Crónica de Jorge C Ferreira
A Busca
Intempestiva a corrente do rio que te levou para o mar alto. Os olhos muito abertos, olhos de ver a vida, olhos salgados de salvar o tempo. Uma mulher intensa. Tempo aberto, tempo alargado, tempo alagado. Um homem a correr para o cais. Um porto de chegadas e partidas, algumas vezes de não chegar e de não partir. Um porto de incógnitas. Abraços e beijos esquecidos nas pedras de uma gare ensombrada pelas partidas para a guerra e da chegada dos caixões selados. Outro tempo. Cinquenta anos passaram, cinquenta anos comemorados anualmente. Ainda somos muitos os que resistimos àquele tempo, uma memória antiga e cansada lembra o que queremos esquecer. Lembramos os amigos que perdemos. Choramos o que não vivemos com eles.
Ela lá continua o seu caminho, os olhos sempre muito abertos, olhos de querer ver tudo e algo mais. Mar adentro lá vai. Quanto mais longe de terra, mais o sal incendeia o seu olhar. Por vezes há quem confunda aquele brilho com um farol em movimento. Brilho que contagia outra gente. Brilho que ela continua a querer ver do passeio da gare marítima. Alguém o avisa para ter cuidado, que ainda pode cair ao mar. Ele responde, que tem um sonho de olhos brilhantes do lado de lá do mar e que não o quer perder. E por ali continua a deambular.
Nada disto parece ter sentido. Mas todos sabemos que há olhos que não esquecem olhos. Olhos que um dia se encontraram num corredor escuro e nunca mais viram outros olhos iguais, uma troca de olhares única. Um clique que marcou os corpos de ambos. Um calafrio. Um tremor. Uma loucura para sempre. Muitas vezes coisas de vai e vem. Coisas de pegar e largar. Vícios e virtudes. Beijos e abraços. Mãos e seios tocados e agora o brilho daqueles olhos a desaparecerem do outro lado do mar. Ele por ali continuava, sabia que um dia ela voltaria. Era isso a que ele se agarrava e a um cobertor que lhe deram para o ajudar a vencer o frio. Um rádio a pilhas para saber através das notícias se havia alguma novidade daqueles olhos. Era considerado um sem abrigo. Começaram a tratá-lo por olhos perdidos. Tinha um quarto numa pensão manhosa, perto dali, onde dormia a correr. Os barcos começavam a chegar cedo. Ele queria estar presente quando o primeiro barco do dia chegasse.
Na tal pensão conheceu um fulano que, por outras razões, também ali se tinha isolado. Primeiro achou que era um tipo estranho. Estava sempre a escrever num tablet páginas sem fim. Trocaram ideias e deram a conhecer um ao outro o seu segredo. Ficaram amigos e começaram a ver quem saía dos navios juntos.
«Olha principalmente para os olhos, os olhos dela são únicos.»
Ele não sabia que o outro já procurava há muito tempo aqueles olhos perdidos na imensidão azul. Até que um dia a encontrou. Hoje, quase tudo se encontra naquele mundo virtual, foi aí que ele a viu depois de alguns anos de esperas desesperadas. Soube que ela estava do outro lado do mundo. Não teve vontade de ir ter com ela, ou escrever-lhe. Bastava seguir as suas publicações e ver os seus olhos. Isso bastava-lhe e bastou-lhe até agora. Voltou à vida anterior e deu o cobertor e o rádio de pilhas ao seu companheiro de pensão.
«Que estória! Que coisa foste inventar! Só tu.»
Fala de Isaurinda.
«É uma busca levada até às últimas consequências. É apenas querer saber do outro, só por gostar.»
Respondo.
«Isso é muito bonito, mas deve acontecer raramente.»
De novo Isaurinda, e vai, a arregalar os olhos.
Jorge C Ferreira Dezembro/2024(460)
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Olhos que não esquecem outros olhos…que lindo poema Poeta Amigo Jorge C Ferreira! Amei! Parabéns pela tua linda escrita.