consolidar a nossa identidade.
    Uma crónica visceral,mas sensível. Sem “dores”. Descrita como um fenómeno sociocultural mais matriarcal.
    Este autor,nesta,e noutras crónicas,manifesta mais uma vez uma sensibilidade na forma e no conteúdo, que admiro.
    Costuma-se dizer que o caminho se faz caminhando. Não sei bem o que significa (talvez porque há muitas quedas e imprevissibilidades); tal como o Agostinho da Silva disse:não faças planos para a vida que a vida já tem planos para ti. Vale o que vale. É necessário enquadrar.
    O percurso do autor é admirável. Saliento a inteligência, a sensibilidade e a extrema correcção, bem como a beleza das palavras,numa escrita autêntica e,muitas vezes,dura e crua.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. O seu comentário é brilhante e muito bem escrito. Tenho de lhe agradecer a generosidade. O meu caminho foi igual ao da muitos. Um trajecto de um tempo. A minha gratidão. Abraço

  11. Maria cristina Belchior Ferreira

    Tenho para mim que a alva desapareceu no dia que deixou de fazer sentido a sua presença no roupeiro. Viver em busca da alva que há em ti, passou a ser a prioridade.
    Abraço poeta

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Sim, a pureza vive em nós. O desaparecimento da alva pode ter sido um sinal. Quem sabe? Grato. Abraço

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