Crónica de Jorge C Ferreira | A confusão

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
A confusão

 

Há pessoas que aparecem devagar, como se pedissem licença para entrar em qualquer espaço livre. Uma delicadeza que chega a comover os mais incautos neste mundo de barbárie, onde os caceteiros proliferam, os fala-baratos não se calam e têm tempo de antena, e os que mentem sem pudor com um sentimento de impunidade que dói não se calam.  Que mundo! Cuidado.

«Não ficas triste com tudo o que está a acontecer?» Pergunta a Isabel do outro sofá. Um sofá que partilha com o gato. Digo-lhe que sim, que muita coisa me enoja. Que fazer? É a pergunta que se repete desde o princípio de tudo.

Nunca perder a esperança. Há mudanças que acontecem nos momentos mais brutais e mais difíceis. Mesmo quando a aldrabice faz vencimento e engana muitos crédulos. A volta irá acontecer porque a verdade acaba sempre por vir ao de cima.

jcferreira livro

Mas falemos da delicadeza. Dos bem-educados. Dos que entram vaporosos pelas portas mais ou menos franqueadas. Dos bem-falantes, dos que fazem da eloquência a sua maior arma. Muitos depois de entrarem é difícil tirá-los de casa. São como as lapas agarradas às rochas. Contratam e organizam falsas seguranças que só defendem a sua preservação nos palácios e nas sedes do poder económico.

Temos de ter cuidado mesmo com os que vêm de pantufas e pijama. Tudo serve para enganar o outro. Alguns têm pantufas de onde saem afiadas lâminas, pijamas com punhais e adagas escondidas. Tudo é uma máscara. Um Carnaval que cada vez dura mais dias. Embora tal não seja reconhecido oficialmente. Tudo é permitido. “É Carnaval ninguém leva a mal.” Ri o palhaço rico no seu riso tonitruante enquanto o palhaço pobre faz de ridículo para ganhar a vida. Há trapezistas com o maillot remendado e artistas de meia-tigela vestidos de lantejoulas. Todos os truques são aplicados sem vergonha. Até as falsas santidades são chamadas a actuar.

Pastores importados, alguns a quererem arranjar e conduzir os seus rebanhos por caminhos ínvios. Sempre disse que misturar religião e política não dá bom resultado. Somos um estado laico. Temos uma liberdade a preservar. Não se esqueçam das autocracias de carácter religioso que pululam pelo mundo. Quem financia quem?

Alguns boçais destilam patacoadas muito antigas. Outros dizem tudo e o seu contrário. Temos, cada vez mais, de saber destrinçar entre o plausível e a trafulhice. Uma linha que se vai estreitando define a diferença entre o sério e a trapalhada.

Continuamos sem saber nada de nada. Continuamos a procurar D. Sebastião e a tal noite de nevoeiro. Não temos confiança em nós. Somos um povo que foi muitos anos calcado. Temos só cinquenta anos de democracia. Somos jovens a titubear os caminhos da liberdade. Caminhos muitas vezes minados. Minas de gente incompetente. Minas que matam muita esperança.

Não se esqueçam, no entanto, que a Liberdade é a nossa maior arma. A nossa maior canção.

Estamos a chegar a Abril. Os cravos irão renascer. Vamos lembrar aquela madrugada única. Vamos desfilar. Descer a Avenida de todas as Liberdades. Porque “Atrás de Tempo Tempo Vem.”

«Isto está uma grande confusão. É o que isto está.”

Fala da Isaurinda.

«Temos de ter calma. De ter discernimento para pensar bem.»

Respondo.

«Que pensem bem, espero eu.»

De novo Isaurinda e vai, um ar preocupado.

Jorge C Ferreira Março/2024(429)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Partilhe o Artigo

Leia também

16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A confusão”

  1. Eulália Coutinho Pereira

    Tão verdadeira esta crónica. Li e reli. Nada ficou por dizer. Linha tênue que separa a verdade da mentira. Tudo se repete. As memórias são curtas. Os senhores do mundo pisam tudo e todos.
    Promessas em que os incautos acreditam. Comentários inflamados que lançam dúvidas , interrogações, descrença.
    Quero muito acreditar que a Liberdade conquistada em Abril, entre cravos vermelhos é mais forte que tudo a que assistimos diariamente.
    Obrigada, Amigo. Por estar sempre desse lado.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Sim, minha Amiga, 25 de Abril Sempre. Nunca desistir. Lutar sempre pela justiça, a verdade, a liberdade. Muito grato pelo seu comentário. Abraço grande.

  2. Branca Maria Ruas

    Acabo de ler esta tua crónica e pouco ou mais tenho a acrescentar a tudo o que escreveste.
    Apenas dizer que nunca gostei do Carnaval, que detesto máscaras e que, cada vez mais precisamos de pensar pela nossa cabeça, independentemente de religiões, partidos ou clubes dos quais façamos parte ou sejamos simpatizantes.
    Sou defensora da independencia, da autonomia e da Liberdade, em tudo!
    Não gosto de andar em “rebanho”. Prefiro caminhar só e ser coerente com o que penso, não com o que querem que eu pense.
    Mas no 25 de Abril caminharemos juntos, sim!
    A Liberdade que foi alcançada não pode ser esquecida.
    Temos de a lembrar, de a homenagear, de a defender!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria, minha Amiga. Sim, Liberdade Sempre. No 25 de Abril desceremos a Avenida. Temos de estar mais vigilantes que nunca. Cuidado com este mundo convulso. Grato pelo teu comentário. Abraço enorme.

  3. Filomena Geraldes

    falta-me o talento, ensejo e ânimo para me debruçar sobre a “confusão” que grassa no nosso país.
    quem melhor que um excelente cronista para a retratar e detalhar?
    eram afiadas as línguas
    fielmente escutadas e quase que idolatradas.
    duvidosas, falíveis, simuladas.
    eram perigosas as línguas
    combativas, desleais, pegajosas.

    só me lembra abril
    esse mês de festejos que coroou a
    tão desejada liberdade.
    o verbo deslaçado, desprendido, desatado
    se é verde a esperança
    tragam-me a trincha e as espátulas.
    as tintas e os óleos.
    vou pintar a face deste meu lugar.
    se é carmesim o cravo
    espalhem-no pelas calçadas, casario, muros e vielas
    se ainda é ventura a branca pomba
    deixem-na voar…

    poeta, jamais permitiremos que ousem rasgar a folha ao calendário.
    abril veio para ficar !

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, pormais este belo poema. Tu sabes das palavras o sentido e o sabor. Como eu gosto de te ler! A minha imensa gratidão pela tua presença. Abraço forte.

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    A confusão instalou-se, ninguém se entende.
    Aquela madrugada por tantos sonhada, parece esquecida. Disse tudo tão bem, uma análise perfeita sobre tão triste situação.
    Descer a Avenida impõe-se. Liberdade sempre.
    É maravilhoso estar consigo, querido amigo, neste momento desconsolado. Esperança e bons pensamentos, livres.
    Sempre grata, querido escritor pela verdade e força das suas palavras.
    Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, minha Amiga. Essa madrugada que Sophia tão bem cantou. A nossa festa. A nossa liberdade inteira. Vamos defender tudo isso. Vamos ser capazes. Grata estou eu pela sua assídua presença neste nosso espaço. Abraço grande

  5. Claudina Silva

    Amei a tua cronica Poeta Jorge C Ferreira! Concordo plenamente e vamos acreditar em dias melhores!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina, também eu amo sempre a tua presença, minha Amiga. São palavras que me dão força para continuar. A minha gratidão. Abraço enorme.

  6. Clara Figueiredo

    “Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar”, porque “não há machado que corte a raiz ao pensamento” e…o povo é quem mais ordena”.

    Eles não passarão!!

    Viva abril e a nossa liberdade conquistada há cinquenta anos!🌹

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Tita. Que bom vê-la aqui de novo. Sim, vamos seguir e vencer. Os trovadores e os Poetas na linha da frente. Saberemos resistir. Não, eles não passarão. A minha gratidão. Abraço enorme.

  7. Fernanda Luís

    Só para dizer que gostei da crónica.
    Identifico-me com tudo o que disse, Jorge. “Confusão” das grandes.
    Apreensão. Inquietação…
    Cinquenta anos de Abril, idade para todos termos juizo.
    De repente, lembrei-me do Poema e do Poeta a cantar:
    “ Não há machado que corte a raiz ao pensamento”.
    Viva a liberdade,
    Amigo, estou contigo.
    Abraço grande

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Sempre assertivos os seus comentários. 25 de Abril Sempre. Ninguém nos irá tirar a liberdade. Também estou contigo. A minha gratidão. Abraço enorme.

  8. José Luís Outono

    Como te entendo, caro amigo, neste mundo inóspito … cada vez mais … menos habitável, coerente, e lógico.
    Em cada esquina, há murmúrios desconexos e atropelos lunáticos de “espertezas” danificadoras.
    No voltar da página do calendário, o sonho da PAZ evapora-se, e o sinal do amanhecer é uma desconfiança constante.
    Excelente crónica estimado amigo, sobre este Abril em perigo de águas mil onde o ponto de interrogação ganha o “podium” de interesses arquitectados num fluir de caminhos pela direita .
    Que o teu saber, vontade e empenho continue a escrever livremente – Abril liberdades. mil.
    Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís, poeta. Muitas vezes este mundo parece um esgoto a céu aberto. Temos de defender a Liberdade. Lutar contra as ditaduras. Acreditar na nossa força. A minha imensa gratidão pelo teu comentário. Abraço enorme.

Comments are closed.